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Ao estabelecer os direitos e as obrigações das partes como qualquer outro tratado internacional, os BITs não prevêem todas as contingências, eventualidades e tampouco disputas que podem decorrer da natureza e escopo de tais direitos e obrigações. Assim sendo, é fundamental a presença de mecanismos de solução de controvérsias quanto à interpretação e aplicação dessas normas em um contexto específico.393 A efetividade das normas estabelecidas em acordos internacionais depende da existência de mecanismos de solução de controvérsias igualmente efetivos, que lhes assegurem o cumprimento.394

Praticamente todos os acordos internacionais de investimentos, em que se estabelecem normas para a relação trilateral Estado exportador de capitais, Estado receptor de capitais e investidor estrangeiro, contêm disposições sobre dois mecanismos para a solução de controvérsias: um para controvérsias entre Estados (as chamadas disputas intergovernamentais) e outro para controvérsias investidor-Estado (denominadas disputas sobre investimentos).395

Na maioria dos acordos de investimentos há duas disposições separadas que abordam as duas espécies de disputas individualmente, estabelecendo regras próprias para cada uma delas.

Diferentemente dos Tratados de Amizade, Comércio e Navegação, apresentados no primeiro capítulo e dos acordos de investimentos anteriores à instituição do Centro Internacional para a Solução de Disputas sobre Investimentos (ICSID) – quando o investidor estrangeiro não tinha direito de instituir procedimentos contra o Estado receptor –, atualmente a maioria dos acordos de investimentos contém uma cláusula sobre solução de controvérsias investidor-Estado, a qual permite ao investidor levar o Estado receptor a um tribunal internacional.396

Quando o próprio investidor for juridicamente incapaz de levar o Estado receptor de investimentos a um tribunal arbitral para resolver a disputa, o Estado de origem do investidor 393 UNCTAD, 2004d, p. 317. 394 UNCTAD, 2004d, p. 318. 395 Dolzer, Stevens, 1995, p. 119. 396 UNCTAD, 2004d, p. 316.

desempenha a função de zelar pelos interesses de seu nacional investidor, por meio do instituto da proteção diplomática.397

Considerando que a proteção diplomática é um instrumento político e é utilizado de acordo com o interesse do Estado, a arbitragem entre investidor e Estado veio substituir em grande parte as disputas entre Estados – o que explica a pouca utilização, atualmente, do mecanismo de solução de controvérsias entre Estados.

Ainda assim, deve ser analisado o mecanismo de solução de controvérsias intergovernamentais, visando inclusive maior compreensão sobre as diferenças entre as duas espécies de mecanismos.

Três são os principais pontos de análise das disposições sobre solução de controvérsias entre Estados: (i) que disputas podem dar origem a um procedimento de solução de controvérsias; (ii) quais mecanismos o regulamentam; e (iii) qual a lei aplicável.

Quanto a determinar que disputas podem dar origem a um procedimento de solução de controvérsias, fala-se em dois modelos utilizados nos BITs. O primeiro modelo é mais amplo, fixando um mecanismo de solução de controvérsias que pode ser aplicado às “disputas” relacionadas ao acordo e às “matérias” referentes à interpretação e aplicação do tratado ou à realização dos seus objetivos – o que cobre praticamente qualquer questão decorrente do BIT.398 Este modelo pode ser ilustrado pela cláusula de solução de controvérsias entre Estados do modelo de acordo bilateral de investimentos dos EUA de 1994: “As partes concordam em se consultarem prontamente, a pedido de qualquer delas, a fim de solucionar quaisquer disputas relacionadas ao acordo, ou discutir qualquer matéria relativa à interpretação ou aplicação do Tratado ou à realização dos objetivos do Tratado”.399

O artigo VIII do modelo norte-americano de 1994 configura um exemplo de cláusula ampla de solução de controvérsias entre Estados; ao se referir a “disputes” (disputas) em conexão com o tratado e a “matters” (matérias) relacionadas à interpretação e aplicação do

397

Segundo Stern, “O Estado tem o direito de exercer sua proteção diplomática livre e discricionariamente: isso é considerado um direito do Estado. O nacional do Estado, seja uma pessoa física ou jurídica, não é detentor do direito à proteção.” Stern, 2003, p. 31. Sobre a proteção diplomática, Biggs discorre: “As from the XVIII century, the European countries applied the doctrine of diplomatic protection to those countries that they regarded as ‘non civilized’. The doctrine of diplomatic protection, which was developed by the Swiss philosopher and jurist, Emerich de Vattel, was invoked to justify the intervention of one State in the internal affairs of another with the argument that an injury to a citizen of a State constituted an affront to that State. This doctrine was incorporated into the international policies of European countries and, its most abusive form served to justify a number of foreign interventions in Latin America and other regions of the world.” Biggs, 2004, p. 66.

