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Os diferentes estados do texto no teatro contemporâneo

CAP 1 A ACEPÇÃO DO TERMO DRAMATURGIA NO TEATRO CONTEMPORÂNEO: UM TECIDO COM MUITAS PONTAS.

1.2. Os diferentes estados do texto no teatro contemporâneo

A escrita no teatro do último século, contaminada pelos escritores do palco, foi tão transformada que é normal que se tenham repensado e ampliado as denominações associadas ao elemento textual. Se houve um tempo no teatro em que o texto era, sem discussão, a peça dramática que foi escrita para ser representada, esse tempo já está longe. Texto não é mais associado, exclusivamente, ao que está escrito ou ao que é falado. Assim como a dramaturgia, o texto também se desvinculou da escrita. Eugênio Barba recorda nos seus estudos do teatro antropológico que o texto, antes de ter relação com a escrita, significa “urdidura”. Em todo o espetáculo há alguma “costura”, ainda que nenhuma palavra seja dita. Apenas com esse sentido, segundo Féral, não existe, portanto, teatro sem texto. Com a elasticidade da autoria no teatro passamos a dialogar com novas faces da escrita teatral, como, por exemplo, o texto espetacular e o performativo. Denominações mais recentes que remetem ao trabalho do encenador/dramaturgo, mas que também podem ser alinhadas com o chamado teatro não-dramatúrgico, “aquele que é criado diretamente no palco e não a partir de um texto, o que não impede que se possa chegar a ele, no final do processo” (VENDRAMINI 2001:81). É importante sublinhar que José Carlos Vendramini utiliza o termo

dramaturgia vinculado ao texto escrito. Segundo o professor, dramaturgo e encenador brasileiro, “o teatro não-dramatúrgico não quer contar história alguma. Ele se instala no palco enquanto um evento cênico, sem intenção narrativa. Sua recusa do enredo resulta em fragmentação, para que não haja nada linear; porém, se o espectador assim o quiser, nada impede que ele possa estabelecer elos narrativos em sua cabeça.” (Ibidem 82)

Não poderíamos deixar de iniciar por fazer referência ao “texto dramático”. Entendemos que é sensível afirmar que o texto dramático é todo texto que é encenado, já que tantos textos que são convocados para a cena não indicam nada de próximo ao drama. Há textos encenados que não possuem fábulas, diálogos e mito menos conflito. Mas podemos definir, em uma visão generalista, situada na perspectiva ocidental e na ótica logocêntrica de que toda encenação está ligada a um texto escrito pré-existente, como Patrice Pavis utiliza na sua teoria sobre a encenação, que nos dias de hoje consideramos como texto dramático “o texto linguístico tal como é lido enquanto texto escrito, ou tal como o ouvimos pronunciar no decorrer da representação.” (PAVIS 2008:22). Dentro desse entendimento, podemos acolher a herança do drama absoluto e identificar, numa relação de complementaridade, que a parte do texto que é realmente dita pelas personagens é a principal – “texto verbal” – e a outra, que pode ou não servir como indicação cênica, é o texto secundário. Poderíamos ainda considerar, de forma ainda mais abrangente, mas muito usual entre os mais distantes do ambiente teatral, que o texto dramático é aquele que o espectador comum entende como “texto de teatro”, ou seja, uma obra literária, seja do formato que for, que é criada com o intuito de ser representada no palco. Cabe sublinhar, para não pairar dúvida, que não faz sentido igualar o fenómeno teatral ao fenómeno literário, o teatro não corresponde, caso exista um, ao texto que lhe serve de suporte. Do ponto de vista da teoria da comunicação, o texto de teatro é considerado um meio de registo verbal do espectáculo. Conforme destaca o ensaísta Pedro Barbosa, “o texto dramático é sempre uma transcrição

metateatral do espectáculo, aglutinando a dupla função de projecto e de registo temporal deste.” (BARBOSA 2003:24)

