• Nenhum resultado encontrado

2.2 A regulamentação internacional

2.2.3 Os acordos bilaterais de investimentos

Considerando o potencial do investimento em promover o desenvolvimento e o aumento do fluxo de IED, cada vez mais países concorrem para hospedar as empresas transnacionais. Essa concorrência, já marcada pela concessão de benefícios específicos como incentivos fiscais e subsídios, tem se dado há quase duas décadas também a partir da celebração de BITs, como forma de atrair os investidores estrangeiros.120

Os BITs são acordos internacionais firmados entre dois Estados – normalmente se fala em um Estado receptor de capitais e em um Estado exportador de capitais – e por meio

117

Declaração Ministerial de São José.

118

Declaração Ministerial de Miami.

119

Sobre a nova geração de acordos ver item 2.2.4 a seguir.

120

dos quais estabelecem-se obrigações e direitos “recíprocos” a ambos os Estados, e em que os investidores são de fato os maiores beneficiários. Os BITs caracterizam-se, portanto, pela trilateralidade: Estado receptor, Estado exportador e investidor estrangeiro.

Segundo Muchlinski,

um acordo bilateral sobre promoção e proteção do investimento estrangeiro (BIT) pode ser definido como um acordo internacional legalmente obrigatório entre dois Estados, em que cada Estado promete, com base na reciprocidade, observar os padrões de tratamento fixados no acordo em relação a investidores do outro Estado Contratante.121

Ou ainda, nas palavras de Moisés, BITs são “instrumentos através dos quais dois países, geralmente um país desenvolvido e um país em desenvolvimento, procuram regular relações em matéria de investimentos, com a finalidade de aumentar o seu fluxo”.122

Anunciados como verdadeiras fontes de atração de IED, os BITs se multiplicaram de forma extraordinária sem, que se questione, todavia, seus efeitos.

Originalmente, as questões envolvendo investimentos estrangeiros eram tratadas entre Estados por meio de amplos acordos bilaterais, os Tratados de Amizade, Comércio e Navegação (conhecidos como friendship, commerce and navigation treaties), a seguir denominados tratados FCN.123

Os primeiros tratados FCN foram firmados no século XVIII124 e são considerados os progenitores dos BITs.125 Apesar de conter disposições sobre a propriedade estrangeira, os tratados FCN tinham como principal objetivo a facilitação do comércio e a navegação126, e não a regulamentação do investimento estrangeiro. Envolviam uma série de questões, como direito de entrada, acesso aos tribunais locais, aplicação de decisões arbitrais, questões tributárias e outras127 e eram celebrados fundamentalmente entre países economicamente desenvolvidos, visando aprofundar suas relações comerciais. Diferentemente dos BITs, não

121

“A bilateral treaty for the promotion and protection of foreign investments (BIT) can be defined as a legally binding international agreement between two states whereby each states promises, on a reciprocal basis, to observe the standards of treatment lead down by the treaty in its dealing with investors from the other contracting state.” Muchlinski, 1995, p. 617.

122

Moisés, 1998, p. 24.

123

UNCTAD, 2002b, p. 5.

124

O tratado firmado entre EUA e França, concluído em 1778, é conhecido como o primeiro Tratado de Amizade, Comércio e Navegação. Sornarajah, 2004, p.209.

125

Sornarajah, 2004, p. 208.

126

Valdevelde, Kenneth J., The bilateral investment treaty program of the United States. Cornell International Law Journal, 21, 201, 1988, p. 203-08 apud Bishop, Crawford, Reisman, 2005, p. 21.

127

lhes cabia controlar o tratamento dado pelos países importadores de capital aos investidores estrangeiros.128

Os tratados FCN estenderam-se até depois da Segunda Guerra Mundial, quando surgiu o “moderno” tratado FCN em que o principal objetivo passou a ser a proteção do investimento estrangeiro.129 Ele já continha disposições encontradas nos BITs atuais, como as cláusulas do tratamento nacional, da nação-mais-favorecida, de expropriação e de transferência de fundos.130

Em 1959, Alemanha e Paquistão firmaram o primeiro BIT e, a partir de então, o número de BITs vem crescendo rapidamente. Em 1994, já havia mais de 700 BITs e no final de 2005 o total chegou a 2.405.131

A intensa atividade de conclusão de BITs resulta de uma série de fatores, dentre eles destacam-se: o interesse tanto dos países em desenvolvimento, que vêem nesse tipo de acordo uma forma de atrair recursos visando à promoção do seu desenvolvimento, quanto dos países desenvolvidos, que os consideram mais seguros na medida que determinam as regras que regularão as relações de seus investidores, ao invés de deixar que seja aplicada a legislação do país receptor.132 Nesse sentido, os BITs garantem padrões de proteção dos investidores estrangeiros.

