• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 1 – Cadeias Globais de Valor: definições, contextualização, mensuração e impactos

1.3. Efeitos da participação nas Cadeias Globais de Valor

1.3.1 Possíveis efeitos da participação nas CGVs

Pesquisas recentes sugerem que as CGVs se tornaram uma força central que impulsiona a mudança estrutural em muitas economias modernas, mas que sua ascensão pode desencadear tanto efeitos positivos quanto negativos (Sturgeon e Memedovic, 2011).

Do lado positivo, a participação efetiva nas CGVs pode fornecer aos países a oportunidade de avançar seu processo de desenvolvimento. Com a exportação de bens e serviços intermediários nas CGVs, economias podem obter benefícios do comércio sem precisar esperar pelo próprio desenvolvimento de capacidades de design ou de demanda do mercado consumidor doméstico (Gereffi e Sturgeon, 2013). Paralelamente, as empresas locais nos países em desenvolvimento podem obter maior sucesso em seus próprios mercados, combinando insumos intermediários nacionais e estrangeiros e criando economias de especialização que alavancam as complementaridades transfronteiriças por meio de canais abertos de aprendizagem tecnológica (Sturgeon e Memedovic, 2011). Neste caso, a importação de intermediários pode ser um fator importante de aumento de eficiência, mesmo que não seja reexportado, mas sim absorvido pela economia doméstica.

Por meio das CGVs, os países trocam mais do que produtos, comercializam know- how e executam tarefas juntos. O fluxo de know-how possibilitado pelas CGVs de países de alta renda para países de baixa e média renda é, segundo Taglioni, Winkler e Engel (2017), uma das principais razões porque as CGVs são importantes para o desenvolvimento. Países de renda baixa e média podem se beneficiar de patentes, marcas registradas, práticas operacionais, gerenciais e de negócios, especialização em marketing, e modelos organizacionais.

As grandes corporações multinacionais estabelecem processos e fluxos sofisticados, em que partes e componentes produzidos geograficamente em instalações distantes podem ser perfeitamente integrados e personalizados para diferentes mercados mundiais. Assim, as multinacionais têm também um papel ativo para melhorar localmente a inovação, o capital intensivo em conhecimento e o desenvolvimento de competências (Taglioni, Winkler e Engel, 2017).

Assim, para os países em desenvolvimento, os fluxos de comércio, investimento e conhecimento que sustentam as CGVs podem fornecer mecanismos para uma rápida aprendizagem, inovação e modernização industrial (Lall, 2000; Humphrey e Schmitz, 2002). As CGVs podem fornecer melhor acesso à informação, abrir novos mercados e criar oportunidades para aprendizagem tecnológica e aquisição de habilidades. Porque as transações e investimentos vinculados a CGVs normalmente vêm com sistemas de controle de qualidade e padrões de negócios globais vigentes que excedem os dos países em desenvolvimento, fornecedores e indivíduos em países em desenvolvimento podem ser "empurrados" para adquirir novas competências e habilidades. Nos países em desenvolvimento mais profundamente integrados as CGVs, estas melhorias nos processos de negócios podem ser sentidas além das empresas e setores de exportações (Sturgeon e Memedovic, 2011).

Ainda do lado positivo, autores defendem que as CGVs impulsionaram o emprego, permitindo uma maior especialização e uma produção em maior escala, direcionando uma alocação geográfica mais eficiente das atividades industriais (Whittaker et al., 2010; Breznitz, 2011 apud Sturgeon e Memedovic, 2011). Em resumo, a ideia é de que países em desenvolvimento que se integram às CGVs de uma forma eficaz em geral produzem mais, criam melhores empregos, fornecem maiores oportunidades para fornecedores domésticos para comércio, se beneficiam do aumento das exportações e, por fim, experimentam maiores ganhos de produtividade (Taglioni, Winkler e Engel, 2017).

No âmbito negativo, as CGVs podem criar barreiras à aprendizagem e gerar um desenvolvimento desigual ao longo do tempo, mesmo quando desencadeiam um rápido desenvolvimento industrial (Kaplinsky, 2005). Há evidências consideráveis de que as maiores rendas se acumulam nas empresas líderes da cadeia de valor que controlam a marca e a concepção do produto e nas empresas líderes que fornecem tecnologias centrais e componentes avançados (Chesbrough, 2001; Gawer e Cusumano, 2002; Linden e Somaya, 2003).