398

UNCTAD, 2004d, p. 324.

399

“The Parties agree to consult promptly, on the request of either, to resolve any disputes in connection with the Treaty, or to discuss any matter relating to the interpretation or application of the Treaty or to the realization of the objectives of the Treaty.” Article VIII, Model BIT USA 1994.

tratado, bem como à realização dos seus objetivos, a cláusula aborda ampla gama de assuntos decorrentes do acordo.400

Já o segundo modelo abrange somente as disputas relacionadas à interpretação e à aplicação das disposições do acordo. Exemplo é o artigo 9(1) do modelo suíço de acordo bilateral de investimentos, que dispõe: “As disputas entre as partes contratantes relacionadas à interpretação e aplicação das disposições deste Acordo devem ser resolvidas por meios diplomáticos. [...]”.401

Note-se que o modelo suíço é muito mais restrito quanto a questões que podem dar origem a um procedimento de solução de controvérsias, já que se refere somente às disputas relacionadas à interpretação e à aplicação do acordo.402

Não raramente encontram-se disposições excepcionando disputas que normalmente originariam mecanismos de solução de controvérsias. O supracitado modelo norte-americano refere-se, por exemplo, a medidas às quais não se aplicam as disposições do acordo, como as que envolvem proteção dos interesses da segurança nacional norte-americana.403

Outro exemplo de limitação à aplicação do mecanismo de solução de controvérsias entre Estados é encontrado no modelo norte-americano de 1994 que exclui as questões tributárias da aplicação de quaisquer das disposições do acordo.404

Os BITs normalmente referem-se, em suas cláusulas de solução de conflitos entre Estados, a mecanismos de negociação e consultas. Somente no caso destes mecanismos serem

400

UNCTAD, 2004d, p. 324.

401

“Article 9

Disputes between Contracting Parties

(1) Disputes between Contracting Parties regarding the interpretation or application of the provisions of this Agreement shall be settled through diplomatic channels.

(2) If both Contracting Parties cannot reach an agreement within six months after the beginning of the dispute between themselves, the latter shall, upon request of either Contracting Party, be submitted to an arbitral tribunal of three members. Each Contracting Party shall appoint one arbitrator, and these two arbitrators shall nominate a chairman who shall be a national of a third State.

(3) If one of the Contracting Parties has not appointed its arbitrator and has not followed the invitation of the other Contracting Party to make that appointment within two months, the arbitrator shall be appointed upon the request of that Contracting Party by the President of the International Court of Justice.

(4) If both arbitrators cannot reach an agreement about the choice of the chairman within two months after their appointment, the latter shall be appointed upon the request of either Contracting Party by the President of the International Court of Justice.

(5) If, in the cases specified under paragraphs (3) and (4) of this Article, the President of the International Court of Justice is prevented from carrying out the said function or if he is a national of either Contracting Party, the appointment shall be made by the Vice-President, and if the latter is prevented or if he is a national of either Contracting Party, the appointment shall be made by the most senior Judge of the Court who is not a national of either Contracting Party.

(6) Subject to other provisions made by the Contracting Parties, the tribunal shall determine its procedure. (7) The decisions of the tribunal are final and binding for each Contracting Party.” Article 9 (1), Model BIT Switzerland. 402 UNCTAD, 2004d, p. 325. 403 UNCTAD, 2004d, p. 326. 404 UNCTAD, 2004d, p. 326.

insuficientes para a solução do litígio utiliza-se a arbitragem, ad hoc ou institucional, para a solução do mesmo405, como é o caso do disposto no acordo entre Alemanha e China:

Artigo 8

Solução de Controvérsias entre as Partes Contratantes

(1) Qualquer disputa entre as Partes Contratantes relacionada à interpretação ou aplicação deste Acordo deve, até onde for possível, ser solucionada por meio de consultas via canal diplomático.

