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O progresso das marcas no século XX

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Capítulo 2 – O consumo na contemporaneidade

3.1 A gênese das marcas

3.1.3 O progresso das marcas no século XX

Com a publicidade cada vez mais crescente, sobretudo, no período após a Primeira Guerra Mundial, a aquisição e a construção de marcas passaram a ser identificadas com o sucesso no desenvolvimento das empresas (PEREZ, 2016, p. 5). Tendo o apoio

da publicidade para a construção e difusão da identidade corporativa, certas marcas passaram a ter valores financeiros extraordinários, já no início do século XX. Por exemplo, a marca Dodge foi vendida por 74 milhões de dólares, em 1924, e a marca Camel foi avaliada em 10 milhões de dólares na mesma época (COSTA, 2011, p. 69).

... a Unilever, desde a criação de sua primeira marca de sabão, lançou fortes campanhas de anúncios. O orçamento que a companhia investia anualmente no princípio do século XX chegava a 100 mil libras. Os estudos efetuados na época pela A.C. Nielsen Company indicavam que a preferência dos con- sumidores, em 75% de suas compras, era pelos produtos amparados pela publicidade, uma tendência crescente nos EUA naqueles últimos anos. Na época dourada da publicidade, J. O. Peckham recomendava às empresas: “não lancem um produto no mercado sem prever um orçamento suficiente para a publicidade” (COSTA, 2011, p. 69).

O sistema de gestão de marcas, argumentam Khauaja e Prado (2008, p. 17), teve sua gênese na empresa Procter & Gamble, em 1931, pois ela foi a primeira a propor um sistema de gestão focado na marca, tendo como suporte uma equipe de gerência responsável pela criação de um programa de negócios e sua coordenação com outras áreas, como vendas e manufatura. Klein (2009, p. 31) menciona que, tempos depois, na década de 1940, muitas empresas, conscientes de que a marca não era apenas um logo e um slogan, passaram a valorizar a identidade corporativa, sendo que a busca de significado gradualmente distanciou as agências de publicidade dos produ- tos para aproximá-las de um exame psicológico/antropológico sobre o que as marcas significavam para a vida das pessoas. Para Klein (2009, p. 31), isso foi de fundamen- tal importância, pois muitas dessas empresas compreenderam que podem fabricar produtos, mas neles há um importante elemento que decide a compra: a marca.

De acordo com Semprini (2010, p. 26), a partir da metade do século XX, é possível identificar quatro fases principais na evolução das marcas, caracterizadas por oscila- ções entre pontos altos e baixos, mas sempre em crescente complexidade. A primeira fase durou em torno de 15 anos (1958 a 1973) e acompanhou o progresso da socieda- de de consumo. Nessa época, as marcas foram aos poucos substituindo produtos do campo (produzidos artesanalmente) ou a produção anônima vendida no varejo sobre bancadas de mercado. As marcas instalaram-se nos supermercados e hipermercados e acompanharam a evolução das práticas de consumo, mostrando como usar novos produtos e garantir sua qualidade. As palavras mágicas eram modernidade, progresso e produção em massa, embora a comunicação publicitária, encarregada de tornar as marcas familiares aos consumidores, estava ainda limitada às possibilidade de difu- são reguladas por uma legislação restritiva e pelo monopólio do audiovisual.

A segunda fase na evolução das marcas, de acordo com Semprini (2010, p. 27), teve início pelos choques petrolíferos de 1973 e 1977 e marcaram um desaquecimen-

to brutal, imprevisto e repentino no crescimento econômico. A crise teve reflexos nas marcas, que atravessam muito mal esse período de estagnação, embora elas não fos- sem o objeto de uma crítica específica, já que o alvo era a própria sociedade de con- sumo.1 Durante esse período, que só foi alterado em meados da década de 1980 com

a retomada do crescimento, o papel e o significado das marcas não mudaram muito. Semprini (2010, p. 28) prossegue explicando que a terceira fase na evolução de marcas correspondeu a um período de grande crescimento econômico a partir da se- gunda metade da década de 1980, caracterizado por um notável desenvolvimento da comunicação publicitária: a oferta de suportes de comunicação televisiva e de rádio aumentaram consideravelmente, sendo que as empresas, em crescimento, não hesi- taram em investir verbas significativas em planos de comunicação. Compreendeu-se, nesse período, que as marcas ultrapassariam as fronteiras do consumo para invadir o espaço social, tendo uma fusão entre a lógica comercial (própria das marcas) e uma lógica espetacular mais geral, cuja comunicação desempenha papel essencial:

