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Regionalização, território, completude, felicidade e valorização do ser: consequências

2. Hibridização de saberes, experiências e fazeres: de monoculturas às ecologias e uma nova

2.3 Regionalização, território, completude, felicidade e valorização do ser: consequências

A noção de território evoca a concepção do pertencimento, pois, Leff (2009) argumenta que as pessoas se sentem pertencidas aos locais quando tem suas culturas e saberes respeitados, fazendo com que se sintam parte daquele todo.

Neste sentido, Panzeri (2015) argumenta que visões ambientais conservadores que colocam o ser humano alheio à natureza, ou que não enxerguem o local onde vive como meio ambiente, é fomentadora para uma sensação de não-pertencimento, que tem consequências sérias pelas pessoas não entenderem o local onde vivem como “bonitos”, ou não quererem melhorar tais locais.

Por que as pessoas plantariam árvores ou cuidariam do local onde vivem se sequer visualizam-se como parte daquele todo? Eis que os valores de uma sociedade hegemônica, excludente e violenta cognitivamente acabam por colocar as pessoas a margem, por fugirem do padrão de sociedade. Um local seria “feio” porque o desenvolvimento não chegou até ali, e a solução é também externa ao indivíduo, pois bastaria desenvolver-se materialmente.

Trazendo um exemplo prático da noção de pertencimento, foi realizada uma pesquisa conduzida por Compiani e colaboradores (2013), denominada “Ribeirão Anhumas na Escola”. O projeto tinha por objetivo, dentre outras coisas, a inserção da dimensão local e na construção de currículos interdisciplinares na Educação Escolar. O tema ambiental, sendo naturalmente interdisciplinar, foi o escolhido no projeto.

A pesquisa realizada foi uma pesquisa colaborativa entre os pesquisadores e professores da escola onde o projeto se seguiu. Panzeri (2015), neste livro discorreu sobre a

temática ambiental que permeou o projeto, e um dos subtítulos do seu capítulo é justamente a questão do pertencimento. Para ela, a professora e os alunos possuíam inicialmente uma visão de que o ser humano fosse externo ao ambiente, e aponta como consequências que os alunos viam seus locais de vivência como “feios”, e que o ambiente seria um local belo e idealizado. Em outras palavras, não se viam como parte do tal ambiente. Tal problema gerou incômodo na professora, que partiu a refletir o porquê disto, chegando à conclusão que seria porque não se sentiam pertencidos ao local onde moravam.

As discussões subsequentes em sala de aula visaram “o sentido de pertencimento em oposição ao distanciamento e à alienação” (PANZERI, 2015, p. 112). A autora conclui que pertencimento seria a dimensão do ser humano como ser histórico e social em profunda relação com o meio, no qual a participação ativa no meio é central para que os alunos se sentissem pertencentes.

A ideia de que necessita de atividade para sentir-se integrante é muito importante, pois, nos diz que apenas quando as pessoas se sentem com voz ativa, com saberes e fazeres integrados, aliados a um território, é que se verão pertencidas.

A partir disto, a professora trabalhou em sala de aula o tema do local e do pertencimento, onde pareceu ter atingido o objetivo de inserir a noção de integração, pois os alunos enxergaram-se como partes integrantes das suas comunidades, de acordo com as narrativas produzidas (PANZERI, 2015).

“Deste modo, a preservação das identidades étnicas, dos valores culturais e das práticas tradicionais de uso dos recursos aparece como condição de uma gestão ambiental e do manejo sustentável dos recursos naturais em escala local” (LEFF, 2009a, p. 127).

Prosseguindo ainda mais na conceituação sobre pertencimento e reencontro com identidades, Leff (2009b, p. 19) diz que

A compreensão do ser no saber, a concentração das identidades nas culturas, incorpora um principio ético que se traduz em diretriz pedagógica; para além da racionalidade dialógica, da dialética entre fala e escuta, da disposição para compreender e colocar-se no lugar do outro, a política da diferença, a ética da outredade e a hibridização de identidades levam a interiorizar o outro em um, no jogo de mismidades que introjetam outredades sem renunciar ao seu ser individual e coletivo. As identidades híbridas que assim se constituem não são a expressão de uma essência, tampouco na entropia do intercâmbio subjetivo e comunicativo. Elas emergem da afirmação de seus sentidos diferencia- dos frente a um mundo homogeneizado e globalizado.

Para Leff (2009b, p. 19), “[…] Faz assim solidário de uma política do ser, da diversidade e da diferença. Tal política se funda no direito de ser diferente, no direito por

autonomia, em sua defesa frente à ordem econômico-ecológica globalizada, sua unidade dominadora e sua igualdade inequitativa”. Em outras, palavras, é o clamor político pela diversidade, e valorização de algo mais que a visão mercantil, globalizada, unificadora.

