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O romance combinado com a dança: Orlando, por Sara Carinhas e Hugo Pontes

CAP 3. O ENCENADOR COMO AGENTE DO PROCESSO DRAMATÚRGICO

3.3 Dramaturgias distintas

3.3.2 O romance combinado com a dança: Orlando, por Sara Carinhas e Hugo Pontes

A opção por fazer acima uma referência à escrita de Virginia Woolf não foi coincidência. No nosso segundo exemplo, observaremos a relação dramatúrgica estabelecida pela actriz Sara Carinhas e pelo coreógrafo Victor Hugo Pontes com o romance Orlando – uma biografia, da escritora britânica que ficou reconhecida por uma escrita que colocava mais ênfase nas personagens do que nos enredos. Orlando foi publicado pela primeira vez em 1928, quatro anos depois do romance de Forster, e também se tornou um sucesso literário. O trabalho dramatúrgico feito pelos criadores portugueses a partir do romance de Woolf não guarda nenhuma semelhança com o processo de transposição efetivada por Rama Rau. Estão distanciados por mais de cinquenta anos e por visões estéticas absolutamente distintas, que colaboram para percebermos a extensa curva de possibilidades que temos quando levamos uma obra de

narrativa literária ao palco. O tratamento dramático passa muito longe dos objetivos de Carinhas e Pontes, que manipulam o texto com total liberdade e não possuem nenhuma convenção como referência para o trabalho. Os artistas portugueses estão mais interessados em explorar a fisicalidade do actor e investigar a possibilidade do uso de uma linguagem coreográfica como forma de descrever a condição da personagem principal, do que em contar o enredo do romance.

A relação da dupla de artistas com o romance é um exemplo nítido de uma apropriação indirecta da obra original. O romance de Woolf, especialmente a protagonista, é uma inspiração para a partitura coreográfica do espetáculo, e não o fim. Sara e Victor não assinam a dramaturgia do espectáculo, assinam a criação. Na folha de sala respectiva ao espectáculo não consta os termos autor, texto e mesmo dramaturgia. O nome de Virginia Woolf é encontrado apenas no texto da sinopse que integra a peça informativa. No título do espectáculo aparece ORLANDO, de Sara Carinhas e Victor Hugo Pontes. Entendemos que esta opção é legítima. Sara e Victor, apesar de colocarem em cena fragmentos da obra de Woolf, estão longe de buscar no espectáculo uma tentativa de representação literal, ou mesmo parcial, do texto. Os criadores da cena abriram mão da narrativa da obra e se apropriaram apenas de passagens dispersas, para depois somarem ao texto enunciado um conjunto tão singular de significantes que acabou por criar uma obra teatral autónoma. Não havia uma preocupação em explicar o texto ou em narrar todos os fatos do romance. Não existiu autoria literária dos criadores da cena. O que ocorreu foi um processo de selecção literária de acordo com as intenções artísticas dos criadores, que, como falamos, priorizaram no trabalho a corporeidade da actuação. Inclusive, havia a adição de uma carta, que era lida em cena pela actriz, que não pertence ao texto do romance. Tivemos a oportunidade de assistir ao espectáculo e, a meu ver, um espectador que desconhece o conteúdo do romance certamente foi capaz de captar, em linhas gerais, toda a problemática vivida por aquele personagem solitário, que ora é um homem ora é uma mulher, mas não realizou a sugestão da vivência da leitura, e, com certeza, esta pretensão não estava nos planos dos criadores. Aguçava e retinha a atenção do espectador não apenas as palavras, mas, especialmente, a presença marcante da actriz que estabelecia corporalmente um diálogo delicado e potente com o aqui e agora da cena. O texto de Pedro Sobrado denominado O princípio da incerteza, incluído na folha de sala, faz uma precisa análise dramatúrgica do espectáculo:

Que poder exerce um livro sobre aquele que o lê? Orlando de Sara Carinhas e Victor Hugo é um acto de leitura, isto não pressupõe neutralidade, agnosticismo, na transposição do romance de Virginia Woolf para a cena. Aquele que lê, age: interpreta, selecciona, associa. Compõe um texto próprio com a matéria do texto que tem diante de si; cruza-o com o que estudou ou sonhou, viveu ou inventou. Toma posse do texto: faz dele carne da sua carne. Nas mãos da Sara e do Victor, Orlando de Virginia Woolf lembra os objectos transicionais de que fala o psicanalista inglês Winnicott: um cobertor, um urso de peluche de que a criança não se separa, que ama, leva à boca, danifica. (SOBRADO 2015)

O espectáculo concebido por Sara Carinhas, também intérprete única da cena, e Victor Hugo Pontes, que assina a direcção, conforme folheto de apresentação do trabalho, foi assistido na sala Box Nova do Centro Cultural de Belém no dia 29 de maio. Através do material de publicidade do projeto, ficamos a saber que o objectivo é realizar umacriação multidisciplinar, que engloba o cruzamento de várias linguagens, como o teatro, a cenografia e a música, que tem a dança contemporânea como elemento de aglutinação e, como ponto de partida, a obra homónima de Virginia Woolf.

