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CAP 1 A ACEPÇÃO DO TERMO DRAMATURGIA NO TEATRO CONTEMPORÂNEO: UM TECIDO COM MUITAS PONTAS.

1.1 Interrogar o conceito de dramaturgia: Joseph Danan, Jean Pierre Sarrazac e Bernard Dort

1.1.4. O Século XX e a mutação do drama

A crise pela qual passou, passa, e sempre passará o drama dificilmente ficará algum tempo distante das pautas do debate teatral. Se há uma palavra que combina com o estudo da poética do drama, essa palavra é crise. Crise do drama que pode ser estendida para a crise da fábula, do diálogo, da personagem, os pressupostos que alicerçam a literatura dramática. Dentro da proposta de Sarrazac, uma crise que não deve ser observada com a ideia de um processo dialético com início, e sobretudo, “fim”, mas sim pela “ideia de uma crise sem fim, nos dois sentidos do vocábulo. De uma crise permanente, de uma crise sem solução, sem horizonte preestabelecido. De uma crise inteiramente em imprevisíveis linhas de fuga.” (SARRAZAC 2012:32). Cabe ressalvar, apenas para evitar alguma confusão, que no teatro a palavra “drama” diz respeito tanto ao texto de uma peça, que é o que nos interessa nesse tópico, como ao modo de representação dessa mesma peça. Fica ainda o registo que drama na língua inglesa pode ser definida como “ação”, que é o significado original da palavra grega – δράω - que está associada à Poética, de Aristóteles. A palavra drama apresenta desde a sua origem uma articulação tanto com a literatura como com o espetáculo.

Definitivamente, não cabe mais associar o teatro a uma única forma de escrita. Um modelo perfeito para a escrita dramática já não existe. No último século, de uma forma geral, podemos dizer que o estatuto do texto dramático foi redimensionado e que a natureza espetacular, cênica, “teatral” foi elevada ao grau máximo de importância. Nos dias de hoje, não há uma esquina do mundo do teatro que não se discutam as

questões relativas à teatralidade e ao performático. Depois de anos, o texto dramático deixou de ser o protagonista da cena e da ficção. Segundo Pavis, “as pesquisas da encenação, assim como a sua teorização, indicam de forma o mais claro possível uma reviravolta na perspectiva e no desejo de se escapar de um logocentrismo que faz do texto o elemento estável e inicial da encenação, a transcrição obrigatória e acessória, a figuração e a explicação do texto. (PAVIS 2008:30). Com certeza parte dessa condenação imposta ao textocentrismo se deve ao surgimento do encenador e aos progressos da tecnologia do espetáculo, mas uma outra parte relevante se deve às limitações do próprio modelo de texto dramático. Na história da escrita teatral ocorreu um desequilíbrio entre os elementos dramáticos e épicos, que, ao condenar ao ostracismo o sistema narrativo, tão caro à arte teatral desde a antiguidade, criou um afastamento do homem do mundo real. A modernidade revelou a insuficiência de um certo tipo de escrita dramática abarcar as questões do homem. A mutação do drama (texto dramático) acompanhou a mudança da sociedade. Restou a pergunta: para onde caminhou o drama?

O teatro desde o seu surgimento tem sido um sistema integrado de elementos épicos e dramáticos: em épocas mais remotas com forte predominância de elementos épicos e em épocas mais recentes com mais acentuada presença do elemento dramático. No século XIX o equilíbrio desses elementos foi fortemente alterado. Uma série bastante grande de fatores contribuiu para isso. E o teatro tornou-se um sistema fundamentalmente dramático. O exílio da narrativa no teatro provocou distorções. Uma delas pode ser verificada na artificialidade de alguns textos melodramáticos, no idealismo extremado, na bonomia inverosímil, no caráter maniqueísta de seus heróis e vilões. Os personagens extraídos do contexto das relações humanas reais, tornam-se apenas emblemas de virtude e vício. Afastados do fazer real, das relações humanas, a única realidade que resta é a subjetividade dos sentimentos. O teatro torna-se mais e mais “sentir”, torna- se mais êxtase e emoção e menos saber. (RAMOS 2009:123)

