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A democracia representativa, em sua forma ampla, tem atrelado a si princípios de soberania popular e controle social das ações dos agentes públicos. A responsabilização desses governantes e servidores, nos moldes atuais, surgiu com o New Public Management e o controle de resultados, imbuído dos ideais que operam no setor privado, exercendo o cidadão um novo papel, o de cliente do Estado. De acordo com Corbari (2004, p.100) a sociedade “passa a legitimar os seus representantes ao longo do período em que os eleitos permanecem no poder. Assim, a responsabilidade pelas decisões políticas passa a ser dividida com o público-alvo”.

No esteio dessas reformas estatais, que incluíram os países da América Latina tardiamente – apenas nas últimas décadas do século XX, foi incorporado o conceito de accountability como

sinônimo do que seria a responsabilização que o cidadão-cliente espera que o Estado-empresa sofra quando este não se comporta de maneira adequada.

A palavra de origem inglesa não possui tradução literal para o português, segundo Campos (1990) mais por falta do próprio conceito do termo na cultura brasileira do que propriamente pela ausência de um vocábulo ou expressão compatível. A pesquisadora, que estuda accountability desde a década de 1970 nos Estados Unidos, enfatiza que essa dicotomia cultural deixa clara as diferenças entre a política americana e a brasileira.

A falta de referência terminológica e conceitual acabou por gerar citações diversas entre os teóricos, sendo associado normalmente ao termo de responsabilidade em seu sentido objetivo. Frederich Mosher (1968 apud CAMPOS, 1990, p.33), entende accountability como “responsabilidade objetiva ou obrigação de responder por algo: como um conceito oposto a – mas não necessariamente incompatível com – responsabilidade subjetiva”, que seria aquela ligada à moral e intrinsecamente relacionada ao comprometimento voluntário do sujeito.

Por sua vez, a responsabilidade subjetiva se diferencia da objetiva, uma vez que esta “acarreta a responsabilidade de uma pessoa ou organização perante uma outra pessoa, fora de si mesma, por alguma coisa ou por algum tipo de desempenho" (MOSHER, 1968 apud CAMPOS, 1990, p.3).

Tomando accountability como sinônimo de responsabilização objetiva, Pinho e Sacramento (2009) citam a concepção de Schedler (1999) quanto à necessidade de haver ‘identificação’, ‘justificativa’ e ‘punição’ para que o ciclo da accountability se efetive, sendo necessários, para tanto, dois passos. O primeiro, denominado ‘answerability’, incorpora a ‘identificação’ e a ‘justificativa’, e é a obrigação dos agentes públicos em prestarem contas de seus atos. O segundo passo é o ‘enforcement’, e refere-se à “capacidade das agências de impor sanções e perda de poder para aqueles que violarem os deveres públicos” (SCHEDLER 1999, apud PINHO; SANTANA, 2009, p.1349). A aplicação de penalidades aos agentes públicos pela responsabilização por seus atos ilícitos é parte inerente do conceito de accountability. Przeworski define que:

Os governos são accountable se os cidadãos têm como saber se aqueles estão ou não estão atuando na defesa dos interesses públicos e podem lhes aplicar as sanções apropriadas, de tal modo que os políticos que atuarem a favor dos interesses dos cidadãos sejam reeleitos e os que não o tenham feito percam as eleições (PRZEWORSKI, 1998).

Verifica-se que o autor está tratando especificamente da accountability objetiva (ou vertical), em seu sentido mais conhecido, quando o cidadão, objetivamente, “pune” os representantes, que entendam não terem feito um trabalho a contento, deixando de votar nestes

para um novo mandato. Da mesma forma, reelegem-nos caso considerem que são dignos de continuarem representando a população.

Neste ponto, é necessário definir quem, na prática, pode promover a accountability governamental, e para isto é preciso diferenciar os tipos ou formas desta na literatura. O’Donnell (1991) traz os conceitos de accountability horizontal e vertical de forma sucinta:

Nas democracias consolidadas, a accountability opera, não só, nem tanto, “verticalmente” em relação àqueles que elegeram o ocupante de um cargo público (exceto, retrospectivamente, na época das eleições), mas “horizontalmente”, em relação a uma rede de poderes relativamente autônomos (isto é, outras instituições) que têm a capacidade de questionar, e eventualmente punir maneiras “impróprias” de o ocupante do cargo em questão cumprir suas responsabilidades (O’DONNELL, 1991, p.32).

Nesta definição, a posição e a capacidade punitiva dos atores em relação aos agentes públicos é o que diferencia o tipo de accountability. Ainda segundo o autor, nas democracias, os cidadãos, imbuídos de informações adquiridas através da mídia, conseguem “articular reivindicações e mesmo denúncias de atos de autoridades públicas” (O’DONNELL, 1998, p.28), desencadeando o processo de accountability vertical, que se consolidada na não reeleição dos agentes políticos considerados corruptos.