Outra terminologia que ganhou importância nos dias atuais, sob influência da abordagem semiótica da arte, que analisa o objecto artístico como um texto, e da antropológica, que recomenda o entendimento de que todas as formas de cultura, inclusive o próprio texto, podem ser consideradas um “texto performativo” (performance texto) ou “texto performático”, ou ainda, conforme encontrado na

tradução da edição brasileira publicada pela Hucitec do Dicionário de antropologia

teatral, “texto da representação”. Em sintonia, como é explícito, com a prática performativa, especialmente da norte-americana, onde se destacam as experiências do encenador Richard Schechner, o “texto performativo”, diferente da tradição escrita ocidental, estabelece relações com um teatro que trata o texto como um elemento “indissociável da representação e que se destacaria sobremaneira no que diz respeito à tradição oriental.” (FÉRAL 2015:247). Um dos exemplos dessa prática, na visão de Schechner, seria o teatro Nô. Segundo o encenador americano, a natureza do texto performativo exige uma materialidade cénica. O texto performativo, termo retomado por Eugênio Barba no teatro antropológico, estaria na posição oposta ao dramático, pois não faz sentido a sua análise enquanto obra literária pré-existente ao evento cênico. O texto performativo estaria mais próximo de uma partitura que regista os movimentos dos diferentes elementos da representação. Um texto que nos remete às partituras musicais de uma orquestra. Conforme a ensaísta franco-canadense, a existência do texto performativo está condicionada ao resultado da encenação, que lhe confere coerência e sentido. Como exemplo de encenadores que adotam o texto performativo como referência para os seus trabalhos, Féral cita, entre outros, Robert Wilson e Robert Lepage. O texto performativo “não existe exceto na e para a representação” (Ibidem). É, portanto, um texto sem autonomia própria.

[O texto performativo] é um componente da representação em meio a outros e não existe senão materializado na cena. Sua existência autônoma sob forma independente da representação é difícil prever, pois trata-se de um texto esburacado, às vezes muito aberto, múltiplo, esfacelado, que poderia revelar-se incoerente caso se pretendesse publicá-lo enquanto tal. Trata-se de um texto que muitas vezes não tem autonomia própria e cujo sentido parcelado raramente constitui uma totalidade em si. Ele não adquire sentido a não ser quando inserido na rede múltipla dos diferentes sistemas da cena. (Ibidem)

Para Féral, o texto performativo pode ser de diferentes tipos, dependendo da natureza e do modo de inserção no espetáculo e não é a sua presença ou ausência que permite definir uma categoria para a encenação. Essa seria definida pelas modalidades de integração do texto aos outros elementos da representação e pela forma que a mesma lida com o texto, mesmo que não seja performático. Segundo Féral, os textos performativos não possuem a mesma importância no espetáculo e “há um vasto leque de modalidades diversas de integração, de imbricação do texto performativo na

representação.” (Ibidem 249). Diferente do texto performativo, mas associado diretamente ao trabalho realizado pelo encenador na concepção do seu espetáculo, encontramos o chamado “texto espetacular”. Intimamente ligado ao conceito de teatralidade, o texto espetacular pode ser entendido não como um elemento da encenação, mas sim como o texto que espelha o seu resultado (“escrita cénica”). Da “escrita cénica” se faz o texto cénico ou texto espetacular. Segundo Féral, o conceito de texto espetacular engloba o conceito de texto performativo. Esse último não pode existir dissociado da encenação, já que ele é um dos elementos da encenação, enquanto o texto espetacular é “mais simplesmente o resultado de uma urdidura cerrada entre o texto e os demais elementos da representação, uma urdidura na qual os elementos estão estreitamente imbricados e quase que indissociáveis.” (FÉRAL 2015:251). O texto espetacular pose ser proveniente tanto do texto quanto da cena, já o performativo é, necessariamente, proveniente da cena. Todo texto encenado teria um correspondente possível de texto espetacular. Todo texto performativo é espetacular, mas nem todo texto espetacular é performativo. Vale conferir a definição de Patrice Pavis para o texto espetacular, que, a seu ver, corresponde igualmente ao “texto cénico”:

A noção semiológica de texto deu a expressão texto espetacular (ou texto

cênico): é a relação de todos os sistemas significantes usados na representação e cujo arranjo e interação formam a encenação. O texto espetacular é, portanto, uma noção abstrata e teórica, e não empírica e prática. Ela considera o espetáculo como um modelo reduzido onde se observa a produção do sentido. Este texto espetacular é anotado e materializado num caderno de encenação, um Modellbuch ou qualquer outra metalinguagem que faz o relato – sem dúvida sempre incompleto – da encenação, principalmente de suas opções estéticas e ideológicas. (PAVIS 2003:409)

