• Nenhum resultado encontrado

Richard Sennett e o capitalismo flexível

SUBJETIVIDADE DOS INDIVÍDUOS NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO

1. Richard Sennett e o capitalismo flexível

No livro “A corrosão do caráter” (SENNET, 2009, p. 9), Richard Sennett coloca como categoria analítica central o capitalismo flexível, que ataca as formas rígidas da burocracia, bem como os males da rotina cega. Nele, pede-se aos trabalhadores que sejam ágeis, estejam abertos a mudanças em curto prazo e que assumam riscos continuamente, além de dependerem cada vez menos de leis e procedimentos formais. O autor (SENNETT, 2009, p. 10) acrescenta que: “Diz que, atacando a burocracia rígida e enfatizando o risco, a

2416 flexibilidade dá às pessoas mais liberdade para moldar suas vidas”. No entanto, essa aparente liberdade traz à tona uma série de crises pelas quais os indivíduos estão passando nesse cenário econômico. São crises de valores e de caráter, que são os traços pessoais que damos a nós mesmos e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem. Para o autor, o novo capitalismo flexível impõe como questões centrais sobre o caráter:

Como decidimos o que tem valor duradouro em nós numa sociedade impaciente, que se concentra no momento imediato? Como se podem buscar metas ao longo prazo numa economia dedicada ao curto prazo? Como se podem manter lealdade e compromissos em instituições que vivem se desfazendo ou sendo constantemente reprojetadas? (SENNETT, 2010, p. 10).

Para refletir sobre essas questões, ele traz à tona trajetórias de vida de pessoas aleatórias, mas cujos exemplos são bastante ilustrativos dessas angústias trazidas pelo capitalismo flexível. Ele começa descrevendo a rotina e os objetivos de Enrico, um imigrante italiano que trabalhava como faxineiro nos Estados Unidos. Sua vida se resumia, basicamente, ao trabalho para poder juntar dinheiro e, assim, custear o estudo dos filhos. Ele conseguia calcular o seu tempo: sabia, por exemplo, quando iria se aposentar. Enrico era fortemente impelido pelo sonho americano de mobilidade ascendente para os filhos. Sennett coloca questionamentos sobre os efeitos do capitalismo flexível a partir das trajetórias de Rico, o filho do italiano, que ascendeu socialmente, conseguindo bom estudo e emprego, mas que parecia rejeitar o estilo do pai. Enquanto a esposa de Rico dirigia uma equipe de contadores, ele abriu uma pequena empresa de consultoria, que fazia com que tivesse que correr de um lado para outro em resposta aos mutáveis caprichos ou ideia dos clientes. É interessante perceber que Sennett (2009, p. 18) relata que Rico não tinha um papel fixo que lhe permitisse dizer aos outros: “É isto o que faço, é por isso que sou responsável”. Ele temia que as medidas que precisava tomar e a maneira como tinha de viver para sobreviver na economia moderna houvessem posto sua vida emocional, interior, à deriva. As mudanças institucionais no mercado de trabalho pareciam mexer diretamente com as angústias de Rico, ainda que ele não se desse conta de tal fato. Diferente do tempo do pai, Rico vivencia a era do trabalho a curto prazo, por contrato ou episódico, em que as tarefas não são claramente definidas, com redes caracterizadas pelos laços fracos, que se concretizam no trabalho de equipe, em que a equipe passa de tarefa em tarefa e muda de pessoal no meio do caminho. Dessa forma, Sennett questiona como Rico pode dar o exemplo de compromisso mútuo, de

2417 lealdade para os filhos em meio a um mercado que tem como característica principal os laços fracos. Para além dessa crise, ainda havia o fato de que a esposa precisava ser transferida de cidade por causa do trabalho, o que fazia que eles não criassem laços, por exemplo, com a vizinhança. Ou, ainda, nas palavras do autor:

Se eu fosse explicar mais amplamente o dilema de Rico, diria que o capitalismo de curto prazo corrói o caráter dele, sobretudo aquelas qualidades de caráter que ligam os seres humanos uns aos outros e dão a cada um deles um senso de identidade sustentável (SENNETT, 2009, p. 27).

Vemos que o caso de Rico é bastante comum no sistema em que vivemos, que exige que encaremos como algo necessário essa flexibilidade. Agora, é preciso que estejamos dispostos a mudar de trabalho, de moradia, de cidade, entre outros. É preciso combater o tempo rotineiro, tão característico da sociedade moderna e da ordem industrial, contexto em que Rico estava imerso. É como se passássemos a “controlar” o nosso tempo, porém não nos damos conta do que essa flexibilização traz consigo uma série de responsabilidades e queda de limites entre e o trabalho e a vida familiar, por exemplo. A ideia de “trabalhe para você mesmo” carrega a mensagem de que a pessoa tem que estar disponível todo o tempo. A vitória contra a rotina pode deixar um vazio existencial nos indivíduos.