A reflexão de Peter Szondi no livro Teoria do drama moderno, um clássico na investigação da crise da forma dramática desde o final do século XIX, entre 1880 e 1950, em que o autor traça, a partir da literatura dramática, uma interpretação do drama moderno sob o prisma da dicotomia entre forma e conteúdo de Hegel, revela a insuficiência do dialogismo absoluto em expressar o homem do seu tempo e a gradual abertura da escrita para os procedimentos mais épicos e narrativos. Nessa nova face do drama, a ação dramática não se moverá mais centrada apenas nas discordâncias das personagens reveladas através do diálogo interpessoal, que é questionado como o único

caminho possível para o homem em ação revelar os seus objetivos e o seu caráter. Segundo o professor Didier Plassard3, a teoria proposta por Szondi consiste em “uma das sínteses mais estimulantes da história do teatro europeu abarcando cerca de três séculos” (PLASSARD 2012:15)

No valioso estudo de Raymond Williams (2010) sobre o Drama em cena, onde o autor compara diversas obras, de Sófocles a Bergman, fica evidente que no teatro a relação entre texto e encenação não é nada estável e “que o modo como as pessoas aprenderam a ver e reagir é o que cria a condição essencial para o teatro” (WILLIAMS 2010: 221), portanto, uma arte em constante mutação. Na visão da pesquisadora Sílvia Fernandes, Williams identifica através dos seus ensaios que há uma mudança na forma dramática, na mesma época indicada por Szondi para a crise do drama, que ocorre porque os autores, como Tchékhov, “passaram a escrever textos em que os diálogos se dissociavam da ação e o drama passava a necessitar da encenação para se realizar plenamente”. (FERNANDES 2010: 162)

O drama absoluto, segundo o modelo teórico de Szondi, não aceita a interferência de qualquer elemento exterior à troca interpessoal revelada no diálogo. “Para ser pura relação, para poder, em outras palavras, ser dramático, ele deve desenvencilhar-se de tudo que lhe é exterior. O drama não conhece nada fora de si. O dramaturgo está ausente no drama. Ele não fala, institui o que se pronuncia” (SZONDI 2011:25). Nesse drama fechado não há espaços para a mediação de um sujeito épico, não há vestígios da voz do autor. O ator está confinado e confundido no seu papel em um tempo presente da cena, que representa uma esfera intersubjetiva inviolável pelo mundo exterior, isolada totalmente da plateia. A crise que se instaura no drama, pode ser traduzida na teoria szondiana como a crise do drama absoluto. Uma crise que “é uma resposta às novas relações que o homem mantém com o mundo e a sociedade. Essas novas relações instalam-se sob o signo da separação. O homem do século XX – o homem psicológico, o homem econômico, moral, metafísico etc. – é sem dúvida um homem “massificado”, mas é sobretudo um homem “separado”. (SARRAZAC 2012:23). Sobre a teoria de Szondi, no livro organizado por Jean-Pierre Sarrazac sobre o

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Didier Plassard foi professor da Universidade de Rennes onde fundou o departamento das Artes do Espectáculo, e está hoje integrado na Universidade PaulValery Monpellier 3 onde ensina Estudos de

Léxico do drama moderno e contemporâneo, o ensaísta e dramaturgo francês, independente das ressalvas que faz à abordagem metodológica da obra, afirma que:

A teoria de Szondi nos ensina que a separação por nós evocada traduz-se, no domínio do teatro, na separação do sujeito e do objeto: essa síntese dialética do objetivo (o épico) e do subjetivo (o lírico) que operava o estilo dramático – interioridade exteriorizada, exterioridade interiorizada – não é mais possível. A partir desse momento, universo objetivo e universo subjetivo não coincidem mais, achando-se reduzidos a um confronto dos mais problemáticos. Cabe aos dramaturgos administrar esse divórcio na medida do possível. Viver suas dilacerações e contradições, e tentar tirar delas as consequências estéticas […]. Para Szondi, a crise se explica por uma espécie de luta histórica em que o Novo, a saber, o épico, deve no fim triunfar sobre o Antigo, isto é, o dramático. (SARRAZAC 2012: 24)

Na obra organizada por Sarrazac, os dois estudiosos responsáveis por definir o verbete “drama absoluto”, Hélène Kuntz e David Lescot, reconhecem que a teoria szondiana, elaborada em meados dos anos de 1950, apontava como possíveis soluções para a crise o advento das dramaturgias épicas de Piscator e Brecht, e que, de uma maneira mais sútil:

