• Nenhum resultado encontrado

Experiência de trabalho: conceito, finalidades e qualidade

2.4. A qualidade das experiências de trabalho

2.4.1. A qualidade das experiências de trabalho em função do modo como são organizadas

Neste ponto do presente capítulo, a análise da qualidade das experiências de trabalho está organizada em torno das a) actividades de preparação e das b) actividades de acompanhamento e avaliação.

No que reporta às actividades de preparação, sabemos que são diversos os factores que podem influenciar a organização das experiências de trabalho, pelo que também deverão ser diversos os aspectos a considerar aquando do seu planeamento, desenho e implementação (Smith & Harris, 2000). A este propósito, um primeiro aspecto a ter em conta, e que frequentemente está fora do alcance da escola, prende-se com o número de estágios disponíveis (Griffiths & Guile, 2004; Ryan, 2002; Shilling,

1991)4. Com efeito, a maior ou menor colaboração das empresas de acolhimento pode afectar o número de vagas disponíveis e, dessa forma, influenciar os critérios de qualidade tidos em conta na selecção e celebração de protocolos relativos às experiências de trabalho. Além deste aspecto, a qualidade das experiências de trabalho parece depender ainda do método usado na sua angariação. Segundo Watts (1996) e Miller (1991b, 1991c) o primeiro passo, para assegurar a qualidade dos contextos de aprendizagem, consiste na definição prévia dos critérios subjacentes à escolha das empresas de acolhimento e na clarificação das finalidades que devem estruturar as experiências de trabalho. Contudo, no âmbito do processo de angariação, uma parte das experiências de trabalho pode estar a ser organizada com base nos conhecimentos pessoais de alguns professores, os quais acabam por contactar as instituições de acolhimento sem qualquer supervisão de uma estrutura de coordenação da escola. Esta forma de organização, que Shilling (1991) designa de “laissez-faire”, apresenta a vantagem de agilizar o processo de angariação, nomeadamente em comunidades mais pequenas, podendo, no entanto, ter a desvantagem de conduzir a uma duplicação de esforços, transmitindo para o exterior da escola uma imagem de algum amadorismo no que se refere ao modo como se organiza este tipo de actividade5. Neste sentido, e apesar de não termos encontrado na literatura referências específicas a modelos-tipo para o planeamento e organização de experiências de trabalho, um processo claro na abordagem das organizações de acolhimento, com recurso a reuniões entre as partes e suportado por materiais que clarifiquem o papel dos agentes envolvidas, parece ser a sugestão mais frequentemente referida.

4 Patrick Ainley (1990), reportando-se à experiência britânica na década de 80, lembra as dificuldades que algumas escolas sentiram para assegurar experiências de trabalho para todos os alunos e de que forma esta escassez conduziu a comportamentos de competição entre as escolas. Ainda segundo este autor,

Este aspecto conduz-nos aos resultados de alguns projectos-piloto, desenvolvidos na alçada da Comissão Europeia, que evidenciam a importância de quatro factores específicos na eficácia das experiências de trabalho (IFAPLAN, 1987), sendo que o primeiro deles é a definição clara dos objectivos. Efectivamente, a definição de objectivos pode promover uma boa organização das actividades, favorecer a criação de um sistema de controlo específico e facilitar a avaliação dos resultados. Por esta razão, o primeiro passo consiste em garantir a convergência dos diferentes agentes em torno das finalidades e do modo como são organizadas as experiências de trabalho (Miller, 1991c), pois como sabemos, a falta de acordo neste domínio é um dos principais obstáculos à qualidade das aprendizagens proporcionadas (Barnett & Ryan, 2005; Misko, 1998; Smith, Green & Brennan, 2002; Taylor, 2006). É neste sentido que Stasz (1999) nos lembra que a qualidade do processo de formação pode aumentar significativamente quando existe um claro alinhamento entre os interesses dos estudantes e as actividades propostas no decurso da experiência de trabalho. De igual modo, a recolha de informação relativa às características das instituições de acolhimento constitui um procedimento essencial no desejável ajustamento entre os interesses do estudante e aquilo que determinado contexto de formação tem para oferecer. De facto, como lembra Miller (1991c), não há dúvida que os locais de estágio podem variar imenso no que se refere às oportunidades de aprendizagem que proporcionam. Do lado das empresas e instituições de acolhimento, outra das partes envolvidas, a planificação das actividades a oferecer e das estratégias de formação a adoptar deve assentar num conhecimento detalhado de cada um dos alunos, nomeadamente no que se refere aos seus interesses, expectativas e motivações (Miller, 1991b). A este propósito, é forçoso mencionar que muito frequentemente as instituições de acolhimento referem preferir os estágios relativamente a outras modalidades de experiência de trabalho menos

estruturadas, uma vez que neste caso sabem exactamente como actuar (ensinar) (Smith, 2004).

