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CAP 3. O ENCENADOR COMO AGENTE DO PROCESSO DRAMATÚRGICO

3.2 Operações da escrita

Observadas as diferentes apropriações, passamos o olhar para as operações que os encenadores/dramaturgos realizam para construir a sua obra dramatúrgica. Caso não estejamos diante de uma “apropriação plena”, significa que alguma interferência na obra de origem necessariamente ocorreu. Vamos considerar que essa interferência, que pode ser superficial ou profunda, representará uma operação de alteração, que denominaremos, de forma geral, por “edição”. Editar é um termo comum nos meios de comunicação e no ambiente literário, mas também pode ser lembrada como uma função muito valorizada no processo cinematográfico. Diz respeito ao profissional – editor – que manipula todo o material colhido durante as filmagens e que é responsável pela finalização do filme. Alguns profissionais da área do cinema apontam os editores como os verdadeiros responsáveis por alguns sucessos comerciais.

Mas de volta às operações dramatúrgicas, é interessante verificar que a “edição” no caso da transposição realizada pelo encenador /dramaturgo é um procedimento ainda mais amplo do que o que ocorre no cinema, pois no teatro algumas vezes verificamos a inclusão de novos materiais, diferente no caso do editor cinematográfico que só manipula um determinado material que já foi filmado.

Dentro da chamada “edição”, portanto, temos um conjunto de intervenções que podem incidir, combinadas ou não, sobre a obra original. A mais comum delas, fato natural já que a extensão de um romance não corresponde ao tempo de duração de um espetáculo, é a “exclusão” de passagens do relato. Eliminações de parte do texto original que podem variar de uma simples frase, um parágrafo, uma página, ou até vários capítulos. Um gesto da escrita que se assemelha aos “cortes” tão conhecidos dos trabalhadores do teatro.

Cabe sublinhar que qualquer exclusão deve estar bem justificada para o dramaturgo. Em geral, os romances recorrem aos adjetivos e as descrições em abundância. Essa característica da literatura narrativa pode perder “fôlego” no jogo teatral. A existência de um ator em cena ativa uma espécie de pressão aos acontecimentos que, no caso da vocalização, nem sempre se equaliza eficientemente com o excesso de palavras de uma obra literária. Além disso, a meu ver, a voz escutada

em cena, que possui algo que pertence a qualidade do agir, é captada e “absorvida” pelo espectador de forma mais imediata e rígida do que na leitura. A voz no teatro, valorizada pela concentração do acto teatral, parece escapar do ouvinte com menos facilidade do que a escrita captada pelo leitor. Sobre esta questão, que não é o foco da nossa pesquisa, é inevitável não fazer referência ao estudo robusto de Paul Zumthor sobre a oralidade, em especial sobre a performance, a recepção e a leitura, onde afirma que “a performance é então um momento da recepção: momento privilegiado, em que um enunciado é realmente recebido.” (ZUMTHOR 2014:52)

Mas, sobre a operação da “exclusão”, uma vez que ocorre a eliminação de um fragmento do texto, consequentemente, será necessária uma “costura” ao mesmo texto. No ponto onde o corte foi efetuado deveremos “costurar” uma outra parte do texto. O procedimento de costurar um texto normalmente acarreta ajustes de menor relevância na escrita. As ligações das partes costuradas de uma dramaturgia merecem delicada atenção, pois, feitas sem um critério, podem acabar por interferir negativamente na sua recepção.

A mudança de um determinado fragmento de um local do romance para outro representa o procedimento de “transferência” ou “deslocamento”. Todo corte no texto original acarreta um deslocamento, mas há mudanças que são usadas como recurso pelo dramaturgo para construir uma nova ordenação dos fatos relatados e um novo sentido para o discurso. Essa reorganização do material é uma das interferências que melhor evidenciam a escritura cênica do encenador, e, por sua vez, aquela que pode provocar um significante afastamento da obra original.

Uma outra operação que certamente determina uma assinatura do encenador/dramaturgo é a “inclusão” de novos materiais literários. Identificada como um acréscimo de um “corpo estranho”, esse procedimento pode ser entendido como o mais delicado no que se refere ao debate sobre a autoria, pois pode, se não estiver bem justificado, e se não for esse o propósito, fazer o espectador atribuir ao autor do romance algo que não nasceu da sua escrita, muito menos daquela obra. Os casos de acréscimo extratextual reforçam, sem dúvida, a ideia de que há uma nova autoria para as transposições dramatúrgicas. Apesar de provavelmente não ser uma característica dessa experiência, cabe sublinhar qe os casos extremos desta natureza de alteração acontecem, em geral, quando o trabalho dramatúrgico seleciona uma personagem ou um

acontecimento e cria uma segunda obra, plenamente autónoma da obra original. Nestes casos, seria mais acertado afirmar que estamos diante de dramaturgias que são consequência mais de inspirações do que de um processo de transposição teatral.

A “exclusão”, “inclusão” e “transferência” são operações que atuam sobre a estrutura do texto. Há uma quantidade de interferências, além das “costuras”, que atuam sobre o “corpo” do texto, como, por exemplo, a mudança dos tempos verbais, a mudança da pessoa responsável pela narrativa, a mudança do texto para uma relação dialógica, o ajuste linguístico com adições de conjunções, locuções e preposições, o uso repetido de fragmentos do texto e expressões e a distribuição do relato por personagens e narradores, que não são indicados na obra original. Para esse conjunto de procedimentos usaremos o termo “reformulações”.

