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Reanálise da hierarquia de Maslow

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Capítulo 2 – O consumo na contemporaneidade

2.1 Consumo para suprir necessidades

2.1.2 Reanálise da hierarquia de Maslow

Os estudos de Murray (1938) e de Maslow (1943) foram realizadas em meados do século XX. De lá para cá, diversos outros pesquisadores sugeriram novos tipos de classificações quanto às necessidades humanas. Para citar alguns exemplos, Sheth, Mittal e Newman (2001, p. 332-333) propõem que as necessidades podem ser estru- turadas a partir de cinco divisões específicas, que não necessariamente se estabele- cem por uma ordem progressiva: são elas funcional, social, emocional, epistêmica e situacional. Para Schiffman e Kanuk (2012, p. 74), a hierarquia de Maslow deveria ser atualizada a fim de incorporar três categorias básicas: necessidades de poder (contro- lar o ambiente, incluindo pessoas e objetos), de afiliação (amizade, pertencimento e sociabilização) e de realização (autorrealização). Já Blackwell, Miniard e Engel (2009, p. 242) exprimem que, embora as classificações variem de estudo para estudo, as necessidades poderiam muito bem ser catalogadas em duas categorias amplas: ne- cessidades utilitário-funcionais e necessidades hedônico-experienciais.

Há, portanto, diversas outras proposições quanto à divisão das necessidades hu- manas, incluindo outras não mencionados nesses parágrafos. Contudo, Sheth, Mittal e Newman (2001, p. 338) observam que todos esses esquemas são “simplesmente diferentes modos de dividir o mesmo bolo." Ou seja, eles diferem em seus detalhes, podem realizar cruzamentos de categorias, relacionar-se uns com os outros, mas, fundamentalmente, tratam de estudar as necessidades humanas e sociais e as moti- vações que permeiam o consumidor em agir de acordo com suas carências.

Sem deixar de reconhecer a importância desses diferentes métodos de classifi- cação de necessidades, vale a pena manter o foco na teoria de Maslow (1943), pois

sua significativa diferença encontra-se na suposição de que o consumo segue uma escala progressiva de prioridades. Isso fica evidente quando Maslow (1943, p. 374) alega, por exemplo, que para o homem faminto nada mais interessa senão comida; ele sonha com comida, só pensa em comida, só quer comida. O que se supõe dessa afirmação é que o estado de fome acaba por dispensar a busca por outras necessida- des e que, somente após tê-la saciado, o indivíduo pode se motivar a adquirir armas de fogo ou outros dispositivos de proteção pessoal, além de roupas melhores e um abrigo mais seguro, equivalentes ao segundo nível da hierarquia (BLACKWELL; MI- NIARD; ENGEL, 2009, p. 242). De maneira progressiva, após suprir esses dois níveis, o consumo poderia seguir os próximos níveis, que correspondem às necessidades psicogênicas e incluem os anseios por status, reconhecimento e autorrealização.

Ou seja, a teoria de Maslow (1943) considera que as pessoas se sentem motivadas a adquirir certos produtos, tendo como base o nível hierárquico em que elas se encon- tram na pirâmide. Sendo assim, teoricamente ninguém se interessaria por status ou autorrealização caso não tivesse saciado plenamente a fome ou já estivesse protegido. Esse raciocínio, entretanto, não se justifica. De fato, embora os cinco níveis da hierarquia proposta por Maslow (1943) sejam suficientes para circundar a maioria das necessidades humanas, Schiffman e Kanuk (2012, p. 74) reiteram que essa teoria

carece de testes empíricos capazes de mensurar quão satisfeito um nível de neces- sidade deve estar para que a próxima necessidade se torne operacional. Além disso, pensar que os seres humanos priorizam e sanam suas necessidades em uma escala linear equivale a supor que eles pouco se importam com seus relacionamentos em sociedade (status ou autorrealizações, etc.) caso suas necessidades fisiológicas ou de segurança ainda não estejam saciadas. Campbell (2001, p. 70) então indaga: “se a diversidade das necessidades humanas é de origem hereditária, como é que os indivíduos mudam seu padrão de manifestar necessidades ao longo de uma vida?”.

