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Sobre as diferenças e semelhanças entre o romance e a peça de teatro

CAP 2 O ROMANCE COMO PRINCÍPIO ESTRUTURANTE DA DRAMATURGIA

2.3 Sobre as diferenças e semelhanças entre o romance e a peça de teatro

O teórico Décio de Almeida Prado inicia o seu artigo sobre a personagem no

teatro, na obra O personagem de ficção, afirmando que “as semelhanças entre o romance e a peça de teatro são óbvias.” (PRADO 2014:83). Em uma síntese explícita, o teórico conclui que as duas formas literárias narram uma história, que aconteceu a um certo número de pessoas, em algum lugar e em algum tempo. Afirmação que nos remete aos aspectos da narratividade e da temporalidade, tão caros ao filósofo Paul Ricoeur. Segundo Almeida Prado, a partir dessa base é possível imaginar que um autor pode decidir, em função de suas inclinações pessoais, por escrever um romance ou uma peça

de teatro. Ele nos lembra que “não é raro, aliás, ver adaptações do romance ao palco; e se a recíproca não é verdadeira, deve-se isso, provavelmente, antes de mais nada a motivos de ordem prática.” (PRADO 2014:84)

A pesquisadora Luciana Ferreira Leal nos seus estudos sobre os elementos do trágico na obra de Eça de Queiroz se pergunta por que motivo o grande autor da língua portuguesa, que tecia uma prosa “intensa, plena de dramaturgia e vigor, flexível, maleável, encantadora e plena de traços descritivos, traços capazes de criarem realidade e representação (LEAL 2006:95), escreveu romance e não drama? A estudiosa busca respostas e encontra pistas das supostas razões que levaram Eça de Queiroz a deixar incompleto o extenso esboço de uma possível dramatização do romance Os Maias. Para Ferreira Leal um problema seria o facto de que a extensão conservada da obra original no esboço contrariava a economia exigida e conveniente à representação dramática. Ela ressalva ainda que se o autor tivesse que reduzir as ações para alcançar uma contenção dramática, ficaria prejudicada “a tendência crítica e explicativa do panorama histórico- social, assim como das personagens que figuram no romance.” (Ibidem 94)

Ao aprofundar os seus estudos sobre Eça de Queiroz a pesquisadora sublinha que é possível justificar a preferência do escritor pela produção no género romanesco,

[…]primeiro, pela possibilidade de tratamento mais ampliado de espaço e de tempo que as narrativas implicam, depois, pelas intenções críticas que proporcionam. Atente-se para as delongadas caracterizações do passado e precedentes culturais de certas personagens como Pedro da Maia, Maria Monforte, Genoveva, Pedro da Ega, Amélia, Amaro, etc., a fim de assinalar suas motivações; atente-se, também, para a predileção que os realistas naturalistas têm pelo género romanesco. Afigura-se dispensado de demonstração, que o modo dramático tolheria a vastidão e intensidade do universo queirosiano e também que as particularidades essenciais que caracterizam o género dramático poderiam não abarcar o conjunto de ideias e valores buscados pelo Realismo/naturalismo. Diferentemente da narrativa, o drama tende à concentração de tempo e espaço, à forma dialogada, à valorização do presente, à eliminação do narrador. O estratagema discursivo do drama é diferente do estratagema da narrativa. (Ibidem 96)

Quando Décio de Almeida Prado se refere à peça de teatro ele, possivelmente, tem em mente um determinado formato literário que é mais apropriado para se levar ao palco, talvez um formato ainda condicionado às unidades aristotélicas. Nesse sentido, podermos concluir que o teórico está falando das semelhanças entre o romance e o drama. Não podemos perder de vista que nos dias de hoje a peça de teatro não possui

história. Nesse caso, só é possível pensar na semelhança entre o romance e a peça de teatro no que diz respeito aos parâmetros básicos da relação entre o leitor e a obra.