Nesse sentido, o fluxo de know-how apontado por Taglioni, Winkler e Engel (2017) como um dos principais fatores pelos quais a inserção nas CGVs são importantes para o desenvolvimento econômico pode também ser entendido como um fator negativo, em especial se as firmas líderes protegerem seus ativos intangíveis e impedirem sua difusão para outras empresas e outras regiões. Assim, os ganhos da captura de valor podem ocorrer de maneira desigual, apesar de poder ocorrer o crescimento absoluto de países que participem do processo. As empresas que fornecem tarefas rotineiras de montagem e outros serviços simples dentro das CGVs ganham menos, pagam menos aos seus trabalhadores e são mais vulneráveis aos ciclos de negócios porque tendem a manter empregos e capital fixo em larga escala. Se uma

dessas categorias de empresas tende a dominar um país ou região específica, as consequências para o desempenho econômico e o bem-estar social podem ser profundas e persistentes, moldando os sistemas de negócios da economia por longos períodos. Assim, a concentração em apenas atividades específicas, rotineiras e de baixo valor agregado pode limitar as empresas e indústrias nacionais a permanecerem em segmentos não-lucrativos e pouco intensivos em conhecimento das CGVs (Sturgeon e Memedovic, 2011).

Os países podem não conseguir avançar sobre ativos-chave que conferem maior valor às mercadorias como, por exemplo, o desenvolvimento de produto e o estabelecimento de ativos comerciais próprios (marca, canais de comercialização e distribuição). De acordo com Suzigan et al. (2007, p. 429):

Isso prejudica sobremaneira a capacidade das firmas locais em apropriar-se de maior fatia do valor gerado ao longo da cadeia produtiva e, ao mesmo tempo, garante a capacidade de comando da cadeia produtiva como um todo pelos grandes compradores internacionais. Portanto, boa parte dos benefícios que são gerados pela aglomeração dos produtores, benefícios esses resultantes de economias externas de aglomeração e de possíveis ações conjuntas, não são apropriados pelas empresas locais. A capacidade de governar e comandar a rede de empresas faz com que o valor gerado ao longo dos processos de produção e distribuição de mercadorias seja apropriado, em sua maior parte, pelos grandes compradores internacionais.

Além disso, esforços no nível da empresa para aprender e se beneficiar da participação em CGVs podem não ser eficazes (Morrison et al. 2008), sistemas nacionais de inovação, incluindo certificações e normas, metrologia, sistemas de testes e qualidade, podem não ser suficientes para satisfazer as exigências de compradores ou corporações multinacionais (Pietrobelli e Rabellotti 2011 apud Sturgeon et al. 2017). Assim, a aprendizagem pode até ser rápida no início, mas com o tempo, os limites podem ser agudamente sentidos (Schmitz, 2004; Kawakami e Sturgeon, 2011 apud Sturgeon e Memedovic, 2011).

Também é possível que a fragmentação nas CGVs prejudique pequenas economias, dependendo do processo de engajamento nas CGVs. Por exemplo, startups bem-sucedidas de pequenas economias tendem a ser adquiridos por multinacionais maiores, com capacidades principais posteriormente mudadas para a central do país para reduzir custos de transação. Enquanto esta dinâmica pode beneficiar os empresários de imediato, é prejudicial ao acúmulo

de escala, economias de aglomeração (ou seja, clusters), ganhos de produtividade e ampliação das capacidades industriais na economia pequena (Sturgeon et al., 2017).

No caso dos países em desenvolvimento, chama a atenção o desempenho econômico tão distinto entre eles a despeito do deslocamento das atividades das grandes corporações em sua direção, em busca de uma estrutura mais flexível e menos verticalizada. Para Sarti e Hiratuka (2010), os países em desenvolvimento aproveitaram de forma diferenciada as oportunidades geradas pelas mudanças nas formas de organização das grandes corporações. Segundo os autores, as estratégias de fragmentação da produção ao interagirem com as diferentes políticas econômicas dos países em desenvolvimento, resultaram em um processo assimétrico de desenvolvimento industrial desde os anos 1980, com desempenhos bastante diferenciados entre os países em desenvolvimento da Ásia e da América Latina, fazendo com que os países do Leste Asiático tivessem um desempenho muito superior aos países da América Latina, conseguindo manter taxas bastante elevadas de crescimento das exportações e da produção de manufaturados.

Isso evidencia que a despeito da maior integração nas CGVs dos países em desenvolvimento, as assimetrias no desempenho econômico se explicam por outros fatores além da participação nas CGVs, como ativos intangíveis, investimentos em infraestrutura, políticas industriais, investimentos em P&D, entre outros.