Carinhas, que já havia assinado em 2013 a encenação e adaptação de As Ondas, também um romance de Woolf, conforme informação curricular incluída na folha de sala, em uma conversa informal ocorrida em Lisboa na tarde do dia 12 de Maio de 2015, me relatou que foi a paixão pela obra da escritora que a motivou na realização de

Orlando. Para além do seu interesse pela pesquisa da literatura em cena, foi principalmente a força da protagonista da obra e toda a sua longa biografia que encantaram a solista. Carinhas relatou que desde o início não pensava em uma encenação que pudesse dar conta inteiramente da dimensão textual da obra, o seu desejo passava por integrar questões da corporeidade, daí o convite feito ao coreógrafo Victor Hugo para, ao seu lado, assinar a criação do trabalho. Também era inconcebível para Carinhas a ideia de adaptar a obra numa visão tradicional ou mesmo tentar reescrever o texto de Woolf. Desde o início da concepção do projecto já estava definido que apenas Carinhas estaria em cena. Sobre o trabalho com o texto, segundo o relato da actriz, a primeira etapa percorrida foi a simples leitura do livro. Os criadores, primeiro individualmente, depois juntos, fizeram uma leitura em “voz alta” do texto e cada um assinalou os fragmentos que, por algum motivo, despertaram os seus desejos artísticos. Não havia uma premissa cénica, nem literária, que norteava a selecção dos fragmentos. Em uma segunda etapa os dois, juntos, detalharam cada capítulo do livro com um

e o tempo em que transcorria a acção. Concluíram essa etapa com uma espécie de resumo de cada capítulo e, por algum tempo distantes, Sara e Victor, deixaram que a poesia de Woolf entrasse em ebulição nas suas mentes. Reencontram-se para o início dos trabalhos de criação da cena dois meses antes da primeira apresentação. A dramaturgia da cena nasceu como que intuitivamente, relatou Carinhas. Passagens marcantes do texto, imagens herdadas da leitura, percepções corporais da personagem, e outras diferentes inspirações alimentavam o processo. Do início dos ensaios até o final, foram produzidos nove guiões. Até o último dia dos trabalhos ainda continuavam a fazer pequenas mudanças no texto final e na própria cena. Os últimos elementos que integraram a cena foram a cenografia e a parte musical, concebida originalmente para o espectáculo, conclui Carinhas.

Abaixo, para melhor percebermos o resultado do processo dramatúrgico de Carinhas e Pontes, segue um fragmento do guião de número seis realizado para o espectáculo Orlando, que nos permite nitidamente perceber que estamos diante de um texto da modalidade “performativa”, e não de um “texto dramático”. As marcações no excerto abaixo pertencem ao guião original.

(Leva um pequeno cálice para o outro lado da mesa.)

- Pediu-me “Leva-me daqui. Odeio esta tua gentalha inglesa”. Eu tomei-a nos braços para conhecer pela primeira vez o amor. (Dança com o copo.)

Tudo acaba na morte. Tudo acaba na morte, Sasha. Na primeira noite sem lua fugiríamos.

(Volta à mesa, arranjando um ramo de flores, meio de costas para o público.) Compus uma bela carta para ti numa noite de insónia, mas desapareceu. Sinto a tua falta, duma forma humanamente desesperada. Tu nunca escreverias de forma tão elementar como esta.... Irias vestir as coisas de uma forma tão brilhante que elas iriam perder a sua realidade. Para mim é muito claro: sinto a tua falta de uma forma que nunca imaginei, e eu estava preparada... preparado... preparada para sentir muito a tua falta, Jour de ma vie.

(Quase deixa cair a jarra de flores ao chão.)

Os seus membros assentes no chão entorpeceram-se; e ficou tão imóvel, como se toda a fertilidade e actividade amorosa da tarde de Verão tecessem em volta do seu corpo uma espécie de teia. Aqui inclinou a cabeça, em profunda meditação.

Como esta pausa foi de extrema importância na minha história. Não sabemos o que vem a seguir, nem o que virá depois. Estou só.

(Volta àmesa e bebe.)

(Escrever. Procura da frase coreográfica, pelo espaço.)

Abeirou-se do tinteiro, afogou a pena e fez mais alguns desses gestos com que os cultores do vício iniciam os seus rituais. Mas deteve-se. Mergulhou bem fundo a pena no tinteiro, salpicando a mesa de tinta. Como ele escreveria e achava bom o que escrevera; relia e achava execrável; corrigia e rasgava; cortava; acrescentava; ficava em êxtase; sucumbia ao desespero.

O melhor será regressarmos ao início. Estou só.

(Frase coreográfica total.)

Devemos moldar as nossas palavras até que sejam o mais fino invólucro dos nossos pensamentos.