As semelhanças apontadas por Décio são mesmo óbvias, mas será que, nos dias de hoje, ainda é pertinente pensar na comparação de géneros que trocam tão intensamente? Mas, quando o drama deixa de dramatizar, e o pleonasmo é propositado, e o romance já é acolhido pelo palco no seu estado original, ou quase, talvez não seja mais tão necessário identificar as diferenças e semelhanças literárias entre a peça de teatro e o romance. Vejamos um pouco da história do romance. Segundo o professor Vitor Manuel de Aguiar e Silva, o romance até o século XVIII, inegavelmente, era um género sem muito prestígio e conceituado como uma obra frívola, apesar de ser reconhecido pelo seu poder de narrar. Inclusive, esse poder era temido por ser “um perigoso elemento de perturbação passional e de corrupção dos bons costumes, razões por que os moralistas e os próprios poderes públicos o condenarem asperamente.” (AGUIAR E SILVA 1973:255). Sobre os “perigos da leitura” silenciosa de um romance, que marcou a transformação do habito de recepção colectiva para a individual, na passagem do século XVII para o XVIII, especialmente para as mulheres, conforme também é referido por Roger Chartier no seu estudo sobre a passagem do teatro do

palco à página, Aguiar e Silva destaca que o romance medieval, renascentista e barroco, que era destinado fundamentalmente ao público feminino e que servia como motivo de entretenimento e fuga da realidade, já despertava cuidados, muito antes do romance moderno. O douto professor português revela que, em 1531, uma provisão real espanhola proibiu que fossem levados quaisquer romances para o Novo Mundo, por considerar extremamente perigosa a sua leitura pelos índios, e que, em 1666, um moralista publicou em uma obra que “um fazedor de romances e um poeta de teatro é um envenenador público, não dos corpos, mas das almas dos fiéis.” (Ibidem 255). O tempo avança e na segunda metade do século XVII e início do século XVIII os valores da estética clássica se flexibilizam ao mesmo tempo que um novo público, com novos gostos artísticos – um público burguês – se afirma definitivamente. Nesse tempo, o romance género literário “de ascendência obscura e desprezado pelos teorizadores das poéticas”, conhecerá uma profunda transformação. O romance inverosímil, de caráter fabuloso, entra em crise e as obras realistas de narrativas mais verossímeis conquistam o gosto do público. Para o professor Aguiar e Silva, no fim do século XVIII quando “o romantismo se revela nas literaturas europeias, já o romance conquistara, por direito

próprio, a sua alforria e já era lícito falar de uma tradição romanesca.” (AGUIAR E SILVA 1973:258). Entretanto, será apenas no século XIX, no auge do romance realista e naturalista, que a narrativa romanesca conhecerá a glória, atingirá o seu período mais esplendoroso, e, definitivamente, se afirmará “como uma grande forma literária, apta a exprimir os multiformes aspectos do homem e do mundo”. (Ibidem 259). Mas toda a notoriedade do género entraria em crise na passagem para o século XX. As transformações do romance moderno atingem especialmente aos modelos considerados clássicos do século anterior e com as novas técnicas de narrar, de elaborar a intriga e apresentar as personagens, que acompanham as transformações do indivíduo e da sociedade, se instaura uma crise sem precedente no género, que pode até apontar para um possível esgotamento, mas não chega a abalar a sua supremacia.

Segundo alguns críticos, o romance actual, depois de tão profundas e numerosas metamorfoses e aventuras, sofre de uma insofismável crise, aproximando-se do seu declínio e esgotamento. Seja qual for o valor de tal profecia, um facto, porém, não sofre contestação: o romance permanece a forma literária mais importante do nosso tempo, pelas possibilidades expressivas que oferece ao autor e pela difusão e influência que alcança entre o público. (Ibidem 261)

Para o sociólogo Antônio Candido, o romance desde o século XVIII até o século XX rumou para uma mudança que consistiu “numa passagem do enredo complicado com personagem simples, para o enredo simples (coerente, uno) com personagem complicado.” (CANDIDO 2014:60). Podemos verificar que, sob esse ponto de vista, o estudioso brasileiro sugere uma aproximação do romance moderno ao drama. Mas, ainda que, em sua grande maioria, o romance seja uma obra excessivamente narrativa e excessivamente complexa, isso não pode mais ser visto como um obstáculo para o processo teatral, até porque, para os palcos de hoje, o romance para se tornar uma peça de teatro não precisa mais do drama. O romance tornou-se tanto “a principal personagem do drama da evolução literária na era moderna” (BAKTHIN 2014:400) como também a própria personagem do drama.

