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Ulrich Beck e Elisabeth Beck-Gernsheim: a modernidade e a individualização

SUBJETIVIDADE DOS INDIVÍDUOS NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO

2. Ulrich Beck e Elisabeth Beck-Gernsheim: a modernidade e a individualização

Ulrich Beck e Elisabeth Beck-Gernsheim abordam os significados dos impactos da segunda modernidade na vida dos indivíduos e da constituição deles como tal. Para eles, o que caracteriza esse período de reestruturação capitalista são quebras de narrativas, incongruências estruturais. A preocupação dos autores é com o “tornar-se indivíduo” ou, posto em questão: quem é esse indivíduo contemporâneo? Eles começam por discorrer sobre o caso da Alemanha Oriental e dos países do Leste Europeu que, após a queda do Muro de Berlim, nos anos 90, viram-se diante de uma a liberdade que não tinham antes, bem como de um novo estilo de vida ocidental que implicava numa guinada para um processo cada vez maior de individualização. Para eles (BECK; BECK-GERNHEIM, 2002, p. 2), esse conceito significa tanto a desintegração de formas sociais previamente existentes, como o aumento da fragilidade de categorias como classe e status social, papeis de gênero, família, vizinhança etc. ou, como no caso da Alemanha Oriental, está ligado ao colapso de normas sancionadas pelo estado, quadros de referências e modelos. Eles questionam (BECK; BECK- GERNHEIM, 2002, p. 2): “[...] Que novos modos de vida estão emergindo onde os velhos, ordenados pela religião, a tradição ou o Estado, estão quebrando?” Isso leva a outro aspecto que eles explicam da seguinte forma:

Trata-se, simplesmente, que nas sociedades modernas novas exigências, controles e restrições estão sendo impostas em indivíduos. Através do mercado de trabalho, o Estado e as instituições de bem-estar, as pessoas estão amarradas em uma rede de regulamentações, condições, ressalvas. Do direito à pensão para proteção de seguro, de bolsas de estudo para as taxas de imposto: todos estes são pontos de referências institucionais que marcam o horizonte dentro do qual o pensamento moderno, planejamento e ação devem ocorrer (BECK; BECK-GERNHEIM, 2002, p. 2).

Esse cenário das sociedades modernas que transmite a ideia de que os indivíduos são todos livres é o mesmo que os impõe o que os autores denominam por “biografia do faça

2420 você mesmo1”, que é sempre uma biografia do risco ou da “corda bamba”, um estado de permanente comprometimento. As decisões passam a ser de responsabilidade dos indivíduos que, livres, são penalizados por erros ou fracassos.

A escolha errada de carreira ou apenas o campo errado, agravada pela espiral de infortúnio privado, divórcio, doença, a casa recuperados – tudo isso é simplesmente chamado de má sorte. Esses casos trazem à tona o que sempre foi secretamente nos cartões: a biografia do faça você mesmo pode rapidamente se tornar a biografia do colapso (BECK; BECK-GERNHEIM, 2002, p. 3).

Porém, esse processo de individualização não foi uma opção dos indivíduos. Inspirando-nos no que Jean Paul-Sartre coloca ao discorrer sobre o existencialismo, os indivíduos estão condenados a ser livres. Neste caso, estão condenados à individualização.

A individualização é uma compulsão, ainda que paradoxal, para criar, para encenar gerenciar, não só a própria biografia, mas os laços e redes que o rodeiam e para fazer isso em meio a mudanças de preferências e em sucessivas fases de vida, enquanto que constantemente se adaptam às condições do mercado de trabalho, o sistema de ensino, o estado de bem- estar e assim por diante (BECK; BECK-GERNHEIM, 2002, p. 4).

Os indivíduos devem ser capazes de planejar as suas vidas a longo prazo, de se adaptar às mudanças e de organizar e improvisar, estabelecer metas, reconhecer obstáculos, aceitar derrotas e sempre tentar novos começos. Além disso, na perspectiva dos autores, precisam de iniciativa, tenacidade, flexibilidade e tolerância à frustração (BECK; BECK- GERNHEIM, 2002, p. 4). Eles devem estar preparados para as oportunidades, perigos e incertezas. Podemos perceber isso cotidianamente, por exemplo, com pessoas que sofrem de depressão e que são responsabilizadas por estarem assim. Problemas sociais, como doenças, vícios e desemprego passaram a ser vistos como de culpa e responsabilidades individuais. No entanto, eles acabam por serem diretamente transformados em disposições psicológicas, em sentimento de culpa, ansiedade, conflitos e neuroses.

Ao mesmo tempo em que a modernidade permite a ideia de que é possível fazer por si mesmo o seu destino, parece não levar em consideração as questões sociais, que muitas vezes interferem nesse processo. Esse processo de individualização é visto no presente. Podemos

1 Do-it-yourself biography.

2421 questionar: que liberdade é essa que obriga os indivíduos a serem livres? Os autores colocam que o que, às vezes, vê-se é uma prevalência da anomia em relação à autonomia.

Nesse contexto, as rotinas e as instituições são entendidas como tendo uma função desorientadora. Porém, a sua destruição pode ter consequências negativas na vida dos indivíduos, como estresse e depressão. Trata-se do que os autores pontuam como quebras da linearidade. Antes, na sociedade industrial, na primeira modernidade, as rotinas eram altamente definidas e orientadoras das vidas das pessoas. Agora, com a quebra delas, cada um é responsável pela sua dinâmica de vida e pelos seus horários. O que se vê, muitas vezes, são indivíduos confusos, perdidos e desamparados.

