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Aqui adota-se a corrente de Kelsen quanto à designação de dois tipos de Poder Constituinte: o originário e o derivado. Apesar de não haver unidade entre os doutrinadores, essa designação é quase que integralmente aceita pela doutrina nacional.

O poder constituinte é, em si mesmo, originário. Na verdade, por tratar-se de algo novo, afirma-se que referido poder “inaugura nova ordem jurídica”. Isso quer dizer que quebra os fundamentos e normas do regime anterior trazendo normas novas, compatíveis com os ideais revolucionários de seus respectivos líderes.

Pode ser instaurado por diversos fatores: a) determinado grupo incita outro a manifestar-se de forma a modificar a ordem jurídica existente; b) determinado governante impõe nova carta com normas mais adequadas ao seu modo de dirigir o Estado; c) algum grupo que toma o poder expurgando os dirigentes anteriores. Para que o poder constituinte de fato seja estabelecido basta que haja rompimento da ordem jurídica anterior e o estabelecimento de uma nova.

Diante desses elementos é que se pode dizer que o poder constituinte pode ser usurpado, quando algum ditador toma o poder popular e impõe ao povo nova constituição. De outro lado, tem-se o legítimo, quando, de fato, há participação popular, seja pela manifestação popular direta, seja pelos já referidos deputados constituintes.8

É por esse motivo que há uma repartição doutrinária baseada na possibilidade de que, não obstante haja reconhecimento de que o Poder Constituinte pertença ao povo, divisa-se duas formas para o seu exercício: outorga e assembleia nacional ou congresso constituinte.

A outorga – É ato unilateral de quem detém o poder a fim de estabelecer a constituição, sem a participação do povo. Há a imposição de limites por parte do próprio dirigente estatal e, ao mesmo tempo, regras constitucionais destinadas à observância dos governados.

A assembleia nacional ou congresso constituinte – Forma mais adequada de exercício do Poder Constituinte. Aqui, seus legitimados (o povo), de forma democrática, outorgam a seus representantes especialmente eleitos poderes específicos para a elaboração da constituição.

5.1. Características

Como visto, o Poder Constituinte não se funda em outro poder. Possui natureza extrajurídica, de fato, sem condicionantes ou previsões acerca de sua manifestação. Por esse motivo, possui características diferenciadas, capazes de lhe imprimirem matiz próprio. São elas:

Inicial – Não há outro poder ou previsão que se funde. Inaugura nova ordem jurídica. É inédito, e, portanto, suas regras não guardam conexão ou consonância com o ordenamento anterior. Ele é fruto de uma revolução (seu veículo de manifestação). Tem-se aqui uma afirmação de Sieyès que bem ilustra o sentido dessa característica. Para ele, os deputados constituintes se encarregam da plenitude da vontade nacional. Portanto, referidos parlamentares, em assembleia constituinte, estão no lugar da nação. São como ela, independentes. Para eles basta querer como querem os indivíduos no estado de natureza.

Autônomo – O Poder constituinte, por meio de seus representantes, substitui a nação independentemente de toda espécie de formas constitucionais. Esse é motivo pelo qual Sieyès sublinha que a legislatura extraordinária (a constituinte) em nada se parece com a ordinária. É um poder especial cujos deputados são eleitos para um único assunto, por determinado tempo. Isso contribui para ilustrar que não há qualquer previsão do ordenamento anterior ou mesmo limitação que possa restringir sua ampla manifestação.

Ilimitado – Abre-se aqui um parêntese para indicar que a ilimitação é jurídica, ou seja, nenhum regramento anterior lhe estabelece bases ou regras. Pode expressar-se da maneira que bem entender, sem qualquer restrição.

No que tange a esta característica, Ferreira Filho9 afirma que não há

uniformidade quanto a essa designação. Isso depende da corrente doutrinária que lhe analisa. Segundo os positivistas, cuja convicção está unicamente no direito posto, esse matiz confere ao poder o grau de soberano, pelo fato de não submeter-se a qualquer regra material ou formal.

Para os jusnaturalistas, ainda segundo o autor, essa característica se refletiria na adjetivação “autônomo” para esse Poder, pelo simples fato de não se curvar a nenhuma regra jurídica; contudo, deve se sujeitar ao direito natural, preexistente ao homem.

Outra posição importante destacada por Mendes10 citando Bockenforde,

quanto a uma eventual limitação intrínseca do Poder Constituinte originário, seria o fato de não haver espaço para decisões caprichosas ou totalitárias, já que ele existe para ordenar juridicamente o poder do Estado; ademais, um poder absoluto que queira continuar ser absoluto não caberia em uma constituição que representa justamente um meio de delimitação frente ao exercício arbitrário do poder.

Incondicionado – Essa característica fica por conta da inexistência de regras ou condicionamentos procedimentais capazes de influenciar o novo texto. A constituição revogada não possui qualquer ascendência sobre a manifestação da nova. Isso quer dizer que os procedimentos lá previstos relacionados à alteração ou mesmo à existência de outro ato capaz de convocar uma nova Constituinte seriam desnecessários para sua manifestação, que é totalmente livre e parte da própria revolução.