O romance contém, ou melhor, sempre conteve, o drama e todos os outros géneros literários. O romance pode, inclusive, reduzir o “elemento narrativo à simples indicação cênica para os diálogos da personagem.” (Ibidem 77). O drama do passado já teve tanto muito como pouco do romance, mas no drama de agora o romance nunca

é mais adequado apontar a composição da peça de teatro dramática do passado como um caminho exclusivo para se concretizar um processo de teatralização do romance. Mas, uma vez apresentado o nosso interesse, façamos um esforço para determinar uma semelhança essencial entre o romance e uma peça de teatro dramática, ainda que para isso passemos a olhar para as diferenças e resgatemos alguns princípios consagrados no século passado. Voltemos ao enunciado proposto por Almeida Prado e vamos encontrar uma afirmação correlata na emblemática Teoria da Literatura (1967), do professor Vítor Manuel de Aguiar e Silva, quando defende que “tanto o romance como o drama apresentam personagens situados num determinado contexto, em certo lugar e em certa época, mantendo entre si mútuas relações de harmonia, de conflito etc.” (AGUIAR E SILVA 1973:238). Na comparação dos géneros, o estudioso português ressalva que nos aspectos relativos à estrutura interna e externa o drama e o romance apresentam caracteres distintos muito profundos. Na sua teoria, Aguiar e Silva admite a relatividade de qualquer divisão ortodoxa dos géneros, mas, em uma perspectiva que nos remete à divisão aristotélicos e aos pensamentos hegelianos, não deixa de propor diferenças entre os resultados literários do romance e do drama, que sintetizamos no quadro abaixo.

Romance Drama

Representa a interação do homem e do meio histórico e social que integra. Relevância na representação da sociedade, do ambiente, costumes, hábitos, dos aspectos miúdos da existência, dos pequenos fatores que caracterizam uma situação. É o universo da “totalidade dos objectos”.

Representa a totalidade da vida, mas através de ações humanas que se opõem, de forma que o fulcro daquela totalidade reside na colisão dramática. Relevância na representação do homem e das tensões antagónicas, dos momentos de exaltação e de crise da vida. É o universo da “totalidade da vida”.

As personagens são descritas e as ações e os eventos são contados.

As personagens ganham vida através dos corpos dos actores que praticam as acções O autor domina as suas personagens e tem

a possibilidade de penetrar na sua intimidade mais recôndita e devassar as suas razões inexprimíveis.

O dramaturgo não domina as suas personagens que se revelam pela voz, pelo gesto e pela a encenação.

Importância do elemento regressivo na cronologia.

Importância do elemento progressivo na cronologia.

Tempo longo, arrastado, de degradação dos caracteres, dos sonhos e dos ideais dos homens.

Tempo curto, condensado, de conflito e luta inevitável do homem.

O público é um leitor isolado que lê a obra segundo seus interesses.

O público é um espectador que se congrega com outros.

Quando abordamos essa comparação é impossível não fazer um paralelo com as distinções entre o épico e dramático apontadas por Brecht no seu último texto teórico, que completa setenta anos em 2018, Pequeno organon para o teatro.

Sobre as semelhanças entre o romance e o drama, a pesquisadora Lucrécia Ferrara, no seu artigo Literatura em cena, que integra as reflexões sobre a Semiologia

do teatro, identifica que ambas as formas estão apoiadas em critérios de organização de estruturas especificamente literárias, que ambas assumem um caráter de representação do universo e dos conflitos humanos, e que ambas podem ser intercambiadas, ou seja, “podemos ter uma narrativa encenada e um drama lido por alguém distante de qualquer aparato da cena.” (FERRARA 2006:193). Na sua análise sobre as diferenças entre os géneros, Ferrara recupera os pontos apresentados na teoria literária de Aguiar e Silva e sustenta que eles não representam distinções rigorosas e ressalta que não se pode perder de vista que “entre a narrativa e o teatro temos uma tradução do que é verbal em elementos plásticos, gestuais, sonoros etc. Apenas a hegemonia do signo verbal permite fazer do teatro uma sucursal frustrada da narrativa e/ou da literatura.” (Ibidem 196). Sua posição deixa evidente que ao observarmos o fenómeno teatral pelo viés da semiologia, a obra dramática fica em menor evidência, pois o sistema de signo linguístico que intervém através do texto, entrará em combinação com um outro sistema de signo próprio do teatro. Para a pesquisadora uma busca pelas diferenças entre o romance e o drama, como géneros literários distintos, acaba por não considerar as “especificidades do teatro na sua relação com o texto literário, mas admite subjacentemente que este ocupa em cena a posição central e os demais recursos são acessórios destinados a tornar o significado dramático agradável aos olhos e/ou de mais fácil apresentação.” (Ibidem 204). Continuemos com o foco na literatura e nas definições de Almeida Prado e Aguiar