De início esses acordos tratavam especificamente das relações entre países exportadores e países receptores de capital, ou seja, entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento. Com o tempo, no entanto, eles se mostraram capazes de abranger uma grande variedade de relações, incluindo a relação entre países em desenvolvimento.133 Durante a década de 1990 houve uma massiva proliferação de BITs, decorrente da maior participação dos países em desenvolvimento e de economias em transição nesse tipo de acordos – seja entre si, seja com países desenvolvidos.134

Do total de BITs ao final de 2004, 40% constituíam-se em acordos firmados entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento, 25% entre países em desenvolvimento, 13% entre países desenvolvidos e economias em transição, 10% entre países em

128

Muchlinski, 1995, p. 618.

129

Valdevelde, Kenneth J., The bilateral investment treaty program of the United States. Cornell International Law Journal, 21, 201, 1988, p. 203-08 apud Bishop, Crawford, Reisman, 2005, p. 22.

130

Valdevelde, Kenneth J., The bilateral investment treaty program of the United States. Cornell International Law Journal, 21, 201, 1988, p. 203-08 apud Bishop, Crawford, Reisman, 2005, p. 22-23.

131 UNCTAD, 2005c, p. 24. 132 Moisés, 1998, p. 25. 133 UNCTAD, 1999, p. 47. 134 UNCTAD, 2002b, p. 5.

desenvolvimento e economias em transição, 8% entre países desenvolvidos e 4% entre economias em transição.135

O primeiro acordo Sul-Sul foi assinado em 1964136 e desde então os BITs assumiram nova dimensão, embarcando na era de cooperação Sul-Sul. É crescente o número de BITs Sul-Sul; os seus principais protagonistas são China, Egito, República da Coréia e Malásia, que somam 40 acordos com países em desenvolvimento. As quatro nações assinaram mais acordos com países em desenvolvimento do que com países desenvolvidos.137

O incremento recente de BITs entre países em desenvolvimento demonstra a estratégia de cooperação Sul-Sul, bem como reflete a emergência desses países como verdadeiros atores globais.138

Este acréscimo no número de BITs entre países em desenvolvimento decorre, em parte, do aumento no fluxo de investimentos originários destes países139 e tem sido motivado por diversos fatores. Entre eles destacam-se: o aumento da concorrência e limitação de oportunidades nos mercados domésticos; fornecimento de matéria-prima; custo da mão-de- obra; oportunidades de acesso a mercados; e proximidade geográfica.140

No entanto, segundo Sornarajah, “a observação de que países em desenvolvimento concluam tais acordos entre si, não esconde o fato de que um destes países é o exportador de capital [...]”141, pois, apesar de os acordos contemplarem o fluxo de investimentos em duas vias, normalmente ele se dá num único sentido, consideradas as diferenças de riqueza e de tecnologia entre as partes.142 Exemplos de acordos neste sentido são os acordos entre Singapura e Sri Lanka e entre Tailândia e Bangladesh, em que Singapura e Tailândia são exportadores de capital e Sri Lanka e Bangladesh receptores de capital.143

Deve-se atentar para a questão de que os direitos estabelecidos nos BITs são recíprocos, ou seja, os direitos dos investidores do país A no país B são os mesmos dos investidores do país B em A. Na prática, contudo, é comum que os investimentos cobertos pelos acordos ocorram somente em uma direção.144

135

UNCTAD, 2005g, p. 6.

136

Protocolo entre o Governo do Estado do Kuwait e a República do Iraque sobre a Promoção de Movimentos de Capitais e Investimentos entre os dois países. UNCTAD, 2005g, p. 5.

137 UNCTAD, 2005g, p. 8. 138 UNCTAD, 2005g, p. 8. 139 UNCTAD, 2005g, p. 8. 140 UNCTAD, 2005g, p. 13. 141 Sornarajah, 2004, p. 207. 142 Sornarajah, 2004, p. 207. 143 Sornarajah, 2004, p. 214. 144 Hallward-Driemeier, 2003, p. 8.

Segundo Hallward-Driemeier, os países tendem a evitar a ratificação de BITs nos casos em que o fluxo de IED é substancial em ambas as direções.145 Em outras palavras, os países desenvolvidos normalmente não firmam BITs entre si, com poucas exceções146, pois seu relacionamento é pautado por outros instrumentos internacionais.

Os BITs têm sido o principal instrumento de regulamentação internacional de investimentos, em especial devido à impossibilidade de um consenso global na celebração de um acordo multilateral sobre o tema. Eles se diferenciam pela forma ad hoc e por poderem ser negociados de modo a satisfazer os interesses de ambas as partes.147 Desde o início o objetivo dos BITs tem sido proteger os investimentos contra a nacionalização ou a expropriação148, além de garantir a transferência de recursos e prever mecanismos de solução de controvérsias entre investidor e Estado receptor.149