5.2. Efeitos relacionados ao seu exercício

As consequências geradas pelo exercício desse poder são de altíssima relevância no plano jurídico. As novas regras inseridas pelo texto constitucional devem passar por uma análise a fim de se observar a sua aplicabilidade e verificar quais necessitam ou não de regulamentação. Deve- se, entretanto, efetivar uma análise prévia quanto à legislação existente e a compatibilidade dela em face da nova constituição. A seguir, os fenômenos resultantes da promulgação de nova constituição e sua relação com o ordenamento jurídico preexistente.

5.2.1. Recepção

O precursor da teoria do escalonamento da ordem foi Hans Kelsen,11 tendo

afirmado que o escalonamento normativo revela “a particularidade que possui o Direito de regular a sua própria criação”.12

Esse escalonamento hierárquico compreenderá a distribuição das normas pertencentes a um mesmo ordenamento jurídico em diferentes níveis; isso pressupõe que as inferiores devem retirar seu fundamento de validade diretamente das normas superiores; consequentemente haverá compatibilidade formal e material com a constituição.

Uma das características essenciais do Poder Constituinte Originário é sua inicialidade, pela qual as normas por ele estabelecidas inauguram nova ordem jurídica. Porém, o que ocorre quando outra ordem já existia e não se configurava absolutamente oposta àquela proposta pelos constituintes? É possível o aproveitamento das mesmas?

A questão se coloca oportuna pelo fato de o novo ordenamento demandar uma infinidade de novas normas. Isso acarreta a necessidade de criação delas com o intuito de regulamentar os novos dispositivos. Por esse motivo, a recepção, como instituto que é, resulta adequada no sentido de que o indivíduo não fica à mercê da discricionariedade legislativa para a criação de norma. Ela já existe e contém elementos adequados para o pleno exercício do direito ratificado pela constituição de outro instituto regulamentado pela anterior.

Essa dimensão foi devidamente explorada por Jorge Miranda,13 cujas

exatas palavras foram: “constitucionalidade e inconstitucionalidade designam conceitos de relação: a relação que se estabelece entre uma coisa – a constituição – e outra coisa – uma norma ou um acto – que lhe está ou não conforme, que com ela é ou não compatível, que cabe ou não cabe no seu sentido.”

Destarte, isso significa dizer que as normas anteriores, compatíveis com a nova constituição, permanecem vigentes e com conteúdo idêntico; porém, com fundamento novo. A simples aderência ao novo sistema lhes garantem efetividade.

A jurisprudência do STF é no sentido de que a antinomia entre norma ordinária anterior e a constituição superveniente se resolve em mera revogação da primeira, cuja declaração não se presta à ação direta. O mesmo ocorre com as provenientes de emenda à constituição. A lei ordinária ou complementar anterior se torna incompatível com o texto constitucional modificado.14

Importante observar que a determinação de exigências no âmbito formal de uma norma compatível não necessita estar em consonância com a nova ordem. Isto é, se uma norma é materialmente válida, seu veículo de exteriorização é irrelevante, mesmo se incompatível com a nova constituição. Por exemplo, o Código Tributário Nacional, apesar de ser uma lei ordinária, foi recepcionado como se fosse complementar, em decorrência da nova exigência constitucional (CF/67).

Contudo, essa posição não é aceita pelo Excelso Pretório. Aqui, as reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal ratificam a inviabilidade de se declarar a inconstitucionalidade superveniente e do controle concentrado sobre o conflito entre leis anteriores e a constituição em vigor.

5.2.2. Desconstitucionalização

O que ocorre com as normas contidas na constituição anterior não incompatíveis com a constituição nova? Estariam elas de alguma forma revogadas ou mesmo recepcionadas pelo novo texto constitucional?

Na hipótese vertente, poderia se apontar o fenômeno da desconstitucionalização, a qual resulta no rebaixamento de normas constitucionais para a categoria de normas infraconstitucionais. Na verdade, ela deixa de ser formalmente constitucional para ser materialmente constitucional.

Esse fenômeno não está previsto em nosso ordenamento. Não se mesclam normas de Poderes Constituintes diversos. É possível, como visto, o aproveitamento, pela recepção, de normas materialmente compatíveis com a constituição. Contudo, as normas formais, presentes no texto anterior, são consideradas revogadas pela simples existência da nova constituição.

Já houve, inclusive, a previsão no texto, expresso na Constituição de 1937, indicando que “continuam em vigor, enquanto não revogadas, as leis que, explícita ou implicitamente, não contrariem as disposições desta Constituição” (art. 183 da CF/37). Porém, nada que possibilitasse o aproveitamento de normas anteriores. Se nada existe expresso nesse sentido, consideram-se revogadas todas as normas da carta anterior.

De forma a reiterar o que anteriormente se afirmou, faz-se referência ao previsto no art. 34 do ADCT vigente, o qual prorrogou a vigência, por cinco meses, das normas relacionadas ao sistema tributário nacional da Constituição de 1967 com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 1 de 1969 e posteriores. Contudo, isso não significou a adesão ao instituto em comento. Tratou-se de exceção já consumada. Certamente, se houvesse previsão nesse sentido no texto constitucional, não haveria nenhum obstáculo, eis que se trata da manifestação do poder constituinte.

Pode-se exemplificar a desconstitucionalização de outras formas como, por exemplo, uma norma da presente constituição que é excluída por emenda à constituição e passa a fazer parte de uma lei ordinária vigente.