A “divisão” da narrativa e a sua “distribuição” por vários atores/personagens pode gerar uma relação dialógica quando é feita, através das ações cênicas e vocais, em direção a outro ator/personagem. O relato quando está organizado dessa forma pode, portanto, produzir um efeito de diálogo entre as personagens ou, quando encaminhado diretamente para o público, um efeito narrativo.

O narrador pode (e deve) dirigir-se à plateia e também à encenação, quando realça o vínculo entre sua atuação e a situação narrada. A alternância entre público e cena evidencia o destinatário do mundo representado no palco, amplia o envolvimento no narrador com o material narrado, abrindo passagem para o comentário e a crítica, reconhecendo essa postura como herança de Brecht (DIAS 2015:74)

Já referida dentro do conjunto de reformulações que podem ocorrer no trabalho de transposição, destacaremos como última operação a “dramatização” da narrativa. Essa operação busca uma identificação com as características do drama enquanto género literário e prioriza o aqui e o agora do fenómeno teatral. Conforme as considerações do ensaísta e professor Carlos Alves dos Reis na sua obra a Construção

da Narrativa Queirosiana. O Espólio de Eça de Queirós, feita em colaboração com Maria do Rosário Milheiro, as características do drama, distintas da narrativa, apontam para a concentração temporal, a articulação eminentemente dialógica, ao privilégio do presente em detrimento o passado, ao desvanecimento do enquadramento espacial e social da ação, “a ausência de um sujeito transcendente aos fatos representados (o

ideológica, capaz de insinuar as ocultas dos eventos e os significados que eles encerram.” (REIS1989:184)

Diferente da alternância da narrativa que provoca um efeito dialógico, a dramatização prioriza o diálogo real entre as personagens e atenua, ou mesmo anula, vestígios da existência do autor e a presença de uma narrativa estranha à fábula que transcorre. O principal procedimento da dramatização é a mudança do discurso indireto em discurso direto e a imputação de determinada fala a um personagem, que a faz condicionada a uma circunstância ficcional, portanto, mais distante tanto do épico brechtiano como do gesto do rapsodo, conforme o conceito de Jean-Pierre Sarrazac desenvolvido em O futuro do drama.

A pulsão rapsódica na escrita – ou no espetáculo – corresponde a esta tentativa, de longe a longe reiterada, de recuperar o descontínuo – ou o desunido – que preside originariamente à relação teatral. Reabrir o palco original do drama, desobstruí-lo da hiperdramaticidade do diálogo do teatro burguês. Deixar uma ou outra voz para além da das personagens, abrir caminho. Não é de modo algum a do sujeito épico de Szondi, essa é ainda uma voz excessivamente dominada e, afinal, demasiada abstracta, mas sim a voz hesitante, velada, balbuciante do rapsodo moderno. (SARRAZAC 2002:234)

Apesar da distância da voz do autor, a dramatização que nos parece mais usual nos dias de hoje não tem o interesse em espelhar o formato do drama absoluto, que Peter Szondi identificou em crise por vota de 1880, na sua obra Teoria do drama

moderno. Um drama marcado por um diálogo fechado na individualidade em que o actor não reconhece a presença da plateia, e que, portanto, não escapa minimamente do contexto da ficção e não tem a possibilidade de contar, descrever e até mesmo criticar, pois está fechado em uma atmosfera ilusionista asfixiante, que o teatro ocidental conheceu por muito tempo como norma para a arte dramática. Pensamos que o predomínio da dramatização em transposições mais recentes não impede o acolhimento, em algum grau, do sistema narrativo em que “o público é o interlocutor privilegiado, a relação “olho no olho” entre personagens no palco transfere-se para “olho no olho” entre ator/narrador/personagem e público. A ponte obstruída pela “quarta parede” é novamente aberta.” (ABREU 2000:124)

Para complementar o vocabulário relativo aos procedimentos que apresentamos, vamos relacionar alguns termos usados pela pesquisadora Linei Hirsch, que se

relacionam com os que citamos acima. São eles: a “condensação” que está associada ao procedimento de “exclusão”, já que indica uma diminuição ou resumo de determinados elementos da estrutura narrativa; a “ampliação” que estabelece uma directa relação com o procedimento da “inclusão” pois prevê, na visão de Hirsch, que seja trazido ao universo dramático aspectos de outras obras. O procedimento da “ampliação” seria o oposto ao da “condensação”; o procedimento da “fragmentação” que implica na extração de uma unidade e o seu posterior fracionamento e a sua redistribuição pela obra dramática. Este procedimento está associado ao da “repetição”, dentro do conjunto das possíveis “reformulações”, mas identificamos que, na proposta de Hirsch, ele é mais específico ao combinar a extração com a fragmentação de uma determinada unidade; a “associação” que é análogo ao procedimento de “transferência”. Na visão de Hirsch, a “associação” é procedimento oposto ao da “fragmentação” e tem por objetivo “unir episódios que se encontram em capítulos diferentes, na obra de base e colocá-los em uma ordem sequencial na peça. Este procedimento permite ao dramaturgo alterar a Trama, sem, com isso, alterar a Fábula da obra de base.” (HIRSCH 2000:152)

Como podemos observar, o vocabulário usado para essas operações divergem na nomenclatura, mas, praticamente, identificam um mesmo conjunto de ações. Esse levantamento, que não tem intenção de estabelecer um manual sobre as operações realizadas nas transposições, nos interessa na medida em que clarifica e aponta os procedimentos de que faremos uso no trabalho final de construção da nossa dramaturgia.