(2) Se a disputa não for solucionada no prazo de seis meses, deve, a pedido de qualquer uma das Partes Contratantes, ser submetida a um tribunal arbitral ad hoc. [...]406

Apesar da variação na redação desta cláusula, o objetivo de todas elas é fixar a obrigação para as partes se submeterem primeiramente a um período de consultas e negociações e só então fazerem uso do mecanismo de arbitragem.407

Alguns acordos estabelecem um período para a condução das consultas e negociações. Há os que estabelecem a instituição da arbitragem, por exemplo, no caso de insucesso nas consultas e negociações depois de decorridos três ou seis meses, enquanto outros não definem um prazo, dispondo que o tribunal arbitral deve ser constituído após um período de tempo razoável.408

No caso de as partes não chegarem a um acordo por meio de consultas ou negociações, os BITs via de regra estabelecem o recurso à arbitragem ad hoc. A freqüente referência à arbitragem ad hoc deve-se principalmente à existência de poucas instituições arbitrais independentes passíveis de serem nomeadas para uma arbitragem institucional envolvendo acordos internacionais de investimentos, como é o caso da Corte Permanente de Arbitragem de Haia. Outras instituições especializadas, como a Corte de Arbitragem Internacional da Câmara de Comércio Internacional e o ICSID, destinam-se exclusivamente à solução de litígios investidor-Estado.409

Diante disso, os BITs costumam apresentar em seu texto uma cláusula padrão com as regras para a instituição da arbitragem ad hoc, estabelecendo que cada parte deve nomear um membro do tribunal, que conjuntamente selecionarão um terceiro árbitro para desempenhar a

405

Muchilinski, 1995, p. 632.

406

“Article 8 Settlement of Disputes between Contracting Parties

(1) Any dispute between the Contracting Parties concerning the interpretation or application of this Agreement shall, as far as possible, be settled with consultation through diplomatic channel.

(2) If a dispute cannot thus be settled within six months, it shall, upon the request of either Contracting Party, be submitted to an ad hoc arbitral tribunal. […]” Agreement between the People’s Republic of China and the Federal Republic of Germany on the Encouragement and Reciprocal Protection of Investments.

407 UNCTAD, 2004d, p. 326. 408 Dolzer, Stevens, p. 123. 409 UNCTAD, 2004d, p. 330.

função de presidente – desde que aprovado por ambas as partes. Na maioria dos casos há um prazo limite para a nomeação dos membros, bem como para a nomeação do presidente do tribunal. No caso de as nomeações não serem feitas dentro dos prazos estabelecidos, geralmente a cláusula prevê que qualquer das partes poderá solicitar a um terceiro, em geral uma autoridade como o presidente da Corte Internacional de Justiça ou o secretário geral da ONU, que nomeie os membros do tribunal.

Além das disposições relacionadas à constituição do tribunal, é comum a inclusão de regras quanto aos custos para a realização da arbitragem, assim como quanto a procedimentos fundamentais adotados pelo tribunal. É o caso de regras determinando que as decisões do tribunal devem ser tomadas por maioria e que elas são finais e obrigatórias para as partes.

O artigo 48 do modelo de acordo bilateral de investimentos do Canadá é um exemplo de cláusula de solução de controvérsias entre Estados que aborda as diversas questões ora mencionadas.410

410

“Disputes between the Parties

1. Either Party may request consultations on the interpretation or application of this Agreement. The other Party shall give sympathetic consideration to the request. Any dispute between the Parties concerning the interpretation or application of this Agreement shall, whenever possible, be settled amicably through consultations.

2. If a dispute cannot be settled through consultations, it shall, at the request of either Party, be submitted to an arbitral panel for decision.

3. An arbitral panel shall be constituted for each dispute. Within two months after receipt through diplomatic channels of the request for arbitration, each Party shall appoint one member to the arbitral panel. The two members shall then select a national of a third State who, upon approval by the two Parties, shall be appointed Chairman of the arbitral panel. The Chairman shall be appointed within two months from the date of appointment of the other two members of the arbitral panel.

4. If within the periods specified in paragraph (3) of this Article the necessary appointments have not been made, either Party may invite the President of the International Court of Justice to make the necessary appointments. If the President is a national of either Party or is otherwise prevented from discharging the said function, the Vice- President shall be invited to make the necessary appointments. If the Vice- President is a national of either Party or is prevented from discharging the said function, the Member of the International Court of Justice next in seniority, who is not a national of either Party, shall be invited to make the necessary appointments.

