• Nenhum resultado encontrado

Os dois sentidos da dramaturgia, segundo Joseph Danan

CAP 1 A ACEPÇÃO DO TERMO DRAMATURGIA NO TEATRO CONTEMPORÂNEO: UM TECIDO COM MUITAS PONTAS.

1.1 Interrogar o conceito de dramaturgia: Joseph Danan, Jean Pierre Sarrazac e Bernard Dort

1.1.3. Os dois sentidos da dramaturgia, segundo Joseph Danan

No fim do século XIX e início do século XX chegamos ao ponto de viragem do drama e iniciamos o processo de reconhecimento de uma dramaturgia desdramatizada que marcará a segunda metade de novecentos. Mas antes de avançarmos para os aspectos essenciais acerca do nosso tema que ocorreram no século XX, considero fundamental, sobre a noção de Dramaturgia, ressaltar os dois diferentes sentidos apresentados por Joseph Danan no seu ensaio intitulado Qu`est-ce que la dramaturgie? Para Danan, o termo Dramaturgia possui dois sentidos básicos que estão em permanente articulação: o sentido 1 (primeiro) se refere à noção mais tradicional do termo, à função do autor dramático, Dramatiker em alemão, e está “ao lado do texto”. Já o sentido 2 (segundo), na esteira da experiência de Lessing, e posteriormente de Piscator e Brecht, diz respeito à função do Dramaturgista, aquele que não é autor da obra, mas que trabalha intensamente em função dela, estando ligado ao processo de "passagem do texto à cena". Para apresentar o seu estudo Danan usa como linhas de referências duas obras: a Dramaturgia de Hamburgo, já citada, e o texto L`état d`esprit dramaturgique, de Bernard Dort.

Danan nos lembra que a reflexão de Dort sobre a noção actual do termo dramaturgia apresentada no texto L`état d`esprit dramaturgique é uma baliza para qualquer estudo sobre o tema, e que se a noção que nos traz por um lado é “extremamente vaga”, por outro é “extremamente operativa”. Dort, dois séculos depois de Lessing, actualiza a noção de dramaturgia distinguindo-a tanto da escrita do texto como da própria encenação, uma vez que “o domínio da dramaturgia não é a realização cénica concreta, mas o próprio processo de representação” (DORT 2003:35). Para Dort, a Dramaturgia dos novos tempos é um "estado de espírito" de alcance irrestrito atodos aqueles que estão comprometidos na reflexão e execução do espectáculo. Não está limitada auma única função ou a um acto da encenação. A construção da dramaturgia de um espectáculo, na visão de Dort, compreende os trabalhos de todos os componentes da equipa: atores, encenador, cenógrafo e dramaturgista. Neste sentido, mais clara fica ainda a opção de Dort em não falar em trabalho dramatúrgico, mas sim em “estado de espírito dramatúrgico”. Sua expressão quer traduzir uma qualidade de atenção às potencialidades de um texto quando este é levado para o palco, que todos os que interferem na criação do trabalho devem ter.

Para o nosso hipotético poeta do século XVIII, que acabou de acordar, lembro ao leitor, Dort explicaria esta mudança ocorrida na noção de dramaturgia com as seguintes palavras:

Antigamente, um curso de dramaturgia teria por tema a escrita dramática e por objectivo a composição de peças. Não a sua representação. Mas o centro da gravidade teatral deslocou-se da composição do texto para a sua representação. Por isso, a dramaturgia, hoje, diz menos respeito à escrita da peça – mais exactamente, de um texto, o qual pode não ser uma peça de teatro – do que à sua passagem para a cena, à mutação de um texto em espectáculo: à sua representação, no sentido mais lato do termo. Diz respeito a tudo o que implica essa passagem. (DORT 2003:35)

Sobre a função do Dramaturgista, Dort também faz uma interessante colocação quando aponta esta prática como transitória. “Ela deve ser liquidada no fogo-de-artifício da representação”. Na visão de Dort, o dramaturgista exerce um tipo de prática pedagógica ao fazer com que aqueles que criam no teatro tomem a plena consciência da importância da actividade e tornem-se responsáveis "do ou dos sentidos das suas realizações" (Dort 2003:42). Trata-se de uma tomada de consciência de todo o artista envolvido na realização do espectáculo. Esta tomada de consciência, manifestada e partilhada no processo de ensaio, faz com que seja possível um projecto dramatúrgico

comum, elaborado não antes dos ensaios, mas durante o processo de criação. O ponto de partida para a representação nada mais é do que uma hipótese cénica que será colocada em acção, em jogo, transformada e materializada verdadeiramente nos ensaios onde a sua coerência e eficácia serão colocadas à prova. Desta visão podemos deduzir a importância que Dort confere aos actores no processo dramatúrgico. Uma vez que é através dos seus corpos, reais e presentes no palco, que se transmitirá o sentido final do espectáculo, os actores, portanto, assumem um papel de grande responsabilidade no processo. O sentido da dramaturgia só acontece por causa do jogo dos actores que, nas palavras de Dort, “é a própria carne da dramaturgia”. (DORT 2003:39)