Para os países industrializados, é difícil contestar que as CGVs ajudaram a acelerar a perda de empregos em indústrias intensivas em mão-de-obra, como vestuário e calçados, enquanto permitiu que empresas domésticas competissem melhor internamente e no exterior em indústrias intensivas em tecnologia, como tecnologia da informação (Mann e Kirkegaard, 2006 apud Sturgeon e Memedovic, 2011). No entanto, como as CGVs podem espalhar rapidamente o trabalho entre vários países, existe a preocupação de que essa inovação e a criação de novas indústrias não tenham mais qualquer garantia de emprego doméstico em grande escala (Davis, 2010 apud Sturgeon e Memedovic, 2011).

Em economias de alta renda há uma preocupação generalizada de que as empresas usam CGVs para esvaziar o valor adicionado doméstico por meio da terceirização internacional do emprego e transferência de lucros para o exterior. Isso é previsto na análise de Samuelson (2004, p. 137) que argumenta que, sob certas condições a terceirização internacional daria à China parte da vantagem comparativa que havia pertencido aos EUA, podendo induzir uma perda permanente de renda real per capita nos EUA (Kummritz, 2016).

Outro aspecto negativo que a fragmentação da produção pode causar são danos irreversíveis para os sistemas de inovação dos países. Pisano e Shih (2009) argumentam que os

EUA têm perdido seu potencial de inovação ao transferir atividades industriais para outros países. Os autores definem industrial commons como a rede de conhecimento tecnológico, capacidades operacionais e habilidades especializadas desenvolvidas nas relações entre fornecedores, clientes, força de trabalho, universidades e múltiplos setores industriais. Como as empresas americanas têm erodido os industrial commons, os EUA podem perder capacidades para desenvolver produtos de alta tecnologia e conhecimentos para produzir tecnologias mais avançadas incorporadas em novos produtos e processos.

O’Sullivan e Mitchell (2013) também alertam para os riscos de perda da capacidade de inovar e desenvolver novas tecnologias e produtos com a perda de interação das economias de conhecimento com as bases produtivas, o que acontece no deslocamento de estágios da produção para outros países. Porque as tecnologias emergentes dependem frequentemente de elementos industrial commons de setores mais maduros, a fragmentação da produção pode reduzir a capacidade de uma nação competir em novas indústrias mais importantes do futuro.

Outro aspecto crítico sobre os benefícios e custos de se engajar na CGV está relacionado à especialização setorial. Segundo a literatura econômica estruturalista, os setores apresentam potenciais diferentes entre si para promover o crescimento econômico a longo prazo devido às suas especificidades. Alguns de seus expoentes como Hirschman (1958) e Myrdal (1957) argumentam que a indústria detém capacidades especiais para promoção do crescimento econômico, baseado no maior encadeamento e nos retornos crescentes de escala do setor. Autores de outras correntes, como kaldoriana, pós-keynesiana e neo-shumpeteriana, também costumam convergir quanto à importância do setor manufatureiro para o crescimento econômico. Mesmo a escola neoclássica, ainda que desconsidere diferenças entre setores para promoção do crescimento, reconhece o papel da mudança tecnológica como um dos determinantes do crescimento. Como os setores apresentam diferentes capacidades tecnológicas16 entre si, a análise setorial se mostra interessante para qualquer uma das abordagens.

Além disso, autores relacionados à abordagem da complexidade econômica como Rodrik (2007) e Hausmann et al. (2011) apontam a diversificação produtiva e maior complexidade econômica como aspecto chave para o desenvolvimento econômico. Se a maior integração nas CGVs levar à uma concorrência predatória de atividades pré-existentes na economia grande – que tende a apresentar um grau de diversificação de atividades maior do

16 Sabe-se que as classificações por intensidade tecnológica apresentam limitações e que podem não refletir

verdadeiramente o diferencial de tecnologia entre os setores, mas ainda assim sua análise pode evidenciar conclusões interessantes.

que economias pequenas – é possível que os efeitos negativos se sobreponham aos efeitos positivos e que a economia se torne menos diversificada e menos complexa. Por outro lado, se a maior inserção nas CGVs tender a complementar a produção doméstica e estimular o aumento de eficiência em setores pré-existentes, os efeitos positivos podem prevalecer, levando ao aumento da captura de valor e ao aumento da diversificação e da complexidade econômica.

Nesse sentido, é importante avaliar os efeitos positivos ou negativos da inserção de dos GPEDs nas CGVs individualmente e conforme os setores em que ocorrem, de acordo com o nível tecnológico e a intensidade de conhecimento, o que será realizado no capítulo 3.