[…] o conceito do drama absoluto pode apontar para uma hibridização do épico e do dramático, do individual e do coletivo, que as estéticas do século XX não cessaram de reinventar. Pois trata-se de um modelo que exige ser perpetuamente superado e contestado. Ao “drama absoluto”, podemos assim opor o “drama real”, concebido não como um modelo, mas como uma noção capaz de explicar essas tentativas de superação e mistura surgidas na história, incluído a mais recente, das formas.” (KUNTZ; LESCOT In: SARRAZAC 2012:74)

Cabe citar que Patrice Pavis, quando analisa a relação dos textos clássicos com a encenação contemporânea, sobre a teoria de Szondi, afirma que parece inconcebível para os autores de hoje conceber peças com diálogos trocados entre personagens como uma conversação cotidiana, e nos lembra que esse fenómeno não é novo e marcou os inícios do “drama moderno”, como foi mostrado admiravelmente por Szondi. Segundo o professor francês, um período que se caracterizou “por uma ruptura da comunicação e da troca dialógica, pela aparição de uma crise do drama e tentativas de resgate (naturalismo, peças de conversação ou em um ato, existencialismo) ou tentativas de solução (expressionismo, teatro épico, montagem, pirandelismo etc.).” (PAVIS 2008:64). Ainda sobre a teoria de Szondi, a pesquisadora Silvia Fernandes sublinha que o teórico alemão identifica que as novas contradições da realidade vivenciadas pelo

homem na passagem do século XIX para o XX não serão devidamente expressadas apenas em diálogos trocados entre as personagens, como numa conversação cotidiana. Ela afirma que a perspicaz análise de Szondi “mostra que a noção a-histórica do texto leva à suposição de que uma mesma forma dramática pode ser usada em qualquer época, para a construção poética de qualquer assunto.” (FERNANDES 2010:154)

Rompida a bolha das relações intersubjetivas e infiltrados os elementos épicos, a escrita no século XX se revela, mais do que em qualquer tempo, híbrida e imprevisível. Passada a fase dos monólogos tchekhovianos, que revelam o interior e o exterior da personagem, Piscator e Brecht, os arautos das formas épicas do teatro, nos arremessam para uma visão política do teatro, ao mesmo tempo que autores como Samuel Beckett nos surpreende por uma incomunicabilidade angustiante, na sua primeira obra teatral, ao propor o absurdo de dois mendigos que estão, em uma paisagem indefinida, à espera de Godot (1949), que jamais virá. Superado o limite da “quarta parede”, o sujeito épico se afirma e o diálogoabsoluto perde, definitivamente, espaço para o diálogo relativo. Para Sarrazac está instaurado o início do processo de rapsodização do teatro. Liberto da univocidade, o diálogo dramático, depois da crise, passa a costurar os diferentes modos poéticos e o protagonismo é assumido por um “sujeito rapsódico”, que “amplia e, sobretudo, flexibiliza o sujeito épico teorizado por Szond. Em vez de se limitar a esse puro (de)monstrador desvinculado da ação proposto em Teoria do drama moderno, o sujeito rapsódico apresenta-se como um sujeito dividido, ao mesmo tempo interior e exterior à ação.” (SARRAZAC 2012:71). Sobre o futuro do drama e a relação com o público, Sarrazac afirma que “quanto a nós, espectadores deste final do século XX, somos forçados a reconhecer que assistimos à extinção dos géneros teatrais, e através das peças de Ionesco, com os subtítulos de “Drama cômico” ou “Pseudo-Drama”, às suas últimas manifestações paródicas”. (SARRAZAC 2002:177)

Nesta nova perspectiva, que pensa as mutações da forma dramática em termos de devir rapsódico, a escrita “dramática apresenta-se como espaço de tensões, de linhas de fuga, de transbordamentos. Transbordamentos do dramático pelo épico e/ou pelo lírico; livre jogo de contrários. A forma dramática deixaria, assim, de ser objecto, contrariamente ao que escreve Szondi, de tentativas de preservação ou de soluções, mas estaria, permanentemente, a ser (re)trasnbordada – ou seja, (re)abordada, de acordo com uma expressão cara a Pirandello, com “o sentido do contrário”. (SARRAZAC 2002:229)