Prosseguindo ainda mais,

Consiste em um saber que faz parte do ser, na articulação do real complexo e do pensamento complexo, no entrecruzamento dos tempos e na reconstituição das identidades. O saber ambiental se inscreve no terreno do poder que atravessa todo saber, do ser que sustenta todo saber e do saber que configura toda identidade. O saber ambiental constrói estratégias de reapropriação do mundo e da natureza (LEFF, 2009b, p. 21).

Segundo o autor, "o ser, diverso por sua cultura, ressignifica seu saber para dar- lhe seu selo pessoal, para inscrever seu estilo cultural e reconfigurar identidades coletivas” (LEFF, 2009b, p. 23).

Na ocasião da intensificação da globalização, identidades, saberes, fazeres, culturas e tradições foram erodidos a partir da imposição de uma cultura hegemônica (LEFF, 2015). Demanda, então, além da emancipação dos saberes, ditos em uma ecologia de saberes, reforçar as identidades e valorização local. Assim como Leff (2015, p. 286), pensamos que “habitar o habitat é localizar no território um processo de reconstrução da natureza, a partir de identidades culturais diferenciadas”. Habitar está muito além de apenas ocupar o espaço, é sentir integrante do espaço, pertencer, portanto; realizar atividades culturais a partir da apropriação do espaço (LEFF, 2015). Em outras palavras, o habitar humano está muito além do habitar biológico de qualquer outro ser: é modificar o espaço pelo [exercício cultural] (LEFF, 2015).

A racionalidade ambiental perpassa por identificar a deterioração das questões relacionadas a habitat, conexão com a natureza e pertencimento. Isso porque, por entendermos que tais noções incorrem aspectos culturais atrelados a um sentimento de integração urge que se há deterioração de aspectos culturais, de saberes e fazeres erodidos, logo haverá por consequência uma deterioração da identidade e das noções de pertencimento (LEFF, 2015). Isso se traduz em incompletude do ser, resultando em infelicidade e desconexão com questões de ordem ambiental.

O advento da globalização mudou os padrões de sociedade, provocando o êxodo rural, transferindo nossas habitações para as cidades, sendo que se pensou que morar na cidade é civilizador (LEFF, 2015). O impacto dessa ação cultural é que houve um

distanciamento do ser humano com suas identidades e com a natureza. Logo, os padrões de consumo em meio rural, antes autossuficientes, se alteraram significativamente, chegando a consumos absolutamente insustentáveis (LEFF, 2015).

Não se trata de uma questão romântica com o campo, mas de reforçar a necessidade de outros olhares, outra racionalidade, que através dela modifique nossos padrões de conduta nas cidades. Nossos colaboradores, por exemplo, são pessoas que vivem no ambiente urbano, e seja qual forem as suas motivações, desempenharam práticas de modificação dos espaços.

Queremos, portanto entender estes processos, reexaminando além de seus saberes e fazeres, também a questão do local. “Isso significa pensar o habitat como projeto transformador do meio, como um processo de apropriação social das condições de habitabilidade do planeta, regido pelos princípios de racionalidade ambiental, sustentabilidade ecológica, diversidade cultural e equidade social” (LEFF, 2015, p. 295).

Na sua obra, Leff (2015) chama bastante atenção para a modificação cultural dos espaços por sociedades tradicionais e camponesas, que o geografam seus espaços, modificando-os a partir de seus saberes e fazeres. Assim, a identidade dos povos vai se ressignificando a partir da necessidade e do passar do tempo.

Percebemos, entretanto, que as pessoas mais jovens não possuem sentimentos ligados às sociedades tradicionais e camponesas, mas também alimentam utopias, sentimentos de conexão com a natureza, reexaminam tradições e saberes, reafirmando assim identidades e culturas, hibridizando saberes. Por exemplo, há jovens que perceberam que os padrões de consumo e de vivência da sociedade atual são incompatíveis com sustentabilidade. Então parecem dialogar com tradições, saberes e fazeres, a exemplo dos camponeses, que eram mais sustentáveis, além de um sentimento utópico de quererem melhorar os seus espaços, ressignificando assim a identidade dos povos.

A questão de pertencimento é, portanto, essencial, pois

Talvez seja a angústia, frente ao esvaziamento dos sentidos existenciais, e essa sede de vida a qual expressam tanto as lutas das etnias pela reafirmação de suas identidades, como o drama desse ser solitário, cujo grito provém da angústia frente uma metafísica, um logos, uma gramática e uma epistemologia; de um verbo e um tempo que nos pensa, nos impõe sua verdade e nos sujeita (LEFF, 2010, p. 332).

Assim, a complexidade nos leva a um novo pensar sobre a identidade. Identidade para a visão da complexidade implica em “pensar um mundo conformado por uma diversidade de identidades que constituem formas diferenciadas do ser individual e do ser coletivo dos povos” (LEFF, 2015, p. 434). A pluralidade de identidades recusa um saber hegemônico, e ou, a mera apropriação dos saberes pela lógica mercantil (LEFF, 2015).