Ora, assim como diferentes espécies no reino animal possuem peculiares necessi- dades à sua sobrevivência, também as pessoas manifestam diferentes necessidades com o passar do tempo ou de acordo com o ambiente social e profissional em que vivem. Por exemplo, na velhice, o número de remédios para manter o organismo sau- dável pode ser muito maior do que na infância; já a necessidade de locomoção pode ser maior para um caminhoneiro que trabalha com transportes do que para alguém que apenas viaja a passeio. Na prática, esses exemplos simples demonstram que:

Todas essas necessidades [fisiológicas ou psicológicas] estão presentes na vida de todo e qualquer ser humano, manifestando-se ou revelando-se, ob- viamente, em proporções e formas diferentes. Algumas necessidades podem estar em maior evidência do que outras, dependendo das condições de vida no momento (YANAZE, 2011, p. 45).

Zohar e Marshall (2006, p. 32-36) lembram que Maslow formulou sua hierarquia de necessidades há muitas décadas e que, desde então, houve um constante progresso em estudos psicológicos, antropológicos e neurocientíficos para entender melhor a na- tureza humana e sua influência nas sociedades e culturas. Com o passar do tempo, novos estudos demonstraram que os humanos são seres que primariamente buscam significado e valor em suas vidas; ou seja, um propósito, uma sensação de que o que estão fazendo vale a pena. Por isso, Zohar e Marshall (2006, p. 33) sugerem que a hie- rarquia original de Maslow (1943) deveria ser invertida em seus níveis, já que nem sem- pre as pessoas colocam as necessidades primárias como alta prioridade; pelo contrário, muitos consideram autorrealização (último nível) à frente das necessidades fisiológicas (primeiro nível). Na verdade, Zohar e Marshall insistem em que o próprio Maslow, no final da vida, lamentou a ordem como classificou as necessidades humanas:

Conta-se que, no final de sua vida, Abraham Maslow começou a sentir que sua pirâmide de necessidades deveria ser invertida. A profunda crise no sig- nificado – falta de crença em qualquer coisa, baixos padrões de moralidade, egoísmo implacável e consequente diminuição da autoestima, a ausência de propósito e valor, o tédio – que caracterizou a vida no mundo ocidental de- senvolvido no século XX, é prova de que as prioridades do capitalismo estão invertidas. [...]. Se perdermos o contato ou prejudicarmos gravemente o que constitui o núcleo da humanidade – nossas mais altas aspirações, valores e potencialidades – realmente nos tornaremos nada mais nada menos do que um macaco pelado (ZOHAR; MARSHALL, 2006, p. 36).

Além de as pessoas não seguirem exatamente uma ordem de prioridade com re- lação à saciação de necessidades, outro fato pertinente é que a satisfação nunca é eterna. Pelo contrário, tanto Campbell (2001, p. 58) quanto McCracken (2003, p. 133) asseguram que o aspecto mais característico do consumo nas sociedade contempo- râneas é justamente a insaciabilidade. Nesse caso, nem mesmo os ricos ou milioná- rios, que possuem uma enorme capacidade de adquirir bens, ficam isentos.

Não significa, é claro, que a insaciabilidade seja um aspecto apenas das socieda- des contemporâneas. Como prossegue Campbell (2001, p. 58-59), os seres humanos, em todas as culturas, tiveram desejos insaciáveis, como os conquistadores espanhóis e sua ganância por ouro, ou Don Juan, que era difícil de saciar quando se tratava de mulheres. Contudo, essas insaciabilidades consistiam na busca por um único produto, diferentemente do consumidor pós-moderno, em que logo um desejo é satisfeito, ou- tro já se encontra preparado para reclamar a satisfação e assim sucessivamente, em um ciclo ininterrupto. Raramente alguém hoje pode dizer que não deseja nada.