Uma apreciação, ainda que sintética, sobre a mutação do drama no século XX não poderia deixar de citar a obra O teatro pós-dramático, de Hans-Thies Lehman, tão debatida nos últimos anos. No chamado teatro pós-dramático, visto por alguns estudiosos, conforme é colocado por Lehman, como um conceito impreciso, o texto teatral é apenas mais um dos vários materiais que participam do processo de criação do espetáculo. Para o teórico alemão, no campo do texto há um “teatro que não mais se baseia de modo algum no “drama”, seja ele (nas caracterizações da teoria do drama) aberto ou fechado, de tipo piramidal ou como carrossel, épico ou lírico, mais centrado no caráter ou na ação. Há teatro sem drama.” (LEHMANN 2007:47). O livro de Lehmann aborda práticas do fim do século XX que se enquadram em formas como, o teatro do absurdo, o teatro da cenografia, a peça falada, a dramaturgia visual, o teatro de situação, o teatro concreto e outros. Para o autor, diferente de um futuro projetado por Szondi, “a análise dessas formas não pode ser compreendida com o vocabulário do “épico”.” (Ibidem)

O teatro pós-dramático é um teatro pós-brechtiano. Ele está situado em um espaço aberto pelas questões brechtianas sobre a presença e a consciência do processo de representação no que é representado e sobre uma nova “arte de assistir”. Ao mesmo tempo, ela deixa para trás o estilo político, a tendência à dogmatização e a ênfase do racional no teatro brechtiano, posicionando-se em um período posterior à validade autoridade do projeto teatral de Brecht. (Ibidem 51)

Para Lehmann, o teatro e o drama convivem com contradições e constante tensões, e o “reconhecimento do teatro pós-dramático tem início com a constatação de que a condição de sua existência é a emancipação recíproca e a dissociação entre drama e teatro.” (Ibidem 75)

O teatro já não aspira à totalidade de uma composição estética feita de palavra, sentido, som, gesto etc., que se oferece à percepção como construção integral; antes, assume seu caráter de fragmento e parcialidade. Ele abdica do critério da unidade e síntese, há tanto tempo inquestionável, e se dispõe à oportunidade (ou ao perigo) de confiar em estímulos isolados, pedaços e microestruturas de texto para se tornar um novo tipo de prática. Desse modo, ele descobre uma nova presença do performer a partir de uma mutação do

actor e estabelece a paisagem teatral multiforme, para além das formas centralizadas do drama. (Ibidem 92)

Livre das amarras do drama, na concepção pós-dramática de Lehmann, “a respiração, o ritmo e o agora da presença carnal do corpo tomam a frente do lógos.”

(Ibidem 246). O novo teatro deixa de representar conteúdos linguísticos orientados pelo texto e faz prevalecer “uma “disposição” de sons, palavras, frases e ressonâncias conduzida pela composição cênica e por uma dramaturgia visual que pouco se pautam pelo “sentido”.” (Ibidem 249). Para o estudioso Didier Plassard, a noção de teatro pós- dramático elaborada por Hans-Thies Lehmann “não consegue dar totalmente conta da diversidade das mudanças ocorridas desde finais dos anos 60 nas artes do espectáculo, mudanças que, aliás, ainda hoje se processam.” (PLASSARD 2012:15). Para ele, o problema central do ensaio de Hans-Thies Lehmann está “na conservação de uma historiografia linear, onde uma única forma de “novo” (o pós-dramático) viria substituir uma única forma do antigo (o dramático)” (Ibidem). Para Plassard essa visão linear de Lehmann resulta em um esquema simplificador onde:

[…] tudo o que antecede a pesquisa de um drama puro, desde a tragédia grega ao teatro da época barroca, é de algum modo pré-dramático; segue-se o teatro dramático, que exerce o seu domínio desde meados do século XVII até finais do XIX, depois a crise do drama correspondente aos dois primeiros terços do século XX, finalmente o teatro pós-dramático a seguir ao qual toda e qualquer recuperação da forma dramática parece tão improvável – ou pelo menos tão estranha ao seu tempo – como seria o reestabelecimento da monarquia absoluta numa sociedade democrática. (ibidem 16)