Já a accountability horizontal corresponde à responsabilização e a punição dos atores públicos através das agências estatais legalmente autorizadas para este fim. Ela corresponde a atuações que incluem tanto a supervisão de rotina até a sanções legais como o impeachment relativo a atos praticados ou não praticados por servidores e agentes no exercício da ação pública ou agências pertencentes ao Estado que possam ser enquadradas como delituosas (O’DONNELL, 1998, p.40).

Há ainda um terceiro tipo de accountability, derivado do modelo vertical. É a accountability societal, que cobra a responsabilização dos agentes públicos através da ação organizada da sociedade civil, e é uma forma alternativa de ampliar e fortalecer os processos de responsabilização. Para Smulovitz e Peruzzotti (2000), essa forma de buscar a responsabilização,

se baseia nas ações de uma multiplicidade de cidadãos, associações e movimentos e também na mídia; ações que visam expor as irregularidades governamentais, trazendo novas questões ao público, agenda, ou ativando a operação de agências horizontais (SMULOVITZ; PERUZZOTTI, 2000, p.150).

Para que este tipo de responsabilização dos agentes públicos aconteça deve existir uma sociedade civil influente o suficiente para que as punições e sanções ocorram não somente através do processo eleitoral, mas acionando a accountability horizontal. No entanto, independentemente de ser vertical, horizontal ou societal, a eficácia dos processos de

accountability, bem como os mecanismos de controle social das ações do Estado, depende em grande medida do nível de organização dos interesses públicos de determinada sociedade.

Nos países em que a democracia está consolidada e a sociedade civil é fortalecida, a responsabilização objetiva dos agentes públicos é parte da cultura e do cotidiano. Para Matos (2009, p.31), “uma estrutura estatal visceralmente atravessada pelo princípio da equidade e da justiça social, pelos mecanismos de accountability é onde se retomaria a percepção dos cidadãos enquanto cidadãos”.

Ocorre que no Brasil, o desenvolvimento da sociedade civil é fragilizado historicamente pela alternância de períodos de democracia populista com outros ditatoriais; bem como pela manutenção de velhas práticas como o clientelismo, patrimonialismo, nepotismo que contaminam a capacidade de participação popular de forma autônoma.

De acordo com Nunes (1997), mesmo diante de todos os avanços que contribuem para uma maior transparência dos atos administrativos brasileiros, as características de constituição cultural e política do país não se desfizeram com a introdução de novos paradigmas e modelos econômicos, mas se rearranjaram para perpetuar-se no tempo. Segundo ele, “o clientelismo constituía um importante aspecto das relações políticas e sociais no país [e] os arranjos clientelistas não foram minados pela moderna ordem capitalista – permaneceram nela interligados de maneira conspícua” (NUNES, 1997, p.26).

Dessa forma, entende-se que ainda falta um canal mais efetivo de interação entre os cidadãos e o Governo Federal, para ouvir os anseios da população sobre o uso do recurso público e sobre os destinos do país. Por outro lado, adentrar por este caminho denota pensar nos conceitos de Accountability Democrática, no sentido de se verificar previamente a quem caberá a responsabilização pelo uso dos recursos públicos.

Nessa senda, Behn (1998), faz uma indagação sobre o que se quer dizer com accountability democrática. Diz ainda que os defensores do paradigma da gestão pública respondem a essa questão responsabilizando-se apenas pelo resultado e não pelo processo. O autor levanta também, outras questões que merecem destaque, a saber:

Como iremos cobrar accountability de quem e para produzir quais resultados? Quem, exatamente, irá assumir as atividades de cobrança de accountability? A questão da accountability democrática tem quatro componentes, levantando quatro perguntas, suplementares mas inter-relacionadas: (i) quem decidirá quais resultados devem ser produzidos? (ii) quem deve responder pela produção desses resultados? (iii) quem é responsável pela implementação do processo de accountability? (iv) como irá funcionar esse processo de accountability? (BEHN, 1998, p.18).

Verifica-se então que se não houver participação social na tomada de decisões dificilmente os cidadãos farão uso do controle para com os resultados das políticas públicas.

Ser corresponsável pelas ações denota participação e compromisso por aqueles que participam do processo. Essa coparticipação perpassa pela possibilidade de inclusão na agenda das demandas emanadas e identificadas do e pelo povo.

A inclusão de temas na agenda depende de muitos fatores, mas segundo Royo (1999), em geral elas ocorrem em três etapas: primeiro quando se assume um problema como sendo público, posteriormente haverá a eleição daqueles considerados prioritários (esta é a fase de maior conflito frente aos interesses de vários grupos, sejam políticos, maiorias, minorias, ideais, entre outros) e por fim, a terceira fase onde são executadas as políticas de acordo com a possibilidade de atendimento pelo orçamento.

O autor chama a atenção para a segunda fase pelos conflitos que gera e identifica as possíveis causas de atendimento da demanda entre as quais aquelas que acolham a um maior número da população, aquelas que sejam de fácil resolução, as que são antigas e que aparecem de forma recorrente em denúncias, especialmente na mídia e, aquelas que o autor chama de “imperfeitas” são as “que apresentam anomalias e necessitam de uma maior sensibilidade do que as questões mais bem estruturadas, tendem a necessitar de critérios excessivamente técnicos para motivar a sensibilização da comunidade” (ROYO, 1999, p.38).