5. Arbitrators shall: (a) have expertise or experience in public international law, international trade or international investment rules, or the resolution of disputes arising under international trade or international investment agreements; (b) be independent of, and not be affiliated with or take instructions from, either Party; and (c) comply with any Code of Conduct for Dispute Settlement as agreed by the Commission. […]

7. The arbitral panel shall determine its own procedure. The arbitral panel shall reach its decision by a majority of votes. Such decision shall be binding on both Parties. Unless otherwise agreed, the decision of the arbitral panel shall be rendered within six months of the appointment of the Chairman in accordance with paragraphs (3) or (4) of this Article.

8. Each Party shall bear the costs of its own member of the panel and of its representation in the arbitral proceedings; the costs related to the Chairman and any remaining costs shall be borne equally by the Parties. The arbitral panel may, however, in its decision direct that a higher proportion of costs be borne by one of the two Parties, and this award shall be binding on both Parties.

9. The Parties shall, within 60 days of the decision of a panel, reach agreement on the manner in which to resolve their dispute. Such agreement shall normally implement the decision of the panel. If the Parties fail to reach agreement, the Party bringing the dispute shall be entitled to compensation or to suspend benefits of equivalent value to those awarded by the panel.” Article 48, Model BIT Canada 2004.

Uma alternativa a esta espécie de disposição relacionada aos procedimentos para o estabelecimento de tribunal arbitral ad hoc constitui-se na nomeação de um conjunto já fixado de regras, como as Regras de Arbitragem da UNCITRAL. O modelo de acordo bilateral de investimentos dos EUA de 2004 utiliza-se desta alternativa:

Artigo 37: Solução de Controvérsia Estado-Estado

1. Conforme o parágrafo 5, qualquer controvérsia entre as Partes relacionada à interpretação ou aplicação deste Tratado, que não seja resolvida por meio de consultas ou outros meios diplomáticos, deve ser submetida a pedido de qualquer uma das Partes à arbitragem para uma decisão vinculante ou a um tribunal para uma sentença, de acordo com as regras de direito internacional aplicáveis. Na falta de acordo entre as partes, serão aplicadas as Regras de Arbitragem da UNCITRAL, exceto no que forem modificadas pelas Partes ou por este Tratado. [...]411

Diante do exposto, conclui-se que os mecanismos que regulamentam a solução de controvérsias entre Estados podem tanto estar dispostos no texto do acordo quanto ser fixados por outras instituições, que emprestam suas regras à realização de arbitragens ad hoc.

Quanto à lei aplicável, os BITs em geral não esclarecem em sua cláusula de solução de controvérsias entre Estados qual a lei aplicável pelos tribunais arbitrais.412 No entanto, quando o fazem são praticamente uniformes na nomeação tão-somente das regras estabelecidas no acordo e normas e princípios do direito internacional.413

Sornarajah entende que a inclusão de cláusula de solução de controvérsias entre Estados nos BITs pode tanto fazer com que diversas questões políticas internas sejam submetidas à arbitragem, quanto criar jurisdição para revisar as políticas dos Estados contratantes. Assim sendo, ainda há dúvidas sobre se a inclusão desta disposição nos BITs é desejável414 do ponto de vista da proteção à soberania dos Estados.

A possibilidade de os países utilizarem esse mecanismo de solução de controvérsias para intervir na definição das políticas internas dos Estados com quem firmam os acordos revela-se preocupante na medida em que pode representar mais uma fonte de limitação da soberania do Estado na realização de políticas públicas de interesse público.

411

“Article 37: State-State Dispute Settlement

1. Subject to paragraph 5, any dispute between the Parties concerning the interpretation or application of this Treaty, that is not resolved through consultations or other diplomatic channels, shall be submitted on the request of either Party to arbitration for a binding decision or award by a tribunal in accordance with applicable rules of international law. In the absence of an agreement by the Parties to the contrary, the UNCITRAL Arbitration Rules shall govern, except as modified by the Parties or this Treaty. […]” Model BIT USA 2004.

412 Dolzer, Stevens, 1995, p. 128. 413 UNCTAD, 2004f, p. 46. 414 Sornarajah, 2004, p. 256.