...pela primeira vez, [...] a marca era muito mais do que um simples adjuvante para um produto e serviço e [...] estava se tornando uma entidade autônoma de comunicação. Cansado de uma simples comunicação que exaltava esta ou aquela vantagem do produto, o consumidor parecia esperar da marca um dis- curso mais amplo, mais profundo, mais atraente, mais espetacular. Exatamente nesta época que se opera uma importante transformação na lógica do funciona- mento das marcas. As dimensões que “excedem” a realidade do produto tomam a dianteira e tornam-se o núcleo constitutivo da marca, como se os consumido- res pedissem para serem estimulados, requisitados, seduzidos pelas marcas, em vez de serem simplesmente informados (SEMPRINI, 2010, p. 28-29).

Khauaja e Prado (2008, p. 17) argumentam que é possível observar um aumento do discurso sobre valores de marca, a partir da década de 1980. Um caso amplamente conhecido do resultado dessa evolução foi a aquisição da empresa Kraft Foods pela Philip Morris, em 1988, que pagou seis vezes o valor que a Kraft Foods valia no papel (especificamente US$ 12.6 bilhões). Para Klein (2009, p. 31), a diferença de preço es- tava no custo da palavra “Kraft”: claro que décadas de marketing e favorecimento de marca agregaram mais valor à empresa do que seus ativos e vendas anuais totais; no entanto, a compra da Kraft apresentou esse imenso valor em dinheiro justamente por causa de um bem antes abstrato e ainda não quantificável: a própria marca.

Isso foi uma notícia espetacular para as agências de publicidade, que então pude- ram justificar, mais do que nunca, que investir na comunicação de marcas era como investir em capital puro. Klein (2009, p. 32) argumenta que isso levou a um aumento considerável na inflação da identidade das marcas, que não apenas queriam usar a

1. Nesse período, diversos teóricos criticaram duramente a sociedade e suas práticas de consumo. Como exemplo, cita-se Baudrillard e sua obra “A Sociedade de Consumo” (lançada em 1964) ou Bour- dieu e sua obra “A Distinção” (lançada em 1979).

televisão, o rádio ou anúncios impressos, mas também extrapolar em patrocínio e so- nhar com novas áreas capazes de ampliar o valor de suas marcas.

Como escreve Semprini (2010, p. 30), o rápido desenvolvimento da esfera comer- cial, na década de 1980, contribuiu para dar a sensação de que as marcas haviam-se tornado puros fenômenos publicitários e que elas poderiam se libertar da dimensão produtiva que as havia gerado. A esfera do consumo e o espaço físico dos super- mercados não bastavam mais para as marcas, que faziam de tudo para serem vistas publicamente e ocupar territórios cada vez mais amplos. Klein complementa:

...essa mudança radical na filosofia corporativa lançou os fabricantes em um frenesi de fomento cultural à medida que se apoderavam de cada canto da paisagem sem marca em busca de oxigênio necessário para inflar suas gri- fes. No processo, quase nada ficou sem uma marca (KLEIN, 2009, p. 32).

Khauaja e Prado (2008, p. 18) explicam que, no Brasil, o valor da marca também se tornou um componente muito importante no processo de avaliação das empresas, sendo essencial nas decisões de investimentos por causa da abertura da economia nacional, no início da década de 1990, o consequente aumento das fusões entre em- presas e a aquisição de novas marcas. Corroborando o pensamento de que marcas

...as fusões e as aquisições realizadas por essas empresas visavam, pre- ferencialmente, os bens intangíveis, como as marcas. Isso quer dizer que a importância monetária pelo qual as empresas são vendidas não corresponde, em muitos casos, apenas ao valor de seus edifícios, máquinas, instalações, ou seja, dos seus ativos tangíveis, mas representa também o valor dos seus ativos intangíveis, incluindo a construção de uma marca que leva anos para ser bem consolidada no mercado (KHAUAJA; PRADO, 2008, p. 19).