Identificando-se essas formas de inclusão na agenda há uma maior possibilidade de que sejam viabilizados os mecanismos adequados para conseguir priorizar aquelas que sejam de interesse da comunidade que deverá se articular valendo-se de algumas das formas identificadas pelo autor para, assim, se incluir como corresponsável pela proposta e pela coparticipação na tomada de decisão, desde que sejam identificadas como de interesse público e de competência do Estado.

A convicção de atendimento ocorre quando se evoca a obrigação do poder público relativo à igualdade de tratamento entre os cidadãos, a responsabilidade de execução da ação com a “mesma qualidade dos serviços, independente do espaço geográfico” e o dever de se equilibrar a distribuição da riqueza entre os diferentes grupos sociais (ROYO, 1999, p.43).

Observa-se que no momento em que há uma maior participação social na tomada de decisões, é muito mais provável que também sejam contempladas as respostas para as indagações de Behn Robert relativo à accountability democrática, desde que os objetivos e metas sejam específicos e bem definidos em todas as ações tendo em vista que, segundo o autor “os dois inimigos da accountability são os objetivos pouco claros e o anonimato [no entanto] ao promover a especificidade das metas e reduzir o anonimato, a nova gestão pública está fortalecendo a accountability” (BEHN, 1998, p.33-34).

Pinho e Sacramento (2009) consideram como marcos legais os desdobramentos dos mecanismos de accountability no Brasil tanto da Constituição de 1988 quanto alguns traços do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Os autores citam que a sociedade civil conseguiu avançar e se estruturar durante o processo de luta pela redemocratização com o surgimento de organizações como Ordem dos Advogados do Brasil; Associação Brasileira de Imprensa e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, dentre outras.

Porém, Pinho e Sacramento (2009), apontam que algumas dessas entidades tornaram-se “organizações dedicadas basicamente aos assuntos relativos a suas áreas e a seus interesses corporativos”; mas mesmo diante dessa realidade, o balanço é positivo, pois “é notório que uma nova safra de organizações tem sido plantada, por iniciativa da própria sociedade, com o propósito de exercer o controle político do governo, algumas atuando em nível local, outras em nível nacional” (PINHO; SACRAMENTO, 2009, p.1356).

Reforça-se que, com relação à transparência governamental em nível nacional, destacam- se a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e a criação da Controladoria Geral da União (CGU), já nos anos 2000, como marcos para a accountability no país. Enquanto a LRF “impôs limites e condições para a gestão das receitas, despesas e endividamentos”; a CGU “provoca a atuação de órgãos importantes para a realização das dimensões de enforcement” (PINHO; SACRAMENTO, 2009, p.1359).

Além desses dois instrumentos, Anastasia e Melo (2002), entendem que ainda são destacáveis outras iniciativas em prol da transparência que ampliam as possibilidades de accountability, como, no âmbito do Poder Legislativo, a publicização dos processos dos Fundos de Participação de Estados e Municípios que estão disponíveis para consulta pelos interessados através da internet. Relativo ao Poder Judiciário, Grau (2006), destaca a importante criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) como órgão de controle administrativo, financeiro e funcional deste Poder.

O que se depreende das formas de accountability apresentadas: vertical, horizontal, societal ou democrática é que todas denotam um sentido de responsabilização, seja por parte do Estado (em seu sentido amplo ou integral), seja por parte da sociedade civil. Poder-se-ia então denominá-la como o sentimento de responsabilidade que pesa sobre qualquer cidadão frente às políticas públicas, independente de este estar ou não imbuído de autoridade para exercer o poder objetivo na execução destas. O quadro abaixo, apresenta de forma resumida as três formas de participação democrática discutidas acima:

Quadro 1 – Participação democrática

Tipos de participação Ideias-base Principais autores Controle social

A discussão permeia dois extremos: uma sob o controle que o Estado (entendido como Poder) exerce sobre os cidadãos e a outra, ao controle que os cidadãos (entendida como sociedade em geral) exercem sobre o Estado.

Silva, Ferreira e Barros (2008); Fuentes (2011); Arretche (2006); Pereira (2009); Bravo e Correia (2012); Bresser Pereira (1997); Abrucio (2010) Participação social Tem o sentido de partilha de poder, onde o cidadão participa de forma plena na arena de

discussão das políticas públicas.

Moroni (2005); Costa e Vieira (2013); Faria e Ribeiro (2010) Accountability

É aquela que ocorre de dentro para fora e, tanto quem responsabiliza quanto quem é responsabilizado, desenvolve um sentimento de pertencimento pela coisa pública.

Corbari (2004); Matos (2009); Behn (1998); Royo (1999) Fonte: Elaboração própria, 2018.

Na busca de tentar preencher a lacuna de propiciar a coparticipação da sociedade, lhe concedendo condições inclusive de incluir pautas na agenda de discussões governamentais, o próximo item apresentará alguns instrumentos utilizados para viabilizar essa participação, com ênfase nas ouvidorias públicas.