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CAP 2 O ROMANCE COMO PRINCÍPIO ESTRUTURANTE DA DRAMATURGIA

2.1 Sobre o surgimento, o conteúdo de representação e a linguagem do romance

2.1.1 O Surgimento do romance segundo Hegel

Quando estudei no mestrado o espectáculo Quixote, do Chapitô, sabia que estava debruçado sobre um marco da história literária, mas não tinha a noção exacta dessa importância. A unanimidade que Shakespeare representa para o teatro parece só encontrar um equivalente na literatura quando nos referimos ao incomparável romance

Dom Quixote. Para além do valor incomensurável das obras destes dois génios da palavra, vale lembrar que os registros apontam uma triste coincidência. Decidiram os

deuses que os dois autores deveriam partir para o Olimpo no mesmo mês e ano, Abril de1616.

Destinos à parte, voltemos ao cavaleiro errante. Como nos lembra o pesquisador Cláudio Magris no seu ensaio intitulado O romance é concebível sem o mundo

moderno?, Dostoiévski afirmava que o romance escrito em 1605, por Miguel de Cervantes (1547-1616), “seria suficiente, sozinho, para justificar a humanidade aos olhos de Deus.” (MAGRIS 2009:1016). Dom Quixote é, portanto, fulcral na história deste género. Ele é considerado pelos estudiosos como a primeira obra a romper com as regras literárias medievais e apresentar, com uma lente de aumento, a subjectividade deste anti-herói que, confinado na sua imaginação, luta sem trégua contra as injustiças sociais.

Quando veio a lume o Dom Quixote, os primeiros leitores riram daquele homem iludido e extravagante, da mesma forma como riram as outras personagens do romance. Agora sabemos que o empenho do Cavaleiro da Triste Figura em ver gigantes em vez de moinhos de vento e em cometer todos os desatinos que comete é a forma mais elevada de generosidade, um modo de protestar contra as misérias deste mundo e de procurar mudá-lo. Os próprios conceitos de ideal e idealismo, tão impregnados de uma validade moral positiva, não seriam o que são – ou seja, valores claros e respeitáveis – se não tivessem encarnado naquela personagem de romance com a força persuasiva que lhe conferiu o génio de Cervantes. (LLOSA 2009:29)

Na visão de Hegel (1770-1831), Dom Quixote é uma referência na literatura quando se pretende compreender de que modo ocorreu a evolução da individualidade. No romance Dom Quixote de La Mancha, Cervantes instaura uma nova perspectiva para os caminhos da literatura.

Dom Quixote possui uma nobre natureza que o espírito de cavalaria leva até á loucura logo que, na busca de suas aventuras, esbarra com as condições firmes imutáveis da realidade exterior. Disso resulta a cómica oposição entre um mundo ordenado pela razão e por uma lógica imanente, de um lado, e de outro, uma alma isolada, com a pretensão de recriar esse mundo fatal à cavalaria, obedecendo aos princípios e regras da cavalaria que quer impor e acabando por se perder. (HEGEL 1993:330)

Para o filósofo Hegel, realista e racionalista, uma vez que acreditava na importância do real e na primazia da razão o desenvolvimento da individualidade, em linhas gerais, está directamente ligado ao embate que o homem travará com o mundo. Tanto maior será a grandeza do espírito humano quanto mais duro for o conflito entre o