Podemos então afirmar que o acerto de expectativas e a definição clara dos objectivos, bem como das actividades que concorrem para a consecução dos mesmos, são um dos procedimentos chave no sucesso das experiências de trabalho. Ainda no âmbito da qualidade das actividades de preparação, deve ser considerado o esforço realizado por algumas empresas de acolhimento, no sentido de garantirem experiências de trabalho verdadeiramente formativas, afectando um profissional competente e disponível ao processo de orientação do estudante, pois, como se sabe, a qualidade da experiência de trabalho está fortemente associada à qualidade da supervisão oferecida (Stoltenberg, 2005), e esta, por sua vez, parece depender do nível de preparação ou de treino do supervisor (Guile & Griffiths, 2001). Além deste aspecto, é frequente as empresas de acolhimento referirem os custos financeiros e de tempo envolvidos no acolhimento de jovens em situação de estágio (Clark & Raymond, 1997; Smith & Harris, 2000).

No entanto, sabemos que o papel da escola não se esgota num conjunto de procedimentos mais ou menos burocráticos que garantam locais de acolhimento para todos os alunos. Na fase de preparação da experiência de trabalho, a escola deve assegurar-se de que os alunos compreenderam os princípios que orientam este tipo de actividade, que estão motivados para a mesma e de que são portadores das competências necessárias para aceder, lidar adequadamente e beneficiar deste tipo de experiência (Miller, 1991c; Watts, 1996). Na verdade, quando as actividades de preparação se resumem a alguns conselhos de natureza prática – o designado “briefing” (ex. horários, contactos, relatórios, assiduidade), o alcance das experiências de trabalho parece ficar altamente comprometido (Shilling, 1991). Nestes casos, a maior parte dos alunos fica

insuficientes, não beneficiando, porém, da intencionalidade da intervenção educativa da escola. Para contrariar esta situação, é importante que a inserção no contexto de trabalho seja antecedida por um conjunto alargado de actividades de preparação dos alunos, no âmbito da educação para a carreira e do desenvolvimento pessoal e social, sendo que estas actividades podem ser dinamizadas pelos mais diversos agentes educativos, desde o professor de um determinado domínio tecnológico até ao psicólogo conselheiro, passando também pelo próprio coordenador das experiências de trabalho (Miller, 1991c). Contudo, Guile e Griffiths (2001) vão mais longe, quando defendem que a preparação feita na escola deve ter como objectivo principal - tornar os alunos capazes de negociar a sua própria aprendizagem no contexto de trabalho6.

Em suma, os procedimentos que acabámos de apresentar incluem-se naquilo que o relatório do IFAPLAN (1987) designa de adaptação da organização aos objectivos. No essencial, esta consiste num conjunto de iniciativas de preparação da experiência de trabalho, levadas a cabo pela escola conjuntamente com as instituições de acolhimento, as quais procuram garantir que todos os intervenientes assumem de igual modo as finalidades e as actividades previstas.

Relativamente ao acompanhamento e à avaliação da experiência de trabalho, começamos por explicitar que para uma grande diversidade de autores, estas actividades são consideradas centrais em todo o processo de formação (e.g., Blackwell et al., 2001; Smith & Harris, 2000; Taylor, 2006; Watts, 1996), sobretudo porque as escolas têm

6 Em alternativa ao modelo tradicional das experiências de trabalho, que tinha como finalidade estabelecer a ponte entre a escola e o mundo do trabalho, e ao modelo da aprendizagem experiencial, estes autores propõem o “Connective Model”, o qual coloca a aprendizagem no centro das finalidades das experiências de trabalho, procurando ultrapassar as visões mais dualistas que separam os processos de aprendizagem em função do contexto em que estes têm lugar (escola versus mundo do trabalho). Neste sentido, no “Modelo Conectivo” a principal finalidade das experiências de trabalho é a reflexividade, ou seja, a capacidade do aprendiz para interrogar a própria aprendizagem quando procura resolver os problemas que lhe são colocados no contexto de trabalho (Griffiths & Guile, 2003; Griffiths & Guile, 2004; Guile & Griffiths, 2001).

