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O Romance como um género em devir e um fenómeno plural segundo Bakhtin

CAP 2 O ROMANCE COMO PRINCÍPIO ESTRUTURANTE DA DRAMATURGIA

2.1 Sobre o surgimento, o conteúdo de representação e a linguagem do romance

2.1.3 O Romance como um género em devir e um fenómeno plural segundo Bakhtin

O estudo do linguista russo Mikhail Bakhtin lança um repertório de questões sobre a condição do romance na modernidade, entretanto, para essa investigação, duas formulações, em especial, mereceram a nossa atenção: o romance como um género em “devir” e como um fenómeno plural. Para Bakhtin, “o romance é o único género por se constituir, e ainda inacabado” (BAKHTIN 2015: 397). Essa incompletude da estrutura de composição seria, na visão do filósofo o principal aspecto da sua poeticidade. Para ele, o romance é um género que está em processo, em “devir”, que está directamente ligado ao tempo presente e, por isso, em permanente reformulação e evolução. Ao considerar o romance como género em “devir”, o principal objetivo de Bakhtin “é apresentar uma estrutura poética cujas possibilidades plásticas ainda não foram totalmente exploradas. Quer dizer, o romance é um género novo constituído a partir das línguas vivas e das novas formas de recepção advindas da escrita e do livro.” (MACHADO 1990:140)

Uma das premissas do romance seria, portanto, a flexibilidade da sua forma e dos temas que trata. Essa característica do romance confere ao género, além de uma jovialidade, uma capacidade de refletir com profundidade e agilidade sobre a realidade do mundo em que está inscrito. Para Bakhtin, “o romance é o único género em evolução, por isso ele reflete mais profundamente, mais substancialmente, mais sensivelmente e mais rapidamente a representação da evolução da própria realidade. Somente o que evolui pode compreender a evolução.” (BAKHTIN 2014:400)

O romance, para Bakhtin, é uma síntese das representações formadas no passado e a semente das futuras. É um género que se desenvolve a partir de um diálogo com o tempo. Para ele, o romance é um género transtemporal, que não está aprisionado em nenhum tempo. Por manter uma ligação com os elementos do presente inacabado o romance nunca se enrijece, está sempre em transformação. O romance, para Bakhtin, é um género que estaria sempre “desacomodado”.

O romancista gravita em torno de tudo aquilo que não está ainda acabado. Ele pode aparecer no campo da representação em qualquer atitude, pode representar os momentos reais da sua vida ou fazer uma alusão, pode se

intrometer na conversa das personagens, pode polemizar abertamente com os seus inimigos literários, etc. (Ibidem 417)

A versatilidade do romance, a sua vinculação, enquanto obra de arte, aos elementos histórico-sociais e culturais, enfim, a sua ligação com a realidade, segundo Bakhtin, acabaram por contaminar os demais géneros literários, inclusive o drama, trazendo-lhe mais possibilidades poéticas. Essa contaminação, que não está restrita à literatura uma vez que alcança o cinema e o teatro, pode ser entendida como um processo de “romancização” dos géneros. Mas, conforme esclarece Bakhtin, não uma contaminação que irá gerar uma estrutura canônica aos outros géneros, até porque, para o estudioso russo, o próprio romance já está livre de um cânone e é anacrónico. Ao contrário, esse processo gerará uma contaminação que liberta os demais géneros de uma convenção rigorosa, necrosada e amorfa, que não permite a sua evolução. “Diante do romance todos os géneros começam a ressoar de maneira diferente. Tem início um longo conflito pela romancização dos outros géneros, pelo engajamento deles na zona de contato com a atualidade inacabada. O curso deste conflito será complexo e sinuoso.” (Ibidem 427)

O romance tornou-se o principal personagem do drama da evolução literária da era moderna precisamente porque, melhor do que todos, é ele que expressa as tendências evolutivas no novo mundo, ele é, por isso o único género nascido naquele mundo e em tudo semelhante a ele. (BAKHTIN 1988:400)

Sobre o processo de romancização do drama, cabe lembrar que, para a pesquisadora Muriel Plana, é “incontestável que, durante os dois últimos séculos o romance ajudou a modernização da forma dramática e a sua renovação, mas Bakhtin, pressupondo sua superioridade libertadora, negligencia a importância da teatralidade.” (PLANA in SARRAZAC 2012:169)

Uma outra característica verificada pelo filólogo soviético no romance do século XX, formulada, principalmente, através da análise das obras de Dostoiévski, no que diz respeito ao estilo e à língua e à vocalização, é a sua condição de fenómeno plural quando apreendido na sua totalidade. Segundo Bakhtin, a composição do discurso do romance não está consolidada em uma estrutura canônica, premissa elementar dos

géneros poéticos. “O romance, tomado como um conjunto, caracteriza-se como um fenómeno pluriestilístico, plurilingue e plurivocal.” (BAKHTIN 2014:73)

