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Revisitando a questão social e as contradições do trabalho

No documento ANA LÚCIA DE OLIVEIRA MONTEIRO (páginas 88-92)

Capítulo 3. ANTECEDENTES HISTÓRICOS E POLÍTICOS DO TRABALHO DECENTE

3.1. Revisitando a questão social e as contradições do trabalho

Ao longo da história, o impulso ao progresso dado pelo trabalho, exercido de diversas formas desde o aparecimento da humanidade, tem seguido uma regularidade cíclica de avanços e retrocessos que passam, primordialmente, pelo atendimento (ou não) das necessidades explicitadas pelos agentes responsáveis pela força produtiva. Se, em algumas épocas, as lutas eram por terra e liberdade, em outras por abrigo e alimentação e, mais tarde, por melhores condições de vida e trabalho, nas épocas mais contemporâneas essas reivindicações tem o forte apelo da observância dos direitos humanos, do exercício da cidadania e do cumprimento das normas locais e internacionais.

Para Castel (1998), a questão social surge quando há o distanciamento existente entre o crescimento econômico e a melhoria da condição social das classes responsáveis por esse crescimento. Sua análise parte da identificação no longo prazo de uma correlação profunda entre o lugar ocupado pelo indivíduo na divisão social do trabalho e a participação nas redes de sociabilidade e nos sistemas de proteção.

Para esse autor, a questão social refere-se ao lugar que os contingentes mais desfavorecidos podem ocupar na sociedade industrial, afirmando “a questão social se põe explicitamente às margens da sociedade, mas ‘questiona’ o conjunto da sociedade” (Castel, 1998, p. 34). Neste sentido, a resposta à questão “será o conjunto dos dispositivos montados para promover sua integração” (CASTEL, 1998, p. 31). Desse modo, a questão social está entre a organização política e o sistema econômico, evidenciando a necessidade de construir sistemas de regulação não-mercantil com o objetivo de tentar mediar esse

espaço. Para Castel (1998), é neste momento que se materializa o papel que o Estado é chamado a desempenhar. Para ele, o Estado social refere-se à intervenção do Estado na interseção do mercado e do trabalho.

A partir da segunda metade do século XX, a articulação entre o econômico e social estava estabilizada, já que o modo de gestão política associou as sociedades privada e social, o desenvolvimento econômico e a conquista dos direitos sociais, o mercado e o Estado. Estava instalado o que Castel (1998) denominou de Estado social, cuja intervenção se dava na garantia da proteção social generalizada, na manutenção do equilíbrio macroeconômico e na busca de um compromisso entre os diferentes implicados no processo de crescimento. Este modelo reflete uma regulação circular onde o Estado controla a economia.

No início dos anos 1970, a instalação de nova crise, que afetou sobremaneira o emprego, trazendo o desemprego em massa e a precarização dos contratos de trabalho, visibilizou um enorme contingente sem força de pressão, ou potencial de luta, invisível socialmente, por não estarem contribuindo de uma forma socialmente útil. “No sentido, é claro, de que existir socialmente equivaleria a ter, efetivamente, um lugar na sociedade... ao mesmo tempo, eles estão bem presentes – e isso é o problema, pois são numerosos demais” (CASTEL, 1998, p. 33).

É neste ponto que Castel (1998) foca a metamorfose relativa à questão social. Se, antes, o problema era como transformar o ator social submisso e dependente e fazê-lo tornar-se um sujeito social, a partir daí a controvérsia refere-se a como amenizar esta presença, escondê-la ou suprimí-la. Na visão de Castel, essa é uma nova problemática, outro prisma da questão social.

Iamamoto (2001) coloca que o processo de reprodução das relações sociais não é apenas a reprodução da força de trabalho e dos meios de produção, mas também se refere à reprodução das forças produtivas sociais do trabalho e das relações de produção na sua globalidade, envolvendo sujeitos e suas lutas sociais, as relações de poder e os antagonismos de classes. Na visão da autora, esse processo também envolve outras amplitudes, como as jurídicas, religiosas, artísticas, filosóficas e científicas, por meio das quais os homens se apropriam das mudanças ocorridas nas condições de produção de vida material, pensam e se posicionam na sociedade.

Explicitam-se aí algumas contradições, pois, se por um lado, a igualdade jurídica dos cidadãos livres é inseparável da desigualdade econômica derivada do caráter cada vez

mais social da produção, por outro lado, ao crescimento do capital corresponde a crescente pauperização relativa do trabalhador.

Segundo Iamamoto (2001), essa é a lei geral da produção capitalista, responsável pela questão social na sociedade. Assim, no processo de reprodução das relações sociais há, também, o surgimento de novas necessidades, de novas relações entre as forças produtivas sociais do trabalho em cujo processo aprofundam-se desigualdades e são criadas novas relações sociais entre os homens na luta pelo poder e pela hegemonia entre as diferentes classes e grupos na sociedade.

Neste ciclo que se repete, o surgimento das lutas e movimentos sociais, usualmente vistos como disfunções da ordem social vigente, têm o seu papel como fomentadores da conquista de direitos ou bens essenciais, resgate das injustiças sociais e restabelecimento da dignidade humana. Como não poderia deixar de ser, o núcleo dessas lutas e movimentos sempre teve o trabalho como norteador, muito embora em alguns casos estivesse camuflado por alguma outra roupagem, como direito à terra ou à liberdade.