pouco controlo sobre o que acontece no local de estágio (Smith & Harris, 2000) e são conhecidas as dificuldades das empresas no que se refere à estruturação e à avaliação das aprendizagens em contexto de trabalho (e.g., Barnett & Ryan, 2005; Ryan, 2002). Assim, no que se refere à monitorização dos padrões de qualidade das experiências de trabalho, esta pode ser efectivada através das visitas que os professores orientadores fazem às empresas de acolhimento (Miller, 1991c; Shilling, 1991) e da análise dos documentos que os alunos preenchem ao longo do período de formação no contexto real de trabalho (relatórios, diários7, cadernetas, portefólios, etc) (Miller, 1991c). Este acompanhamento, que pode concretizar-se em sessões individuais ou de grupo, promove a explicitação das dificuldades sentidas pelos alunos, a procura de soluções e a partilha de experiências. Neste âmbito, o trabalho de supervisão vem exigir do professor a assumpção de um novo papel e o desenvolvimento de novas competências profissionais (Dalton & Smith, 2004), principalmente porque agora se vê confrontado com a necessidade de partilhar a actividade educativa com agentes exteriores à escola e num contexto que não é a sala de aula. Além disso, cabe também ao professor supervisor a monitorização do próprio contexto de formação, procurando salvaguardar a qualidade das aprendizagens dos alunos (Miller, 1991c).

A este propósito,Smith e Harris (2000) salientam que, em virtude destas novas funções, é necessário assegurar a qualificação dos professores, garantindo que estes são capazes de negociar e de resolver adequadamente as questões associadas à organização, acompanhamento e avaliação das experiências de trabalho. De igual modo, do lado da organização de acolhimento, a adequada formação dos supervisores é, como referimos

7

anteriormente, um outro elemento determinante na qualidade das experiências de trabalho proporcionadas aos alunos.

É um facto que a intervenção dos diferentes agentes educativos não está concluída no dia em que terminam as experiências de trabalho nas instituições de acolhimento. Quando os alunos regressam à escola, torna-se necessário levar a cabo o balanço e a avaliação da experiência tida no contexto real de trabalho. Nesta fase, o designado “debriefing” constitui um momento vital8 no processo de integração da experiência de trabalho no currículo escolar dos alunos (Miller, 1991c), uma vez que este procedimento os insere num processo de reflexão partilhada, que tem como ponto de partida os sentimentos, as actividades, as memórias, em suma, as experiências vividas por cada um deles no contexto de trabalho. Se nos basearmos no modelo da aprendizagem experiencial de Kolb (1984), tal como sugerem Petherbridge (1996), Miller (1991c) e Watts (1996), o debriefing introduz os alunos num processo inicial de reflexão que, tendo como ponto de partida a experiência concreta do período de formação na instituição de acolhimento, ainda se organiza nas fases de análise e avaliação. A fase de reflexão implica a apresentação das actividades desenvolvidas na instituição de acolhimento, das observações feitas, dos pensamentos tidos e dos sentimentos experimentados. Em síntese, este período envolve a partilha da experiência com os colegas e com os professores supervisores, sendo a sua principal finalidade ajudar a clarificar a experiência individual a partir do confronto com os pontos de vista e experiências dos outros.

No que diz respeito à fase de análise, esta implica colocar a experiência individual num contexto mais alargado, destacando os principais aspectos ocorridos e

8 Watts (1996, p. 246) vai mais longe ao afirmar – “ em muitos aspectos, a reflexão é tão importante para um processo de aprendizagem bem sucedido quanto a actividade em si”.

relacionando-os com os objectivos da experiência de trabalho e, quando se aplica, com os projectos de vida e de carreira (Miller, 1991c). Nesta fase, os estudantes são encorajados a interpretar a sua experiência de forma sistemática e a contrastá-la com as experiências dos outros, retirando daí conclusões que possam ser úteis no modo como irão abordar as experiências de trabalho em ocasiões futuras (Watts, 1996). No âmbito do ciclo da aprendizagem experiencial de Kolb (1984), a análise corresponde então ao estádio da conceptualização, o qual envolve a organização de um conjunto de princípios gerais, ou de padrões, que poderão ser generalizados, ou projectados, às situações futuras.