O início da década de 1990 demonstrou uma grande tendência à promoção de mar- cas e a compreensão de que seu valor poderia ir muito além de produtos. Klein (2009, p. 38), aliás, compara que em 1983, as marcas americanas gastaram 70% do seu orçamento de marketing com publicidade, sendo 30% em outras formas de promoção (brindes, concursos, displays de lojas, etc.). Já em 1993 a proporção se inverteu: 25% foi gasto em propaganda e outros 75% foi gasto em promoções.

Alguns fatos, entretanto, abalaram consideravelmente a tendência à promoção de marcas. Semprini (2010, p. 30) lembra primeiramente de uma recessão que assina- lou o fim de um período de forte crescimento e coincidiu com a Guerra do Golfo: as marcas não escaparam a essa inversão de tendência. No meio de um clima pouco promissor, a mesma Philip Morris, que em 1988 atraiu os holofotes de Wall Street por adquirir a Kraft Foods, por um preço seis vezes maior do que a empresa valia no pa-

pel, chocou novamente o mundo dos negócios, mas dessa vez o motivo não era para entusiasmo: como lembra Klein (2009, p. 36), na sexta-feira, 2 de abril de 1993, a pu- blicidade foi colocada em cheque pelas próprias marcas que o setor havia construído. A Philip Morris anunciou um corte de 20% nos preços comerciais do cigarro Marlboro, como tentativa emergente, para concorrer com outras marcas mais baratas que esta- vam tomando cada vez mais espaço em seu segmento de mercado:1

Os gurus ficaram loucos, declarando em uníssono que não só a Marlboro estava morta, mas todas as marcas. O motivo era que se uma marca de “prestígio” como Marlboro, cuja imagem fora cuidadosamente preparada, cui- dada e melhorada com mais de um bilhão de dólares em publicidade, estava tão desesperada a ponto de concorrer com produtos sem marca [isto é, com marcas bem menos conhecidas], então claramente todo o conceito de marca tinha perdido seu valor (KLEIN, 2009, p. 36).

Semprini (2010, p. 30) explica que as ações da Philip Morris perderam, em um só dia, quase um quinto do valor enquanto os meios de comunicação não hesitaram em anunciar a “morte das marcas” e o “retorno aos produtos”. Afinal, o corte de preços em uma das marcas mais valiosas do mundo significava que o nome Marlboro já não era suficiente para manter sua posição no mercado. Os compradores, afetados pela recessão, pareciam dar mais atenção ao preço do que a marcas específicas: “de re- pente parecia mais inteligente alocar recursos em reduções de preço e outros incenti- vos do que em campanhas de publicidade fabulosamente caras” (KLEIN, 2009, p. 37). Contudo, Semprini (2010, p. 31) avalia que o debate anunciado sobre a morte das marcas logo se dissolveu quando houve a retomada econômica, a partir de 1994, que prosseguiu até o final da década e que culminou com a queda da bolsa nos anos de 2001 e 2002. Na verdade, Klein (2009, p. 39) avalia que algumas grandes empresas, além de não concordarem com a hipótese de que as marcas haviam morrido, conti- nuaram a investir no gerenciamento de seus ativos intangíveis. Essas incluem Nike, Apple, Body Shop, Calvin Klein, Disney, Levi’s e Starbucks, cujo gerenciamento e investimento contínuo em suas marcas (branding), em vez de declinar, cada vez mais estava se tornando uma preocupação. Consequentemente, essas marcas foram as que tiveram maior sucesso nesse período de recessão e incertezas.