Para Plassard, o chamado teatro pós-dramático, conforme descrito por Hans- Thies Lehmann, deve ser considerado como um caminho tomado por algumas correntes contemporâneas predominantes das artes dos espectáculos e não como uma “superação hegeliana do teatro dramático”. Na intenção de identificar melhor a característica dessa orientação do pós-dramático, adoptada por uma parcela da produção cénica contemporânea, o professor francês estabelece a interessante hipótese de que as mudanças descritas no processo de criação teatral pelo teórico alemão efectuam uma forma de passagem à abstracção, termo que deve ser entendido como a ausência de relação mimética entre a obra apresentada e o mundo em que vivemos, “comparável à que atravessou as artes plásticas nos anos 1900-1930, com o abandono da figuração”. (Ibidem 17). Didier Plassard assinala que tanto a renúncia aos componentes tradicionais de cena dramática como as formas de autorreflexão, de decomposição, de separação, conforme descritas por Lhemann para o teatro pós-dramático, podem conter “operações de dissociação de certos funcionamentos simbólicos.” Para ele, uma das mais óbvias é:

[…] a “dissociação da narratividade”: os elementos e os acontecimentos textuais ou cénicos já não são agenciados em função duma fábula, tal como

múltiplas. Não é apenas o desenvolvimento completo de uma acção (exposição, crise e desfecho) que foi abandonado pela escrita teatral ou desconstruído pela encenação: é o seu próprio encadeamento, ou seja, a possibilidade dada ao espectador de voltar a associar, pela lógica ou pela imaginação, as múltiplas informações que recebe. Portanto, se a esmagadora maioria das dramaturgias contemporâneas abandona as perícias artesanais da construção do enredo, marcando assim uma distância em relação ao cinema comercial ou às telenovelas, isso não implica necessariamente que elas tenham perdido toda a dimensão narrativa, como muitas vezes se julga. (PLASSARD 2012:18)

No movimento da cena contemporânea que caminha no sentido da abstração, Plassard também considera de fácil identificação a “dissociação da relação actor/ personagem”. Segundo ele, há várias décadas “o acontecimento teatral dissolve as modalidades habituais de atribuição da persona, da máscara individual, e o seu esperado enraizamento no corpo de um comediante.” (Ibidem 19). Plassard ainda relaciona a “suspensão do pacto ficcional”, como uma terceira tendência do teatro pós-dramático que aponta para a passagem da cena à abstração. Para ele, essa suspensão ocorre quando “o acontecimento cénico deixa de se estruturar em ficções de personagens, de espaços ou de tempos, para se restringir a uma sucessão de acções fechadas sobre si próprias, e cujo carácter de simulação tende a desaparecer.” (Ibidem). Sobre o futuro, Didier Plassard acredita que, assim como ocorreu na história da pintura que, aos poucos, relativizou a abstração e se renovou ao dialogar com o figurativo, muito provavelmente, “de maneira análoga, o desenvolvimento das poéticas cénicas do século XXI continue a explorar os procedimentos de dissociação típicas do teatro pós-dramático dos anos 1970-1990, mas recuperando algumas das questões maiores ligadas à narração, à figuração e à representação, sem as quais o público tenderá a diminuir cada vez mais.” (Ibidem 20)

Essa visão de Didier Plassard parece convergir com o pensamento do seu conterrâneo Jean-Pierre Ryngaert, que entende que todo o processo de transformação do drama culminou, no enfraquecimento do lugar do autor contemporâneo diante da encenação explicado, em parte, pela perda de referência em matéria de texto dramático. Para o diretor e professor francês, a prevalência da espetacularidade no teatro faz o texto dramático perder toda a necessidade e toda especificidade. “A liberdade da cena,

indispensável para o desenvolvimento do teatro, exerce uma influência ambígua sobre a escrita. Já que tudo é permitido, também os autores podem se permitir imaginar as

formas mais originais e mais inovadoras, dado que as convenções do passado explodiram e não exercem mais sua ditadura.” (RYNGAERT 1998: 65)

Para finalizar, vale destacar a reflexão da pesquisadora Sílvia Fernandes sobre o paradoxo da dramaturgia contemporânea, que nos faz intuir um pouco das razões do reencontro da escrita do romance com os palcos do teatro, ao considerar mais teatral o texto que, em alguma medida, contém indicações espácio-temporais ou lúdicas autossuficientes e não mais pela sua capacidade de criar ação. Para Fernandes, “o resultado da apropriação da teatralidade pela dramaturgia mais recente é que o texto literário ganhou novo estatuto. O dramático ainda se conserva no modo de enunciação, na construção dos diálogos, monólogos ou narrativas e, algumas vezes, no