Através do ensaio de Joseph Danan, o leitor pode identificar a linha de raciocínio que aproxima a prática no passado de Lessing ao olhar actual de Dort, um raciocínio que aponta para duas fontes de origem de uma encenação, ou seria mais adequado dizer dois movimentos: um que emana do texto e outro, não menos importante, ao contrário, que emana do palco, estes movimentos “vão ao encontro um do outro e se juntam na representação” (DANAN 2010:27)

Danan, entre outros contributos do seu ensaio, nos traz uma importante distinção entre a estrutura interna de uma peça e o modelo de representação. Apontado pelo próprio como uma noção-chave no seu ensaio, “o modelo de representação” seria uma linha de construção do espectáculo estabelecida antes mesmo da escrita do texto. Seria o mesmo que dizer que para um determinado texto que ainda não foi escrito, de acordo com a “estrutura interna” que será aplicada, eu já saberia dizer como ele será representado. Para tal modelo literário já haveria certo modelo cénico predefinido.

Uma vez que ainda não estamos no tempo da encenação é possível compreender que não havia uma discussão sobre quais os códigos de representação que deviam ser utilizados, que espaço cénico e que relação com o público deveria ter determinada representação. Isto foi exactamente a mudança que surgiu com o advento da encenação, uma liberdade que clama por escolhas estéticas, e que Dort já apontava no seu artigo:

A grande mudança é que desde há mais ou menos um século recusámos todo e qualquer modelo. Não só as categorias textuais e as categorias cénicas já não se correspondem, mas essas mesmas categorias, por assim dizer, já não existem. Um determinado texto já não exige este ou aquele tipo de representação. E uma determinada representação já não supõe tal ou tal tipo de texto. A sua relação subsiste, evidentemente, mas tornou-se singular. É necessário construí-la, reconstruí-la de novo de cada vez. É esse o objecto da nossa dramaturgia. (DORT 2003:37)

Para complementar esta afirmação de Dort, trago a descrição do termo dramaturgia apresentado por Patrice Pavis no seu importante Dicionário de Teatro:

Dramaturgia designa então o conjunto das escolhas estéticas e ideológicas que a equipe de realização, desde o encenador até o ator, foi levada a fazer. Este trabalho abrange a elaboração e a representação da fábula, a escolha do espaço cénico, a montagem, a interpretação do ator, a representação ilusionista ou distanciada do espetáculo. Em resumo, a dramaturgia se pergunta como são dispostos os materiais da fábula no espaço textual e cénico e de acordo com qual temporalidade. A Dramaturgia no seu sentido mais recente, tende, portanto, a ultrapassar o âmbito de um estudo do texto dramático para englobar texto e realização cénica (PAVIS 1999:114)

E a seguir transcrevo uma definição construída pelo próprio Danan, com base nos dois sentidos aplicados por ele para a noção dramatúrgica:

A dramaturgia é o que organiza a ação em função de uma cena, seja ela o feito de um autor dramático, ou de um diretor ou de um “autor cénico” – sendo uma das questões maiores, quando há o drama escrito, a articulação entre a dramaturgia que o articula (ou dramaturgia 1) e a dramaturgia da encenação (ou dramaturgia 2), que inclui não apenas o trabalho do dramaturgo, mas também encenação como dramaturgia em ato, a dramaturgia da cenografia, da iluminação, dos figurinos e aquela, não menor, que comanda o jogo de cada um dos actores ou, mais ainda, produzida por ele. (DANAN 2009: 120)

Finalizo este enfoque sobre a acepção do termo dramaturgia, com mais uma contribuição de Joseph Danan. Ao se perguntar sobre qual seria a função da dramaturgia, uma vez que ela tem de deixar à encenação a liberdade de se exercer e aos actores a liberdade de representar, Danan, afirma que a sua função é delimitar um campo que será o do trabalho dos actores. Na sua visão o saber que é proporcionado pela dramaturgia:

[…] deve dissolver-se neles alimentando-os. Do mesmo modo, quando escrevemos, não anulamos o nosso saber, mas esquecemo-lo por um tempo. Este saber, que constitui o que nós somos, “deve passar para o sangue” para fazer nascer formas imprevistas da obra e agir no lugar onde se esconde o seu segredo. (DANAN 2010:57)

Considero importante citar que percebo uma ligação entre a amplitude conferida à noção de dramaturgia e outra expressão muito empregada actualmente nos textos sobre teatro: refiro-me ao termo "devir cénico". Através do estudioso Jean-Pierre Sarrazac, passamos a saber que no contexto teatral o "devir cénico" diz respeito à força

e virtualidade cénica contida numa obra dramática ou não. Sobre uma obra que será teatralizada devemos nos perguntar sobre as suas possibilidades de montagem, sobre a sua "abertura ao palco". “Nesse sentido, o devir cénico – reinvenção permanente do palco e do teatro pelo texto – é o que liga mais proximamente, mais intimamente esse texto ao seu “Outro” exterior e estrangeiro. A saber: o teatro, o palco” (SARRAZAC 2012:69). A meu ver, caberia, portanto, ao "estado de espírito dramatúrgico", conforme estabelecido por Dort, desenvolver uma potente "dramaturgia do palco" e explorar ao máximo o "devir cénico" da obra a ser encenada.