Além do exemplo de Rico, Sennett descreve a vida de Rose, que é proprietária de um bar em Nova Iorque, que foi chamada para trabalhar numa agência de publicidade especializada em bebidas. Ela aceitou o desafio, que a fez estar em contato constante com tópicos do mundo flexível: “mudança”, “oportunidade” e “novo”. Ela se sentia o tempo todo sendo testada, bem como com a sensação de estar sempre começando de novo, embora não soubesse em que posição estava. Ela não conseguia perceber sequer a existência de medidas objetivas que se aplicassem a fazer um bom serviço. Além disso, ela sentia que já estava fora dos padrões etários, pois a flexibilidade equivale a juventude e ela se considerava velha, pois já tinha mais que cinquenta anos. Esse receio também acontecia com Rico. Nesse contexto, o elemento central na análise de Sennnett é o risco que, no cenário do capitalismo flexível, torna-se normal, comum ou, ainda, um ato de heroísmo (SENNETT, 2009, p. 94): “A própria instabilidade das organizações flexíveis impõe aos trabalhadores a necessidade de ‘trocar’ de vaso, isto é, de correr riscos com seu trabalho”. Ele ainda acrescenta o pensamento de um dos autores que será posteriormente discutido no presente texto, Ulrich Beck:

2418 A disposição de arriscar, porém, não deve ser domínio apenas de capitalistas de risco ou indivíduos extremamente aventureiros. O risco vai se tornar uma necessidade diária enfrentada pelas massas. O sociólogo Ulrich Beck declara que, ‘na modernidade avançada, a produção social da riqueza é sistematicamente acompanhada pelas produções sociais de riscos (SENNETT, 2009, p. 94).

Acompanhando do risco, vem a ideia de fracasso que, para o autor, é um grande tabu moderno. É como se a oposição entre o sucesso e o fracasso transmitisse a ideia de responsabilização individual ou do “Eu não sou bom o bastante”. Ele utiliza o exemplo dos trabalhadores da IBM, altamente qualificados, que ou foram demitidos ou tratados como escriturários inferiores ou faxineiros. Isso os deixou crises profundas, pois dedicaram anos de suas vidas àquela empresa. Ele resume essa ideia:

Um eu maleável, uma colagem de fragmentos em incessante vir a ser, sempre aberto a novas experiências – essas são as condições adequadas à experiência do trabalho de curto prazo, a instituições flexíveis e ao constante correr riscos. Mas, há pouco espaço para compreender o colapso de uma carreira, se se acredita que toda história de vida é apenas uma colagem de fragmentos (SENNETT, 2009, pp. 159-160).

Todos esses casos de trajetórias de vida acabam por ter como questão central: “Como construir narrativas num contexto de capitalismo flexível?”. Tratam-se de crises de valores e de problemas nos indivíduos que não são meramente psicológicos, mas que têm relação direta com patologias sociais e, principalmente, contemporâneas. São narrativas singulares, mas ao mesmo tempo comuns. Num cenário de esgarçamento total dos laços sociais, surgem perguntas do tipo: Como nos responsabilizamos, nos comprometemos numa situação de fluidez absoluta? O que significa liberdade, responsabilidade, compromisso com o outro?

Os exemplos podem nos submeter à ideia de que Sennnett utiliza personagem social, conceito colocado na introdução deste trabalho: o autônomo, a pessoa mais velha em um novo emprego, os funcionários de longa data que são demitidos. Porém, é preciso perceber a singularidade dessas trajetórias. São exemplos para refletirmos sobre problemas sociais mais gerais, mas ao mesmo tempo não podem ser utilizados como estruturais nem determinísticos. Eles nos fazem perceber que questões que, na discussão do personagem social, certamente seriam relegadas ao psicologismo, são tratadas pela Sociologia do Indivíduo como ligadas às patologias sociais. Podemos perceber o que Brym et al. pontua ao discorrer sobre a Sociologia:

2419 Você sabe há bastante tempo que vive em sociedade; no entanto, pode ser que, até o momento, não se tenha dado conta plenamente de como a sociedade vive em você. Padrões de relações sociais afetam seus pensamentos e sentimentos mais íntimos e influenciam suas ações e, portanto, ajudam a definir quem você é (BRYM et al., 2006, pp-7-8).