A partir da definição de Pavis, somos lembrados do “caderno de encenação”, que, por conter um conjunto variado de informações, descritas e desenhadas, usadas para a memorização da encenação, se tornou um documento especialmente importante nos recentes estudos da genética teatral. A genética da encenação está interessada nos documentos confecionados e nos vestígios da criação do processo de gestação de um espetáculo, que podem ser de duas naturezas: textual e cênica. É nessa última que se inserem os cadernos de encenação, assim como os escritos gerados pelos diferentes criadores e técnicos do espetáculo. Considerada uma importante fonte de pesquisa para o geneticista, os cadernos de direção revelam as fases pelas quais passam as montagens

e “permitem acompanhar as experimentações cênicas, as correções, observações, modificações, hesitações de uns e outros e as escolhas definitivas.” (FÉRAL 2015:69) O professor e dramaturgo francês Bernard Dort no seu célebre ensaio A

representação emancipada, de 1988, afirma que o “teatro moderno nasceu, no final do século XIX, do advento do encenador como mestre da cena.” (DORT 2013:47). Para ele ao abandonar a categoria de executor e assumir uma produção de sentido com a criação e organização dos elementos da cena, o encenador assume a autoria do espectáculo. Com essa nova função o encenador, em alguns casos, chega a redigir, “antes dos ensaios, um projeto de encenação bastante detalhado que constitui a partitura do espectáculo. O texto dramático propriamente dito se vê, desta forma, duplicado, sustentado ou suplantado por um novo texto: o texto cênico”. (Ibidem)

A teórica Sílvia Fernandes ao detalhar a visão de Pavis sobre o texto cênico traça uma interessante convergência entre a teatralidade e a encenação. Para Fernandes, a visão do estudioso francês deixa evidente que o texto cênico é o registo efetivo da teatralidade do espectáculo e, nesse sentido, iguala os conceitos de encenação e teatralidade.

Para Pavis, o texto cênico é fruto da composição de vários códigos que o encenador mobiliza na estruturação de uma gigantesca partitura, em que espaço, ator, texto verbal, música, e demais matérias teatrais traçam figuras, ritmos, organizações formais, cadeias de motivos e atitudes, quadros estáticos e em movimento, mutações de situação e de ritmo, na organização de um discurso teatral de múltiplos enunciadores. Parece evidente que esse discurso constrói aquilo que é especificamente cênico, ou seja, a teatralidade. (FERNANDES 2010: 116)

Ao analisar as diferentes situações do texto no teatro e a sua passagem à cena, Beatrice Picon-Vallin chama a atenção para o caráter intermediário do texto cénico, já que esse se encontra entre a peça e a “partitura do espetáculo”, que é o “registro de tudo o que se passa em cena, quando o espetáculo está pronto. É um texto de trabalho, em movimento; é o texto da peça sobre a qual já se trabalhou e sobre o qual ainda se vai trabalhar para chegar a um espetáculo.” (VALLIN in VÁSSIMA 2011:324). Para a pesquisadora francesa, a partitura do espetáculo reúne todos os tipos de anotações sobre um espectáculo desde os ensaios até as primeiras apresentações para o público. Essas anotações, em geral, também são recolhidas por encenadores-assistentes e permitem uma fixação do espetáculo. Para Vallin, a partitura do espetáculo “é uma obra escrita

como a do autor, mas que não é mais literária. É o libreto do espetáculo.” (Ibidem 325). Diferente do texto cénico, a partitura do espetáculo está em consonância com os cadernos de encenação, conforme referidos por Pavis.

Por entendermos que, possivelmente, será uma nomenclatura apropriada para o resultado dramatúrgico dessa investigação, não queremos finalizar esse tópico sem antes fazer uma referência, ainda que possa guardar explícitas semelhanças com o “texto cénico”, aos termos “versão cénica” e “versão teatral” ou “dramatúrgica”. A versão cénica, que, segundo Ana Pais, pode ser entendida como sinónimo de versão dramatúrgica, designa, desde Piscator, o guião da encenação e “compreende o texto verbal e indicações cênicas sobre todos os elementos do espetáculo (luzes, som, entradas e saídas de personagens, adereços, projecções ou cenários).” (PAIS 2016:71)

Versão cénica depreende, assim, um aspecto mais específico no que respeita à totalidade da implantação cénica, mas nem sempre corresponde ao seu uso nos programas de espectáculos, precisamente porque é empregue em alternância com versão teatral. Por seu turno, versão teatral (ou

dramatúrgica) destina-se a nomear a adaptação de um texto para uma representação teatral cujas alterações abrangem desde a tradução de nomes próprios ou topográficos, no caso de se procurar uma maior proximidade do texto com o público local, até à fragmentação e reordenação do texto, modificando a sua estrutura original. (Ibidem)

CAP. 2 O ROMANCE COMO PRINCÍPIO ESTRUTURANTE DA