Esses movimentos são também constituintes da cidadania política e social, ao exigir das parcelas da sociedade que detém o poder político mudanças estruturais no status quo estabelecido.

Para o entendimento da importância que os movimentos populares tem na construção de um regime democrático e da cidadania de um povo, vale a referência ao estudo de Gohn (1995), que traça uma retrospectiva dos movimentos sociais que abalaram o Brasil desde sua época de colônia, desmistificando a ideia de que o povo brasileiro é passivo e não tem arraigado em em si a tradição de exigência de direitos por meio de movimento organizado ou luta armada.

No discorrer dos eventos, vê-se que na correlação de forças sociais existentes, tanto no período colonial como no imperial e mesmo em tempos republicanos, os integrantes das lutas eram considerados como oponentes aos interesses populares ou da nação. Na época do Brasil Colonia e Império, o povo era formado por pobres livres, funcionários, militares de baixo escalão, escravos e índios, que se opunham às elites dominantes, formadas pelos proprietários de terras, estrangeiros, políticos e representantes da Corte. Nos movimentos sociais que se sucediam, também havia a participação do clero, muito embora esta se desse à revelia das hierarquias eclesiásticas.

Um fato a ser destacado é de que, embora as razões fossem legítimas, as soluções para os problemas eram baseados em exemplos de sociedades de outros países, com

estruturas socio-econômicas bastante distintas, o que quase sempre dificultava o alcance dos objetivos das lutas ou ocasionava o seu fracasso.

Outro fator refere-se à participação das camadas médias da população, formada por intelectuais, militares e comerciantes, que exerciam o papel de ideólogos dos movimentos. Destaca-se, aqui, a importância desses atores até hoje, onde não se concebe o estabelecimento de uma luta ou movimento social sem uma base sólida de conhecimentos e orientações disponibilizada por grupos de intelectuais que o apoiem.

As reivindicações de cada movimento correspondiam às questões sociais da época e seu princípio articulador era dado por elementos da própria conjuntura política existente. Segundo Gohn (1995), elas partiam de valores baseados na cultura política vigente e na interpretação da realidade considerada como ideal para aqueles segmentos, naquele momento histórico.

As ideologias eram baseadas nos ideais democráticos liberais, nas utopias socialistas ou ainda no conservadorismo, com ideologias antidemocráticas ou elitistas, sendo que a política de conciliação era uma prática após o término do conflito, que, ao contrário, eram sempre violentos e sangrentos.

No passado mais recente, entre 1945 e 1964, as lutas sociais foram determinadas pelas novas necessidades que o desenvolvimento gerava no ambiente urbano, pelos efeitos perversos da industrialização e também pelas ideologias nacionalistas, que gerou movimentos de defesa de bens e da cultura nacional (ANTUNES, 2006). Nessa época, destacou-se o Movimento Estudantil, que inseriu uma nova classe, a dos estudantes, no discurso da reivindicação de direitos antes operado principalmente pela classe operária.

A partir de 1970, e mesmo sob toda a repressão existente, as lutas e movimentos sociais dão o contorno para um novo paradigma da ação social. Paulatinamente, até os anos 1980, a classe operária se delineia em um novo perfil, interessada em ingressar na sociedade de consumo, participar dos momentos políticos e lutar pelos bens nacionais (SANTOS, 1994). O fortalecimento dos sindicatos leva à criação das centrais sindicais, que fomentam novas lutas e incluem em sua pauta questões inéditas, como o combate à corrupção, à discriminação e a proteção do meio ambiente.

A promulgação da Constituição de 1988 vem reforçar o papel que os movimentos sociais têm desempenhado no enfrentamento da questão social. A criação dos Conselhos e a institucionalização do controle social se tornam referência para os debates onde são

discutidos os novos tópicos da agenda governamental e o atendimento às demandas sociais por meio da elaboração de políticas públicas.

É fato que, se ao longo do tempo os movimentos sociais no Brasil visavam à inclusão de parcelas significativas no sistema socio-econômico mais amplo e dos privados de direitos ao sistema legal e jurídico existente, no Brasil do final do século XX pobreza e exclusão deixaram de ser sinônimos para serem complementares. Neste cenário, Gohn (1995) afirma que os excluídos, ao contrário dos pobres, têm identidades e interesses e lutam por eles, formam entidades organizadas, negociam espaços de participação e reivindicam leis, direitos e acessos múltiplos. No entanto, na visão da autora, eles não têm expressividade econômica, mas tem expressividade política e utilizam novas ferramentas para forçar o seu reconhecimento como sujeito de direitos. Dessa forma, passam a ser considerados problemas sociais, transgressoras da ordem social vigente ao reclamar soluções para as questões sociais que a modernidade impõe a uma parcela considerável da sociedade.

É neste contexto que a necessidade da elaboração de uma política que regule as relações de trabalho e emprego se insere, como resultado de anos de lutas por melhores condições de vida na sociedade de que fazem parte tanto os que pertencem ao setor produtivo, seja como força de trabalho, seja como proprietário dos meios de produção, como aos que pertencem apenas à parcela consumidora de bens e serviços.

No documento ANA LÚCIA DE OLIVEIRA MONTEIRO (páginas 88-92)

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