Sobre a pluralidade estilística, Bakhtin aponta que os principais tipos de unidades estilísticas de composição nas quais o romance se divide são cinco: a narrativa direta e literária do autor (em todas as suas variedades multiformes); a estilização de diversas formas de narrativa tradicional oral; a estilização de diversas formas de narrativa (escrita) semiliterária tradicional (cartas, diários, etc.); outras formas literárias, mas que estão fora do discurso literário do autor: escritos morais, filosóficos, científicos, declamação retórica, descrições etnográficas, informações protocolares, etc; os discursos das personagens estilisticamente individualizados. O género romanesco promove uma combinação dessas unidades estilísticas, que transportam um acento do estilo do todo e participam da estrutura e da revelação do sentido único desse todo. Essa combinação, segundo Bakhtin, é a responsável pela originalidade de cada obra. Portanto, “o estilo do romance é uma combinação de estilos; sua linguagem é um sistema de “línguas”. Cada elemento isolado da linguagem do romance é definido diretamente por aquela unidade estilística subordinada na qual ele se se integra diretamente: o discurso estilisticamente individualizado do personagem, por uma narração familiar do narrador, por uma carta, etc.” (BAKHTIN 2014:74). O romance como um fenómeno plural converge para “a verdadeira premissa da prosa romanesca está na estratificação interna da linguagem, na sua diversidade social de linguagens e na divergência de vozes individuais que ela encerra.” (Ibidem 76). Sobre a característica plurilíngue do romance, vale ressaltar que, para Bakhtin, a estratificação de cada “língua” em cada momento dado de sua existência histórica constitui uma das premissas indispensáveis do género romanesco. Por conter uma diversidade social de linguagens, às vezes de “línguas” e de “vozes” individuais, organizadas artisticamente, o romance possui um conjunto de falas que representam diferentes épocas, gerações, tendências, grupos sociais e profissionais, que, uma vez combinadas, explicitam o plurilinguismo social e histórico do género, e favorecem que o romance possa explorar “todos os seus temas, todo o seu mundo objetal, semântico figurativo e expressivo.” Para Bakhtin, o plurilinguismo no romance é percebido pelo conjunto de diferentes linguagens que formam o discurso do prosador-romancista. Para Bakhtin, o romance admite introduzir na sua composição diferentes géneros, tanto os literários como os extraliterários, e a presença intercalada desses também representa uma das formas mais substanciais de

introdução e organização do plurilinguismo no romance. Uma vez que entraram no romance, os géneros “conservam habitualmente a sua elasticidade estrutural, a sua autonomia e a sua originalidade linguística e estilística” (Ibidem 124), e, de um modo novo, potencializam o plurilinguismo. O discurso do autor, os discursos dos narradores, os géneros intercalados, os discursos das personagens não passam de unidades básicas de composição com a ajuda das quais o plurilinguismo se introduz no romance.” (Ibidem). Portanto, o plurilinguismo se introduz no romance pelas diferentes vozes e pensamentos das personagens e se arranja a partir de unidades composicionais, que são as responsáveis pela variedade de estilos. Através das vozes e dos pensamentos das diferentes personagens o romance se faz plurivocal. Por essa forma, Bakhtin afirma que o plurilinguismo penetra no romance “em pessoa, e se materializa nele nas figuras das pessoas que falam, ou, então, servindo como um fundo ao diálogo, determina a ressonância especial do discurso direto do romance.” (BAKHTIN 2014:134)

Uma das principais características do género romanesco, segundo Bakhtin, reside no aspecto falante do homem. Para ele, “o homem do romance é essencialmente o homem que fala” (Ibidem), e, junto com a sua palavra, é o principal objecto do género romanesco, é esse homem que caracteriza e que confere originalidade estilística ao género. Sobre o homem e a sua palavra, Bakhtin destaca três momentos. O primeiro é que “o discurso do sujeito falante no romance não é apenas transmitido ou reproduzido, mas representado artisticamente e, à diferença do drama, representado pelo próprio

discurso (do autor).” (Ibidem 135). O segundo momento se refere ao facto de que o “sujeito que fala no romance é um homem essencialmente social, historicamente concreto e definido e seu discurso é uma linguagem social (ainda que em embrião), e não um “dialeto individual”.” (Ibidem). O terceiro momento diz respeito ao conteúdo da fala. As palavras que o sujeito fala no romance representam um “ponto de vista particular sobre o mundo, que aspira a uma significação social.” (Ibidem). Para Bakhtin, O sujeito que fala no romance é sempre, em alguma medida, um ideólogo. As linguagens plurais que são encontradas no romance conferem ao género uma natureza marcada pela bivocalidade. O plurilinguismo no romance é o “discurso de outrem na linguagem de outrem” (Ibidem 127), e a palavra oriunda desse discurso serve a dois locutores, ao mesmo tempo, e exprime simultaneamente duas intenções: “a intenção direta do personagem que fala e a intenção refrangida do autor. Nesse discurso há duas vozes, dois sentidos, duas expressões.” (Ibidem)