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CAPÍTULO 4: UMA ESCRITA TEATRAL PARA O ROMANCE VIVA O POVO

4.1 João Ubaldo e o romance histórico Viva o povo brasileiro

4.1.1 A pulsão teatral da obra

Existem algumas obras que, quando acabamos de ler, temos a nítida impressão de que ela poderia ser apreciada no palco. Isso aconteceu comigo quando li Viva o povo

brasileiro. Não tinha a menor ideia de como poderia ficar o conteúdo daquelas páginas no palco e nem mesmo por onde começar este desafio, mas tinha a plena convicção de que seria um encontro fértil e único na minha trajetória como encenador. Sarrazac chama de “devir cênico” a “abertura de um texto ao palco”, uma espécie de chamado que pode também ser verificado em um texto que não seja dramático. Ele afirma que “o devir cênico – reinvenção permanente do palco e do teatro pelo texto – é o que liga mais proximamente, mais intimamente esse texto ao seu “Outro” exterior e estrangeiro. A saber: o teatro, o palco. (SARRAZAC 2012:69)

Desde o início das leituras, a minha imaginação dialogava com alguma característica literária que eu não sabia identificar de imediato, mas que impulsionava constantemente a minha visão para uma possível cena teatral. Ou seja, a literatura apontava uma certa teatralidade, que era percebida como “a maneira específica da enunciação teatral, a circulação da fala, o desdobramento visual da enunciação (personagem/ator) e de seus enunciados, a artificialidade da representação.” (PAVIS 2003:372). Um encenador, em geral, ao ler uma obra com essas características tem o desejo de compartilhar com outros a sua inquietação. A verdade é que, independente de a obra ser essencialmente narrativa, o efeito que algumas leituras provocam nos nossos

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Entrevista concedida em 11 de Setembro de 2011 à jornalista Isabel Coutinho que revela curiosidades interessantes sobre a vida do autor. http://blogues.publico.pt/ciberescritas/2013/08/12/as-historias-do- grande-ubaldo/ Acesso em 20 de Maio de 2017.

sentidos acaba por revelar que há uma pulsão teatral na escrita que abre uma porta para a sua encenação.

Quantos romances não são repetidamente encenados? O que possui Moby Dick, de Herman Melville, de tão teatral? E Orlando, de Virgínia Woolf? O que dizer, então, das obras narrativas de Franz Kafka, objeto de paixão de tantos artistas do teatro? Repetidamente, diante de diferentes romances, os leitores são contagiados por uma certa teatralidade. Sem mencionar a relação que muitos leitores estabelecem entre o romance e a linguagem cinematográfica, ainda mais comum nos dias de hoje do que a sua articulação com a linguagem teatral. Mas fica a pergunta: quais são os elementos presentes na obra literária que representam esta teatralidade? Por que razão a leitura desses textos, que não foram escritos para serem encenados, apontam para uma potência quadridimensional das situações relatadas?

A teatralidade é uma coisa praticamente indefinível, já que não se trata de um conceito absoluto, mas historicamente relativo – e até, poderíamos dizer, relativo em termos individuais. Nos limites desse princípio de realidade, o que podemos dizer é que existe uma certa possibilidade de sistematização dos fatores em que a teatralidade de um determinado texto se fundamenta mediante o uso da ferramenta de análise. (SINISTERRA 2016: 25)

A meu ver, existe uma certa textualidade de um relato que se comunica com uma possível teatralidade. O desafio é compreender a natureza desse fio que conecta textualidade e teatralidade e saber retirar dessa relação as perceções cénicas necessárias para se definir a materialidade de um espetáculo.

Portanto, a meu ver, a pulsão teatral de uma obra emerge da aproximação da textualidade com o conceito de teatralidade. Haverá uma forma de ler específica para quem planeia realizar uma transposição? Julgo que, ao mergulhar no texto literário, o encenador deve começar por identificar as características da escrita que atraem os mecanismos teatrais. Com certeza, para a concretização de um trabalho artístico dessa natureza é necessário que o encenador tenha a capacidade de, com alguma antecipação, refletir, dentro da sua visão de teatro, quais são os mecanismos de teatralização que serão pertinentes para uma determinada transposição cénica.