aceitar que ação e a fábula podem não estar na linha de frente dos géneros literários, mas sempre haverá quem conta e quem lê/escuta e, portanto, haverá um grau mínimo de ficção. Estamos cientes que a “ficção define-se nitidamente como tal, independentemente das personagens” (ROSENFELD 2014:27), mas vamos acompanhar o pensamento de Rosenfeld e defender a ideia de que a personagem é a representante primordial dessa ficção. Segundo o crítico e ensaísta germano-brasileiro, “a descrição de uma paisagem, de um animal ou de objetos quaisquer pode resultar, talvez, em excelente “prosa de arte”. Mas esta excelência resulta em ficção somente quando a paisagem ou o animal […] se animam e se humanizam através da imaginação pessoal. (Ibidem). A personagem, também para o professor Aguiar e Silva, constitui um elemento indispensável da narrativa romanesca, apesar de o nouveau roman (romance neorrealista e existencialista) ter conduzido até um grau extremo o processo de deterioração desse elemento (AGUIAR E SILVA 1973:277). Para o estudioso português, a crise da personagem acompanha a crise da própria noção filosófica de pessoa que, por sua vez, é

[…] reflexo da crise ideológica, ética e política que vem minando a sociedade ocidental contemporânea – crise que alcançou o paroxismo com a sociedade neocapitalista dos nossos dias, dominada por uma tecnologia cada vez mais tirânica, regida pelo ideal de consumo crescente de mercadorias e serviços e comandada por uma capital cada vez mais anónimo, mais identificado com gigantescos empreendimentos técnico-econômicos de carácter multinacional e, por isso mesmo, cada vez mais brutalmente desumano. Nesta sociedade tecnoburocratizada, carecente de motivações éticas profundas, onde o homem sofre e não age, onde a reificação vai implacavelmente alastrando, o romance não poderia retratar personagens segundo os moldes e os valores da sociedade burguesa e liberal dos séculos XVIII e XIX.” (Ibidem 279)

A personagem do drama obviamente não estaria a salvo dessa triste realidade traçada por Aguiar e Silva. Se a presença do actor é uma condição indiscutível no teatro, podemos transferir essa condição também para a personagem. Conforme a pesquisadora Maria Lúcia Candeias, no seu estudo sobre a Fragmentação da personagem no texto

teatral, “se não há teatro sem ator, também não o há sem personagem. Pois o ator investido desta função, mesmo num teatro sem texto escrito, assume sempre um papel ficcional, uma personagem.” (CANDEIAS 2012:19). Independentemente das distinções que possa haver entre todos os elementos que compõem o romance e o drama, inclusive sobre a construção e as diferentes modalidades da personagem, a nosso ver, esse elemento oferece aos géneros um ponto de intersecção indubitável, que está na base da comparação das duas narrativas. Rosenfeld sublinha que “em todas as artes literárias e

nas que exprimem, narram ou representam um estado ou estória, a personagem realmente “constitui” a ficção. Contudo, no teatro a personagem não só constitui a ficção, mas “funda”, onticamente, o próprio espetáculo (através do ator)” (CANDEIAS 2012:19). No teatro a “personagem existe como imaginário na atividade mental do espectador” (GUÉNOUN 2014:101), e por correspondência, podemos compreender o mesmo sucede com a atividade mental do leitor do romance. Vamos finalizar essa questão recuperando uma formulação do literato Antonio Candido sobre a personagem do romance, que, a nosso ver, poderia ser cabível perfeitamente para a personagem do drama, e por extensão ao personagem do teatro:

A personagem é um ser fictício, – expressão que soa como um paradoxo. De fato, como pode uma ficção ser? Como pode existir o que não existe? No entanto, a criação literária repousa sobre este paradoxo, e o problema da verossimilhança no romance depende desta possibilidade de um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão da mais lídima verdade existencial. Podemos dizer, portanto, que o romance se baseia, antes de mais nada, num certo tipo de relação entre o ser vivo e o ser fictício, manifestada através da personagem, que é a concretização deste. (CANDIDO 2014:55)