As diferentes identidades se mostram culturalmente plurais, “abrindo novos espaços de encontro de sujeitos com diferentes discursos de sustentabilidade, donde emergem novos atores sociais na trama do processo de complexificação […] produtiva do ambiente” (LEFF, 2015, p. 435).

Assim sendo,

No pensamento da complexidade deveríamos pensar no ser além de sua condição existencial geral (o constitutivo de todo ser humano) para penetrar no sentido das identidades coletivas que se constituem a partir da diversidade cultural, mobilizando os atores sociais para a construção de estratégias alternativas de reapropriação da natureza, frente aos sentidos antagônicos da sustentabilidade (LEFF, 2015, p. 435).

Em resumo, as identidades, culturas, saberes e fazeres, as lentes de mundo mobilizam os atores para agirem e se reapropriarem da natureza, sendo que veem que a situação atual é insustentável. Logo, nos interessa pensar quais suas identidades, para que se contribua nessa sistematização e na inspiração de outros atores.

Logo à frente, conceituaremos monoculturas e ecologias, de acordo com Santos (2002), como veremos em breve, a regionalização e a valorização do território e das experiências locais é um antídoto à monocultura da escala dominante. A racionalidade ambiental com a qual pretendemos contribuir, almeja, entre outras coisas, uma ecologia de trans-escalas, cujas experiências locais tenham um espaço de diálogo.

Vindo em direção a esta ideia, Leff (2009a, b, 2010a, b, 2011, 2015) propõe um olhar para o ser em detrimento ao ter. A natureza, externa ao ser humano, seria apenas meio de extração para desenvolver e trazer desenvolvimento. Ao contrário disto, propõe a hibridização radical de saberes hegemônicos a saberes, culturas erodidas e locais para inserir o ser humano como ser integrante do todo. Uma vez se vendo integrante do todo, pode-se almejar a melhoria dos locais onde se vivem, bem como o embelezamento dos mesmos. Assim, a noção de pertencimento nos parece central para o entendimento das questões que propusemos a estudar.

Para pensar um modelo além do materialismo, há um importante parâmetro denominado de FIB11 – Felicidade Interna Bruta. O índice foi desenvolvido em Butão, em parceria com as nações unidas. Para este parâmetro, que tem por objetivo aferir a qualidade de vida e a felicidade da população dos países, há nove quesitos a serem levados em conta: bem estar psicológico, uso do tempo, saúde, vitalidade comunitária, educação, cultura, meio ambiente, governança e padrão de vida.

Além daqueles que são óbvios, como acesso pleno à educação, saúde, cultura, ao bem estar psicológico e governança – no sentido que governos honestos, transparentes e a participação ativa e democrática dos cidadãos atenta diretamente para o bem estar da população, padrão de vida elevado – sendo realização material.

Chama atenção àquilo que é denominado por vitalidade comunitária e também o fator tempo. Vitalidade comunitária é referida ao sentimento de pertencimento, confiança, segurança e os relacionamentos afetivos para quais as pessoas possuem dentro das comunidades.

A questão do uso do tempo também é central para nós, sendo que o índice incide sobre como as pessoas gerem o tempo, tendo lazer, socialização, dispõe dele para qualidade de vida, etc. Avançaremos na discussão sobre temporalidade na ocasião da respectiva ecologia/monocultura. Como se percebe, a realização e felicidade estão muito além da conquista de bens materiais.

Isto não é de difícil constatação, uma vez que países bem consolidados no cenário político-econômico internacional como a Suíça e Estados Unidos da América apresentam enormes taxas de suicídio, segundo a Organização Mundial da Saúde 12, ilustrando que a felicidade está muito além de realização material.

Em contrapartida, acreditamos que a felicidade seja um sentimento atrelado, em diversos fatores, tais como a ligação e pertencimento com a cultura, com os saberes, fazeres, qualidade de vida, e também satisfação material, mas não apenas isso, como nos faz acreditar a sociedade capitalista.

Há claramente a necessidade de diminuir o ritmo de produção e extração de recursos, além de uma mudança de óptica, para uma visão que descentralize a noção de felicidade do ter para o ser, da acumulação de bens para a acumulação de momentos dignos de

11

Disponível em: http://www.felicidadeinternabruta.org.br/sobre.html. Acesso em 21. Out. 2018.

12 MELEIRO, A.M.A.S. O comportamento suicida: os números revelam o mundo e o Brasil. Disponível em:

eternidade, de saborear a vida com sustentabilidade, o que implica necessariamente se sentir útil na sociedade, enxergar seus saberes e práticas como válidos, enfim, ter um território que permita uma vida digna.

2.4 Das monoculturas às ecologias: Pensando novos caminhos para uma racionalidade