A lição da Sexta-feira de Marlboro foi que nunca houve de fato uma crise das marcas – apenas marcas que tiveram crises de confiança. As marcas ficariam bem, concluiu Wall Street, assim que acreditassem fervorosamente nos prin- cípios do branding e nunca, jamais piscassem. Da noite para o dia, “Marcas, não produtos!” tornou-se o grito de guerra de um renascimento de marketing liderado por uma nova estirpe de empresas que se viam como “agentes de significação” em vez de fabricantes de produtos (KLEIN, 2009, p. 45).

Khauaja e Prado (2008, p. 22) citam que a década de 1990 também foi trágica para muitas empresas brasileiras, que não conseguiram competir com produtos estrangei- ros que se instalaram e tomaram conta do mercado nacional após a abertura da eco- nomia; no entanto, aquelas empresas nacionais que se adaptaram à nova situação competitiva puderam aproveitar as vantagens dos anos prósperos pós-Plano Real.

De modo geral, Semprini (2010, p. 32) avalia que as marcas chegaram ao final da década de 1990 em uma situação paradoxal, pois por um lado nunca foram tão po- derosas e presentes e, por outro lado, tal poder atravessa múltiplas linhas de fratura, que podem muito bem se manifestar caso a conjuntura econômica se inverta. Semprini (2010, p. 33) assinala, então, que a quarta fase da história contemporânea de marcas começou justamente na virada dos séculos XX e XXI, com o estouro da bolsa, a reces- são econômica decorrente, os atentados em Manhattan (2001) e a guerra no Iraque: instalou-se, com esses eventos, a dúvida e a desconfiança em relação às marcas:

Os escândalos sucessivos que abalam o mundo das empresas (incompe- tência, má gestão,corrupção, megalomania, falência fraudulenta, etc.) ilumi- nam como uma luz menos lisonjeira o mundo glamouroso e conquistador dos conselhos de administração e dos centros de decisão econômica. Em alguns anos, o consenso em torno do modelo do capitalismo liberal se dissi- pa. Começa-se a falar, mesmo em certos meios institucionais da economia e das finanças, da necessidade de introduzir contrapesos, freios, sistemas de controle. A mão invisível do mercado não pode ser deixada totalmente livre em suas ações, pois ela teria uma deplorável tendência a encher os bolsos (SEMPRINI, 2010, p. 33).

Para Semprini (2010, p. 33-34), a primeira edição do livro Sem Logo,1 de Naomi

Klein, chegou às livrarias no momento em que a inversão de tendências passou a dei- xar à mostra as linhas de fratura da ideologia construída ao redor das marcas. Para esse autor, a maior contribuição da obra de Klein (2009) é que ela ampliou o debate público sobre marcas, que antes era considerado um assunto técnico sem status defi- nido, abordado apenas em livros, revistas de marketing ou comunicação. Para os eco- nomistas, as marcas nem eram tão interessantes e menos ainda para os sociólogos, que as consideravam um tema muito mais associado ao mundo da economia.

O que esses relatos históricos demonstram é que as marcas, sobretudo a partir da década de 1950 (após a Segunda Guerra Mundial), passaram por períodos de crescimento, que foram intercalados por períodos de recessão e desconfiança, isto é, de fases de expansão e de retração. Como se pode verificar, a história das marcas e sua evolução está diretamente associada a ciclos econômicos e também a condições gerais de um contexto social e político mais amplo. Diz Semprini:

...pudemos constatar o quanto é importante, quando se analisa o lugar das marcas no espaço social, distinguir entre poder material das marcas e poder simbólico, entre poder econômico e poder de sedução, entre legitimidade comercial e legitimidade cultural (SEMPRINI, 2010, p. 35).

Klein (2009, p. 45) sugere que embora as empresas devam vender seus produtos, estes devem se colocar em posição secundária perante suas marcas. Como enfatiza a respectiva autora, “o branding, em suas encarnações mais autênticas e avançadas, trata da transcendência corporativa." Tal pensamento perdura até hoje e pode ser usado como fio condutor para uma avaliação mais aprofundada do significado das marcas na década atual, sendo este o assunto debatido nos tópicos a seguir.

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