para restaurar a paz. Mas esta elevação, pressuposta na poesia épica e ameaçada no romance, só será alcançada quando o homem e o mundo estiverem reconciliados num único objecto, enfim, quando, juntos formarem uma unidade, quando forem o mesmo objecto. Para Hegel, o homem desenvolverá a sua individualidade quando alcançar a união da sua particularidade com a universalidade que o circunda. O filósofo alemão, através da literatura, que para ele é um registro consciente da experiência humana uma vez que é a arte capaz de representar o processo dos seus actos, e não apenas capturar uma atitude como fazem a representação na escultura e na pintura, busca demonstrar na sua teoria, através da análise das acções de alguns personagens icónicos, Dom Quixote é um deles, como se dá no percurso histórico o processo de evolução da individualidade até a sua consolidação no mundo moderno. A teoria de Hegel nos esclarece que a poesia épica tinha como conteúdo a narração de um acontecimento que estava vinculado directamente à totalidade de uma nação, o que tornava vital a relação entre o plano individual e o geral. O indivíduo e a sua nação estão unidos num único corpo e formam um todo orgânico. Os desejos individuais do herói coincidem com os interesses da sua comunidade. De acordo com a visão hegeliana, o herói épico deve ter uma atitude que espelhe o interesse da sua comunidade. Ele deve, antes de tudo, possuir uma visão plena da sua comunidade e ter consciência de que as suas acções particularidades representam o universal. No poema épico a narrativa apresenta com objectividade a realidade observada, sem se deixar manchar por traços de subjectividade. Há na poesia épica a busca por uma convergência entre a acção individual do herói e a totalidade do povo representado, que possui um conjunto fixo e preexistente de normas devidamente reconhecidas e identificadas por todos de forma original e orgânica, mas não opressora e ditatorial. Este aspecto confere ao poema épico um sinal de existência da liberdade individual e a ausência de um autoritarismo estatal. As acções do herói devem resultar num acontecimento que deve ser imprescindível para a sua comunidade. Em geral, pela sua natureza colectiva, os conflitos de guerra são os conteúdos representados nos poemas épicos. Para Hegel, os acontecimentos na obra poética – o todo - derivam simultaneamente da potência do homem, ou da divindade, e das dificuldades enfrentadas por ele. A história da comunidade é a história concreta dos seus heróis. Há uma ligação imprescindível entre a acção do herói, o acontecimento e a expectativa do colectivo. Na epopeia o objectivo das acções do herói, determinado pelo princípio da necessidade, é conhecido a priori pela sua comunidade. Os acontecimentos na vida do herói épico não são de âmbito exclusivamente particular, ao contrário, são de

importância colectiva. É a própria existência destes acontecimentos na construção da sua trajectória, ou, se preferirmos, do seu destino, que interessam ao poema. Dessa forma, podemos compreender que, para Hegel, há na poesia épica um valor fundamental nos acontecimentos enfrentados pela personagem. Para o filósofo a acção está relacionada à convicção, ou intenção. A acção é uma obrigação que a personagem tem em realizar determinado acto, já os acontecimentos, em síntese, representam, para além da própria realização particular, as circunstâncias exteriores que motivam esta acção, que deve ser "individualmente viva e determinada". O resultado que o herói pretende alcançar unido com as circunstâncias exteriores que o motivaram constituem o universo da vontade.

Pois, do ponto de vista épico, o homem não age livremente, para e por si mesmo, mas acha-se mergulhado num conjunto de circunstâncias físicas e morais extremamente unidas e cujos fins e existência fornecem uma base fixa à actividade de todo indivíduo particular. (HEGEL 1993:586)

A acção praticada, como foi dito, não é arbitrária, ela está condicionada ao universo da comunidade, que tem a sua própria história escrita através “de actos concretos, paixões e sofrimentos de seus heróis, os quais, por serem individuais, plasmam a forma e a matéria à realidade” (GALLO 2012:25). Cabe sublinhar, neste contexto, a importância do destino já traçado para o herói épico, diferente do que ocorre no drama, género literário onde o próprio indivíduo é quem definirá o seu destino:

Na poesia lírica faz-se ouvir o sentimento, a reflexão, o interesse pessoal, a melancolia e a tristeza; o drama faz ressaltar objectivamente a justificação interna de uma acção; mas a poesia épica tem por tema a existência total, com toda a necessidade que a condiciona, de modo que não resta ao indivíduo mais do que conformar-se ou não com este estado substancial, e, tanto num caso como no outro, suportar todas as consequências da sua decisão (HEGEL 1993:586)

Claro deve ficar que a unidade da poesia épica está condicionada à fusão efectiva da personagem com a sua acção e à mediação entre a totalidade da comunidade representada e a vontade individual da personagem. Não há fragmentação, não há rupturas no “todo”. A personagem e a comunidade preservam as suas características, mas estão umbilicalmente ligadas. Diferente do drama, na poesia épica há uma síntese entre o particular e o universal. No drama, sucessor histórico da poesia épica, há uma valorização da individualidade. São os valores e os princípios do seu carácter,

considerados cruciais pela personagem, que determinarão as suas acções, praticadas com o exclusivo fim de alcançar os seus interesses particulares. Este percurso é possível de se verificar através da análise das transformações ocorridas nas tragédias gregas, de Ésquilo aEurípides.