A avaliação, por seu turno, deve ser concebida como um empreendimento estruturante de toda a actividade ou intervenção, uma vez que decorre ao longo de todo o processo e encerra um papel fundamental quando, em momentos particulares, como as visitas do professor orientador, se cruzam e integram informações respeitantes à experiência de trabalho em curso. A avaliação da qualidade dos sistemas de experiências de trabalho (4.º factor referido no relatório IAFPLAN, 1987) concretiza-se com recurso a diversas técnicas e instrumentos: observação das práticas, reuniões e debates entre alunos, professores e formadores da empresa, auto registos (diários de estágio, ou portefólios), relatórios parciais e finais, etc. Todos estes procedimentos avaliativos têm como finalidade evidenciar a discrepância entre a formação prevista e a sua operacionalização no contexto de trabalho. Neste sentido, para além do processo de atribuição de classificações e da tão necessária certificação (e.g., Ryan, 2002) (aspecto mais visível da avaliação), importa garantir que todos os intervenientes envolvidos nas experiências de trabalho conseguem participar no processo de avaliação e recolher/partilhar evidências que se revelem úteis na regulação das intervenções actuais e na planificação dos empreendimentos futuros. A este propósito, Smith (2004) refere

parte da escola, sobretudo porque algumas instituições escolares chamam para si a exclusividade do processo avaliativo, negando às empresas a possibilidade de também elas se envolverem e aprenderem com este tipo de experiência. Por último, na qualidade de dispositivo final do processo de avaliação, o follow-up deve ser concebido como o último estádio do ciclo de Kolb (1984) – a experimentação activa, no qual o aluno é estimulado a aplicar os conhecimentos adquiridos e as competências desenvolvidas em novas situações de trabalho (Miller, 1991c).

Em suma, importa sublinhar que o processo de organização e de acompanhamento das experiências de trabalho requer uma abordagem que não se esgota nas potencialidades que o contexto de trabalho poderá oferecer. É na escola que tudo começa, com a preparação da transição e com a planificação das aprendizagem que deverão ter lugar no contexto de trabalho. Para que tal aconteça, a escola precisa de desenvolver novas competências, sobretudo aquelas associadas à capacidade de negociar e partilhar, com outros agentes, a responsabilidade pela formação dos alunos. A escolha das empresas e instituições de acolhimento (critérios de qualidade e número de locais disponíveis), a formação dos professores e dos tutores/supervisores das empresas, o desenvolvimento de novas metodologias de planificação, de acompanhamento e de avaliação, são empreendimentos urgentes para aquelas escolas que procuram aumentar a qualidade das experiências de trabalho que organizam, no âmbito das suas ofertas de formação inicial de jovens. Em Portugal, a generalização dos estágios, nos cursos Tecnológicos, tem vindo a aumentar consideravelmente o número de alunos envolvidos nesta actividade, por comparação com o que acontecia no período em que os mesmos eram facultativos. Por esta razão, não será de estranhar que, em algumas regiões, venha a ser difícil assegurar estágios para todos os alunos candidatos, criando uma situação de escassez que urge ultrapassar. No entanto, depois de garantida a coordenação entre os agentes envolvidos, importa pensar em novas finalidades para as

experiências de trabalho. Neste sentido, mais do que aplicar na prática o que se aprendeu na teoria, tal como sucede na concepção mais linear da aprendizagem em contexto de trabalho, interessa, sobretudo, interrogar essa prática e reformular as relações normalmente estabelecidas entre os diversos tipos de conhecimentos. Por último, um comentário ao quarto factor, a avaliação da qualidade da experiência de trabalho. Esta deve consubstanciar-se numa partilha de pontos de vista e num sistema claro de regras e objectivos, que regule as interacções, desejáveis, entre os diferentes agentes envolvidos. A este respeito, após quatro estudos empíricos acerca das experiências de trabalho no ensino secundário, Blackwell e colaboradores (2001) concluíram que a qualidade depende de uma forte convergência em torno das finalidades das mesmas, da relevância que este tipo de actividade possa ter para os envolvidos (professores, alunos, empresas), da estruturação e organização impostas, das actividades de suporte proporcionadas e, ainda, da avaliação e reflexão levadas a cabo ao longo do processo.

Ainda a propósito da qualidade das experiências de trabalho, surge-nos então a seguinte questão: quais são as facetas ou dimensões normalmente utilizadas para avaliar a qualidade dos contextos de trabalho, nomeadamente no âmbito dos cursos de formação profissionalizante de jovens? Procuraremos responder a esta questão percorrendo alguns dos estudos empíricos que relacionam a qualidade da experiência de trabalho com o desenvolvimento dos jovens.

2.4.2. A qualidade das experiências de trabalho em função das actividades