O fato de historicamente os BITs terem surgido do interesse dos países desenvolvidos em proteger seus investidores, fez com que esses países possuíssem uma abordagem própria. Em geral eles possuem um modelo de acordo, que serve de base para as negociações. Os modelos de acordos bilaterais de investimentos dos EUA e do Canadá representam a abordagem mais ampla, enquanto os modelos dos países europeus são mais restritos. A abordagem européia tende a centrar o foco na proteção dos investimentos estrangeiros, enquanto a norte-americana e a canadense defendem tanto a proteção quanto a liberalização dos investimentos estrangeiros.150

A tendência dos BITs Sul-Sul é adotar o modelo europeu, estabelecendo regras de proteção e promoção dos investimentos, evitando a proibição de requisitos de desempenho e limitando as exigências de transparência ao estágio de pós-estabelecimento dos investimentos. Além disso, estes acordos distinguem-se por estabelecer maior número de exceções e por incluir a cláusula “fork-in-the-road”, que obriga os investidores a optar entre a jurisdição nacional e a internacional em caso de litígio.151

Nessa frenética expansão de BITs, é possível identificar elementos similares e que se fazem presentes em praticamente todos os acordos. Os objetivos costumam ser fixados no preâmbulo – normalmente a promoção e proteção recíproca de investimentos estrangeiros. Em seguida são identificadas as espécies de propriedades protegidas e as formas de

145

Hallward-Driemeier, 2003, p. 8.

146

Como exemplo pode-se citar o Acordo de Livre Comércio firmado entre EUA e Austrália.

147

Sornarajah, 2004, p. 212.

148

Sobre as definições de nacionalização e expropriação ver item 3.6.

149 UNCTAD, 1999, p. 44. 150 UNCTAD, 2005g, p. 31. 151 UNCTAD, 2005g, p. 31-32.

reconhecimento da nacionalidade pelos Estados. São, então, estabelecidos o padrão de tratamento concedido aos investidores estrangeiros, o direito de repatriação dos lucros, o padrão de compensação em caso de expropriação e, por fim, os mecanismos de solução de controvérsias entre Estados e entre investidor e Estado.152

Curiosamente, apesar do constante incremento no número de BITs, ainda não ficou comprovada a relação entre a assinatura desses acordos e sua capacidade de atrair mais investimentos. Ao invés disso, um estudo realizado pelo Banco Mundial153 em 2003 concluiu que os BITs não são considerados substitutos de instituições nacionais frágeis, mas complementos na atração de investimentos em países que já contam com instituições razoavelmente sólidas.154

O mesmo estudo ressalta a importância de uma análise sobre se os BITs estão produzindo os benefícios esperados e de sopesá-los com os custos dos acordos para os países receptores de investimentos.155

Hallward-Driemeier conclui seu trabalho afirmando que:

É possível que em poucos anos surja um resultado diferente [referindo-se à possibilidade de os acordos bilaterais de investimentos funcionarem como verdadeiros estímulos à atração de investimentos]. A divulgação acerca da proteção dos investidores estrangeiros em conflitos levantados de acordo com o Capítulo 11 do NAFTA, bem como os casos trazidos contra a Argentina [...], podem chamar a atenção de potenciais investidores para os ganhos que eles poderiam ter com a celebração de um acordo bilateral de investimentos e levá-los a insistir na sua conclusão. Por outro lado, os negociadores dos Estados podem tentar aprimorar as cláusulas de expropriação e compensação a fim de assegurar que as piores previsões dos críticos não se concretizem, aproximando os custos e benefícios dos acordos bilaterais de investimentos.156

É nesse contexto que se fala em uma evolução dos BITs, que poderia desdobrar-se a partir de quatro gerações de acordos de investimentos. Na primeira geração, os países liberalizaram seus regimes de investimentos. Na segunda, adotaram-se não só políticas de liberalização, mas de atração de investimentos, criando incentivos como a redução da carga

152

Sornarajah, 2004, p. 217.

153

O Banco Mundial sempre defendeu e incentivou a celebração de acordos bilaterais de investimentos.

154

Hallward-Driemeier, 2003, p. 8.

155

Hallward-Driemeier, 2003, p. 8.

156

“It is possible that in a few years a different result will emerge. The publicity surrounding the investor protection cases being brought under NAFTA’s Chapter 11 and the cases being brought against Argentina [...], may make potential investors more aware of the potential gains they would have under a BIT and insist on such terms. On the other hand, policymakers may take greater care to refine the expropriation and compensation clauses to ensure the worst fears of the critics are not realized, bringing closer together the relative costs and benefits of BITs.” Hallward-Driemeier, 2003, p.23.

tributária. A terceira geração de acordos de investimentos incorpora uma série de novos temas – serviços, compras públicas, cooperação, proteção do meio ambiente e mecanismos de solução de controvérsias.157

A quarta geração, neste trabalho denominada “nova geração”, concentra-se na atração de investimentos estrangeiros que correspondam aos interesses nacionais de desenvolvimento158 e busca, portanto, um equilíbrio entre os interesses dos investidores estrangeiros e os do país receptor. Uma definição de equilíbrio no sentido almejado pelos acordos desta nova geração é o que se pretende alcançar no item que segue.