Ainda que não seja o nosso principal ponto de interesse na teoria hegeliana, cabe destacar que o filósofo considera que o drama é um género superior, a forma mais perfeita da poesia, uma vez que utiliza a palavra, “o mais nobre instrumento que se possa pôr a serviço do espírito, e une a objectividade da epopeia e a subjectividade da poesia lírica, ultrapassando a ambas sendo mais completo que qualquer delas. Assim, é o drama a expressão poética por excelência” (apud PALLOTTINI 1989:27). Também não é demais lembrar que, quase um século depois de conhecida a teoria hegeliana, será a forma rigorosa deste drama, absolutamente pura, dominada por um diálogo que não aceita a presença de elementos épicos e líricos, vítima de uma grave crise.

De volta à origem do romance, Hegel aponta que gradativamente o interesse do indivíduo vai se distanciando do interesse da comunidade/divindade e as suas acções passam a ser determinadas, exclusivamente, pelas paixões e pelos sentimentos que povoam a sua vida interior. A personagem, isolada do mundo, aos poucos mergulha sem limites na subjectividade, característica fulcral da poesia lírica. A personagem está cada vez mais comprometida com a análise e solução daquele que considera ser “o seu problema”. Ela agora não está mais unida incondicionalmente ao mundo exterior, mas a si mesma. Nesta nova fase a personagem será responsável apenas pelos seus próprios actos. Ela, virada para a sua interioridade, na incansável busca pela verdade se considera “dona de si mesma”. Diferente da arte antiga, que tinha a divindade externa ao homem, é possível dizer que na arte romântica a “alma” da personagem representa o seu elemento divino. Neste novo prisma, o conteúdo representado pela arte romântica se concentra na representação do “homem individual, real, animado de vida interior, que adquire um valor infinito, como único centro onde se elaboram e donde irradiam os eternos momentos daquela absoluta verdade que só se irradia como espírito.” (HEGEL 1993: 293)

Hegel indica que há na arte romântica três diferentes períodos de representação. No primeiro prevalece “O domínio religioso na arte romântica”, no segundo a prioridade da representação é transferida para “A cavalaria” e no terceiro período

encontramos “a independência formal das particularidades individuais”. Neste trajecto a subjectividade sai do isolamento completo da vida humana, passa a se interessar pelos valores e princípios da cavalaria, até chegar ao interesse pelo real e pelo momento presente. Uma caminhada que a afasta dos valores religiosos e a aproxima do que é da esfera do particular.

À medida que o caráter do homem foi se consolidando, o sujeito partiu em busca de aventuras. Estas representam o confronto entre a matéria exterior e a subjetividade infinita, de modo que, a partir delas, podemos observar de que maneira a interioridade se comporta diante da realidade concreta e de seus acidentes. No momento em que as aventuras perseguidas pelos heróis são elevadas às últimas consequências, dissolve-se a arte romântica. A este processo de dissolução, liga-se o romanesco. Este, por sua vez, tem início nos romances pastorais e de cavalaria e o mundo retratado é aquele em cuja vida exterior, submetida às eventualidades, transformou-se numa ordem estável e segura. Estamos, então, chegando à formação da sociedade burguesa e dos Estados. (GALLO 2012:29)

Para Hegel, o romance é a forma que tomará, historicamente, o lugar do romanesco e D. Quixote está exactamente nesta transição, mas falta ainda à personagem de Cervantes a consciência do mundo que o rodeia. O romance, para Hegel, é uma espécie de literatura que está inserida no universo burguês e que melhor representa o mundo moderno. Com toques de lirismo, esta “epopeia burguesa moderna”, na qual a prosa não dá mais conta da poesia da vida pois retrata pequenos e cotidianos acontecimentos de um individuo e não deixa lugar para os grandes desafios de uma nação, é possível verificarmos “transparecer a riqueza e a variedade de interesses, de estados, de caracteres, de condições de vida, assim como todo o plano de fundo de um mundo total e a descrição épica de acontecimentos. Mas ao romance falta a poesia do mundo primitivo que é a fonte da epopeia.” (HEGEL 1993: 597)