Um exemplo que eles mostram é o do casamento que, antes não servia à felicidade individual, mas era um meio de se alcançar a sucessão familiar e material. A estabilidade da ordem social e hierarquia dependiam dele. Segundo os autores:

O casamento não foi realizado em conjunto com o amor, a auto-descoberta e auto-terapia de dois assalariados buscando um ao outro e a si mesmos, mas foi fundada em obrigação religiosa e materialmente ancorada nas formas conjugais de trabalho e de vida (BECK; BECK-GERNHEIM, 2002, p. 9).

Com o desenvolver da modernidade, o casamento se tornou uma filial do Estado, sendo legalmente ordenado. A ordem mundial do casamento tornou-se a ordem individual que deve ser questionada e reconstruída pelos indivíduos. Trata-se de uma situação individual dependente de instituições (BECK; BECK-GERNHEIM, 2002, pp. 11-12). Nesse contexto, em outras esferas da vida, parece que o desejo das pessoas cada vez mais é por ter sua “própria vida2”, isto é, elas querem assumir o controle de suas vidas, independente das demais ou de instituições. Elas querem ser as autoras de suas histórias, que criam suas identidades individuais. No entanto, isso implica em assumir responsabilidade por infortúnios pessoais e eventos imprevistos. Segundo os autores:

Dinheiro significa o seu próprio dinheiro, espaço significa o seu próprio espaço, mesmo no sentido elementar de uma pré-condição para uma vida que você pode chamar o seu possuir. Amor, casamento e paternidade são obrigados a ligar e manter unida a própria história de vida centrífuga do indivíduo. Seria apenas um pequeno exagero para dizer que a luta diária por uma vida própria tornou-se a experiência coletiva do mundo ocidental. Ela expressa o resto de nosso sentimento comum (BECK; BECK-GERNHEIM, 2002, p. 22).

2 A life of one’s own.

2422 Eles evidenciam que, para entendermos o sentido de coesão social, é preciso começarmos a partir do reconhecimento de que o individualismo, a diversidade e o ceticismo estão inscritos na cultura ocidental.

Na era global, a vida não é mais sedentária ou vinculada a um lugar específico, mas sim viajante, literal e, metaforicamente, uma vida nômade, em que é gasta em carros, aviões, telefone, internet, que caracterizam uma transnacionalidade alongada além das fronteiras Os autores denominam por “globalização das biografias3”, que significa, na verdade uma poligamia de lugar: as pessoas estão casadas com vários lugares ao mesmo tempo. Para eles (BECK; BECK-GERNHEIM, 2002, p. 25): “A transição da primeira para a segunda modernidade é também uma transição de lugar monogamia para colocar a poligamia”. Neste contexto, espera-se que as pessoas vivam as mais diversas e contraditórias identidades e riscos transnacionais e pessoais. A individualização significa destradicionalização.

É preciso entendermos o curso e as consequências de processos de individualização no seio da sociedade, que são de interesse para que compreendamos grandes mudanças sociais na fase avançada da modernidade. Segundo os estudiosos em questão:

Há fortes indícios de que eles tendem a trazer uma mudança no significado social e no padrão de tais estruturas centrais do mundo da vida, como a família (casamento, paternidade), os papéis de gênero, relações com a comunidade, as relações de trabalho e filiações partidárias e que eles ajudam a explicar os “novos movimentos sociais” e comportamento político em geral, incluindo a questão do consenso e governabilidade nas sociedades modernas (BECK; BECK-GERNHEIM, 2002, p. 31).

A individualização, para eles, pode ser entendida como um produto do mercado de trabalho, manifestando-se na oferta e na aplicação de uma variedade de habilidades. Eles colocam que os indivíduos se tornam relativamente independentes dos laços sociais herdados ou recém-formados, como família e a vizinhança. Ao se tornarem independentes, a vida deles assume uma qualidade independente que, pela primeira vez, torna possível a experiência de um destino social. Eles também chamam a atenção para o isolamento que os grandes centros urbanos promovem. Muitas pessoas preferem ficar fechadas em seus apartamentos a terem relações na rua ou com os vizinhos.

Os autores também discorrem acerca da “tirania das possibilidades”. Isso está inserido na ideia de que a individualização significa autonomia, emancipação e liberdade. É como se

2423 agora tivéssemos muitas possibilidades e só coubessem aos indivíduos as escolhas. Nas palavras deles (BECK; BECK-GERNSHEIM, 2002, p. 27): “Hoje, mesmo o próprio Deus tem que ser escolhido”. As pessoas se tornam responsáveis por decidir sobre as mais diversas esferas de suas vidas. Por exemplo, a ideia é de que se elas se alimentam mal e desenvolvem problemas como obesidade é por culpa própria e não por uma série de fast-foods espalhados pelos lugares nem tampouco as condições econômicas que não permitem o contrário. Isso é uma quebra com a primeira modernidade, das possibilidades já dadas. Porém, essas escolhas mascaram as condições sociais que, muitas vezes, cerceiam essa aparente liberdade. Na verdade, trata-se de um discurso fortemente propagado pelo liberalismo de que os indivíduos são todos iguais.

Como consequência disso, temos que os problemas sociais são cada vez mais percebidos em termos de disposições psicológicas, como sentimento de culpa, inadequações pessoais, ansiedade e neuroses. É preciso, na cultura do self, ter preparo para situações de conflito, capacidade de conflitos, coragem etc. Nas sociedades modernas, diferentemente das tradicionais, é preciso aprender a lidar com as incertezas no cotidiano, com as decisões a serem tomadas e as consequências dessas, sejam positivas ou não.