A vida parecia-me prodigiosamente longa. E, no entanto, passava veloz como um raio. O tempo passou e nada aconteceu.

Mais vale morrer desconhecido e deixar atrás de si um arco, uma estufa, do que arder como um meteoro, sem deixar rasto.

O céu é azul, a relva é verde. Palavra de honra que não vejo mais verdade numa afirmação do que na outra. Ambas são inteiramente falsas. O verde na Natureza é uma coisa, o verde na literatura outra bem diversa. A literatura é uma farsa

(Canta enquanto queima papéis, acabando por acender um cigarro.)

“Falling in love again /Never wanted to, / What am I to do?/ Can't help it.// Love's always been my game,/ Play it how I may/ I was made that way/ Can't help it.// Girls cluster to me/ Like moths around a flame,/ And if their wings burn/ I know I'm not to blame// Falling in love again/ Never wanted to/ What am I to do?/ Can't help it//

(Pega no livro “Orlando” e lê, sentada em cima da mesa de cigarro na mão.) (CARINHAS 2015:2)

Ilustração 1: Espectáculo: Orlando. Actriz: Sara Carinhas. Lisboa/Maio de 2015. Autor da foto não identificado.

Arriscamos afirmar que, assim como Forster ficou empolgado com a peça dramática de Rama Rau, Virginia Woolf também ficaria entusiasmada com o diálogo tão aprofundado e sensível que os artistas portugueses estabeleceram com a personagem principal da sua obra.

Cabe, antes de encerrar, fazer uma apresentação da actriz Sara Carinhas. Essa jovem artista, com formação em dança e teatro, vem tendo muito destaque no panorama

teatral português, e mereceu em 2014, por parte da premiação da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro – APCT –, uma menção especial pelo solo performativo que realizou a partir do romance A farsa (1903), de Raúl Brandão. Pela mesma actuação, Carinhas recebeu no ano seguinte o Globo de Ouro, como melhor actriz de teatro, na vigésima edição do prêmio.

Em uma entrevista concedida sobre o processo de construção do espectáculo

Orlando, quando foi perguntada se seria feita uma transposição fiel da obra ou uma adaptação aos tempos modernos, Carinhas foi categórica: “Transposições fiéis de obras para cena… não existem. E adaptações aos tempos modernos não são necessárias, se as estamos a fazer hoje, é de hoje que estamos a falar. Para além disso este Orlando não morre nunca, não envelhece, não fica antigo nem é moderno. É Orlando. No gerúndio.” (CARINHAS 2015)

Vamos aproveitar que abordamos o romance Orlando para fazer um breve apontamento acerca de outra encenação que também utilizou a obra literária da autora inglesa como elemento dramatúrgico. Trata-se de uma montagem brasileira encenada pela artista Bia Lessa8 no Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, em 1989, e que depois foi remontada pela encenadora em 2004. No caso desse trabalho a encenadora não assumiu a dramaturgia textual, que ficou sob a responsabilidade do escritor Sérgio Sant’Anna9.

A investigadora Rosyane Trotta, que abordou o processo de criação do espectáculo na sua pesquisa sobre a autoria coletiva no processo de criação teatral, ressalta que no processo “recriação” de Orlando, conduzido por Bia Lessa, a dramaturgia se consolidou a partir do trabalho da sala de ensaio, ainda que houvesse o romance de Woolf. Segundo a pesquisadora, “o texto assinado por Sérgio Sant’Anna foi elaborado a partir de diversas referências, entre elas, exercícios de improvisação dos atores, que se baseavam tanto em acontecimentos do livro quanto em ideias a partir das quais a diretora queria “ler” a ficção – textos teóricos que serviriam de elementos de composições das ações e das imagens” (TROTTA 2008:69). Para a pesquisadora

8 Bia Lessa é uma encenadora muito atuante, principalmente no eixo Rio de Janeiro/São Paulo, que se

destacou a partir de 1984 no panorama teatral brasileiro com um teatro de pesquisa quando esteve vinculada ao Teatro Sesc-Tijuca. Actualmente, a encenadora pode ser considerada um artista de perfil múltiplo uma vez que realiza curadoria e cenografias para eventos de artes plásticas.

9 Sérgio Sant’Anna é contista, romancista, poeta e professor. Natural do Rio de Janeiro o escritor já

Rosyane Trotta, o resultado da encenação é uma obra polissêmica já que na encenação os elementos da cena não procuram se combinar, mas se confrontar: “os figurinos, a música, os atores não trabalham em benefício do texto, mas de uma teatralidade sem unidade – mistura-se um figurino de rainha com uma citação de Beatles sem que estes elementos sejam extraídos da obra de Virgínia Woolf, do texto de Sérgio Sant’Anna ou de uma unidade de linguagem.” (Ibidem 71). Para além da liberdade com que tratou o romance, acreditamos que essa polissemia, identificada por Rosyane Trotta no espectáculo de Bia Lessa, guarde alguma semelhança com a experiência realizada pela actriz Sara Carinhas.