Se for considerado que as necessidades são insaciáveis e tendem a se tornar no- vamente as carências de amanhã em um ciclo que não se fecha, as pessoas inevita-

velmente devem fazer uma escolha de como usar o capital que possuem, decidindo quais necessidades suprir ou renovar e quais suportar ou postergar (ou até, se prefe- rirem, poupar o dinheiro para usar no futuro). Como acrescentam Blackwell, Miniard e Engel (2009, p. 255), a escolha por preencher uma necessidade frequentemente consiste em abrir mão de outras; o gasto de dinheiro satisfazendo uma necessidade deixa as demais de lado, bem como o tempo alocado a uma necessidade significa menos tempo disponível para outras. Schiffman e Kanuk complementam:

Alguns dos motivos pelos quais a atividade humana impulsionada por necessi- dades nunca cessa incluem: (1) muitas necessidades nunca são inteiramente atendidas; elas continuamente estimulam ações destinadas a alcançar ou man- ter a satisfação; (2) à medida que as necessidades são atendidas, emergem novas necessidades de ordem mais elevada que causam tensão e induzem à atividade; (3) as pessoas que alcançam seus objetivos estabelecem objetivos novos e mais elevados para si mesmas (SCHIFFMAN; KANUK, 2012, p. 67).

Portanto, não seria possível suprir todas as necessidades, muito menos todas ao mesmo tempo. Logo, Martins (2007, p. 24) avalia que ao considerar recursos sempre

limitados, os seres humanos escolhem ou preferem aquilo que lhes parece trazer maior satisfação e realização a longo prazo. E essas escolhas, tecnicamente, não ten- dem a seguir uma ordem lógica, mas ao contrário: como enfatizam Kotler, Kartajaya e Setiawan (2010, p. 101), a sofisticação das sociedades e das ofertas permite que os consumidores possam satisfazer suas necessidades mais elevadas, enquanto as necessidades básicas podem permanecer latentes e em segundo plano. Mais especi- ficamente, as pessoas acabam selecionando bens e se apropriando deles a partir da- quilo que consideram mais valioso em vez de mais urgente (CANCLINI, 2015, p. 35). Alguém, portanto, pode preferir economizar na alimentação para adquirir um novo celular ou pode deixar de investir em moradia e segurança para comprar um novo veí- culo de passeio. Kotler, Kartajaya e Setiawan (2010, p. 20-21) exemplificam que vários artistas e cientistas, por vezes, abrem mão do próprio conforto em busca de autorrea- lização. Para Solomon (2002, p. 100), uma pessoa religiosa, que fez voto de celibato, não concordaria com que necessidades fisiológicas, tais como sexo, deveriam ser prio- rizadas antes da autorrealização, assim como muitas culturas asiáticas consideram o bem-estar do grupo (pertencimento) mais valioso do que as necessidades individuais (de estima). Já Blackwell, Miniard e Engel (2009, p. 256) escrevem que o amor de uma mãe pode levá-la a ser indiferente com sua própria segurança caso a vida do seu filho esteja em risco, enquanto diversos indivíduos investem pesado na carreiras para su- prir a necessidade de realização às custas de relacionamentos amorosos. Para se ter ideia, a Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (BRASILEIROS..., 2015) estima que as famílias brasileiras gastam anualmente mais

com serviços de cabeleireiros, manicure e pedicure do que com alimentos básicos, como aves e ovos, sendo que os gastos com cabeleireiros são 18% superiores às des- pesas com cursos regulares de educação, da pré-escola ao ensino médio.

Muitos outros exemplos poderiam ser citados, mas esses são suficientes para de- monstrar que o julgamento de quais necessidades são prioritárias e quais são menos urgentes mudam de indivíduo para indivíduo ou até de cultura para cultura. Logo, as necessidades não se condicionam a uma ordem linear de saciação, tal qual um gráfi- co de pirâmide sugere, seja ele ordenado em base convencional ou invertida. Kotler, Kartajaya e Setiawan (2010, p. 158), aliás, insistem que seria mais prudente transfor- mar a pirâmide em uma representação de polígono, em que o indivíduo permanece ao centro e pode escolher, de acordo com suas motivações, o que deseja saciar primeiro.

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