A ideia inicial de pulsão teatral sugere algo que está vivo. Captar a atenção de um espectador para uma cena implica estabelecer uma relação directa dos seus sentidos

de transformação, pois tudo o que está vivo se transforma ininterruptamente porque sofre a ação do tempo. Estar vivo é, portanto, sofrer uma transformação enquanto atravessa o tempo. Mas, de volta ao pulsar teatral, não é difícil compreender que a pulsão sugere movimento, deslocamento, pressão, embate e transformação. Para sintetizar esse percurso vou resgatar, no âmbito da escrita, o termo “tensão” como referência. A palavra é originária do latim tensio. Tensão é comummente identificada como o estado do que é ou está tenso, que pode ser consequência do acto de tensionar, fazer algum esforço, mas também pode está relacionado, indirectamente, com tencionar, ou seja, ter uma intenção. Mas também existe tensão naquilo que está em uma situação de conformidade, cadência e equilíbrio. Nesses casos a tensão está controlada. Vale lembrar, como curiosidade, que na medicina a tensão arterial no corpo humano é a pressão que o sangue exerce contra as paredes das artérias, e ela existe independentemente de estarmos em um estado de stress. No âmbito dos estudos da física, a tensão elétrica é o esforço produzido por uma unidade de carga contra um campo elétrico para movimentar uma determinada carga. Tensão, em qualquer dos casos, implica na existência de algum grau de esforço, que pode ser intenso ou suave, contínuo ou intermitente. Mas, para não criar nenhuma tensão nervosa, voltemos ao teatro. O termo tensão é um velho conhecido do drama. Patrice Pavis afirma, quando analisa o verbete no seu Dicionário de teatro, que a “tensão dramática é um fenómeno estrutural que liga, entre si, os episódios da fábula e, principalmente, cada um deles ao final da peça.” (PAVIS 2003:403). Segundo o olhar crítico do estudioso Hans-Thies Lehmann, “no critério da “tensão” sobrevive a concepção clássica do drama, ou mais precisamente um determinado ingrediente dela. Exposição, intensificação, peripécia, catástrofe: por mais antiquado que isso soe, é o que se espera do entretenimento do enredo no cinema e no teatro.” (LEHMANN 2007:53)

Longe de querer recuperar as etapas do drama como género ou entender que essa ferramenta seja a única, ou a ideal, para julgar as qualidades de um texto, avanço com a proposta de que, no que diz respeito ao elemento dramatúrgico, a pulsão teatral de um romance pode ser verificada, assim como o drama, pelo seu grau de “tensão”. Essa tensão, portanto, deve ser entendida mais como uma expectativa do que como choque. Uma tensão que para sofrer uma (dis)tensão deve alcançar uma solução ou superação. Uma tensão que pode ser encontrada tanto em situações de evidente conflito como em situações corriqueiras, como tentar insistentemente descalçar sem êxito uma

bota dos pés. Relacionada ao estado de tensão, entendo que haverá necessariamente uma situação de “oposição” ou resistência. Assim, ao seguir essa lógica, devemos levar em consideração as “oposições” – tensões – que um texto apresenta. Não me refiro às oposições apenas como os conflitos entre duas personagens, como já é prática no estudo mais tradicional da literatura dramática. Penso numa oposição da forma mais inclusiva possível, não aprisionada apenas na ideia do embate direto que as personagens estabelecem através dos seus diálogos e ações.

Podemos encontrar oposições que não sejam verificadas através das personagens, mas que estão presentes na narrativa através da visão do narrador. Dessa forma, no caso de uma dramaturgia de textos narrativos, o interessante é que o leitor/dramaturgo/encenador tenha um olhar mais abrangente e que tente indicar os eixos de oposição presentes na obra e os seus níveis de tensão. Quanto mais polarizações uma obra apresentar, seja de que natureza que for, provavelmente, mais atraente para o teatro ela será e mais formatos dramatúrgicos ela poderá atender.