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1.6 Precedentes históricos do GATT 1947 até a OMC

1.6.1 Rodada Kennedy (1963 1967)

A Rodada Kennedy merece destaque especial na presente análise por quatro motivos: (i) foi a primeira Rodada realizada após a criação da UNCTAD; (ii) foi a primeira Rodada a não discutir somente tarifas; (iii) teve o maior volume de concessões por parte de países desenvolvidos; (iv) foi a primeira Rodada em que os países da Comunidade Europeia negociaram em grupo.

A mera citação das circunstâncias e dos efeitos da Rodada Kennedy pode transmitir a ideia de que essa foi a primeira vez na qual os PEDs realmente tiveram um ambiente mais propício para auferir efetivos benefícios das negociações no âmbito do GATT. No entanto, a análise mais detalhada de cada um desses pontos apresenta um cenário bastante diferente.

(i) Primeira Rodada de negociação ocorrida após a criação da UNCTAD: A criação da UNCTAD alterou sobremaneira a participação de países em desenvolvimento nas negociações multilaterais de comércio no âmbito do GATT. Um dos aspectos mais notórios dessa mudança foi o grande aumento de participantes presentes nessa Rodada, a qual contou com o maior número de PEDs desde 1947, comerciais entre os países. Os países desenvolvidos ficaram divididos. A Comunidade Europeia, sob a liderança da França, apoiou o movimento dos países em desenvolvimento, enquanto os Estados Unidos se opuseram a ele. Posteriormente, foi institucionalizada como um órgão permanente da Assembleia Geral das Nações Unidas. Em resposta a esse desenvolvimento, uma reunião ministerial do GATT de 1964 nomeou uma comissão para elaborar emendas ao GATT que lhe permitissem cumprir as suas responsabilidades em relação aos países em desenvolvimento. Uma emenda foi aprovada em 1964 e tornou-se a Parte IV, nomeada como “Comércio e Desenvolvimento” do GATT.

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e, além disso, conforme já citado anteriormente, a relação comércio e desenvolvimento passou a ocupar um espaço na agenda de negociações.

A incorporação da Parte IV ao Acordo trouxe pelo menos um benefício prático para os países em desenvolvimento: o princípio da não reciprocidade em relação a esses países, presente no artigo VIII da Parte IV, com a seguinte redação:

The developed contracting parties do not expect reciprocity for commitments made by them in trade negotiations to reduce or remove tariffs and other barriers to the trade of less-developed contracting parties88.

Esse foi um real avanço para os países em desenvolvimento, sobretudo porque foi a base para uma resolução em favor de um “generalized, non-reciprocal, non-discriminatory system of preferences”89. Trata-se de uma verdadeira escusa do princípio da nação mais favorecida, ou seja, seria permitido conceder um benefício comercial a um determinado país em desenvolvimento, sem que o mesmo fosse estendido aos demais membros do Acordo. O benefício, hoje, é conhecido como Sistema Geral de Preferências (SGP), e só teve a sua base legal completa em 1979, com a “Enabling Clause” (Cláusula de Habilitação)90.

(ii) Primeira Rodada a não discutir somente tarifas:

Iniciou-se a negociação de barreiras não tarifárias, em especial a do antidumping. A proposta de se incluir o tema nas negociações foi justamente dos Estados Unidos91, que já tinham uma legislação sobre a matéria desde 1916, sendo que o instrumento já constava em sua proposta de criação da OIC e, posteriormente, foi discutido na Conferência de Havana. Sobre essas discussões anteriores, vale dizer que elas começaram com um interessante debate sobre o tipo de dumping o qual seria objeto de regulamentação:

It was said that discussion had shown that there were four types of dumping: price, service, exchange and social […] permitted members

88 Tradução nossa: As partes contratantes desenvolvidas não esperam reciprocidade para os compromissos assumidos por elas nas negociações comerciais para reduzir ou eliminar tarifas e outras barreiras ao comércio com partes contratantes menos desenvolvidas.

89 Tradução nossa: Sistema Geral de Preferências, não recíproco e não discriminatório. Para mais informações, vide: MASON, Amy M. The degeneralization of the Generalized System of Preferences (GSP): questioning the legitimacy of the U.S. GSP. Duke Law Journal, Durham, v. 54, p. 513-547, 2004.

90 NARLIKAR, Amrita, Fairness in international trade negotiations: developing countries in GATT & WTO. The World Economy, v. 29, n. 08, p. 1.016.

91 U.N. Doc. EPCT/C.II/54, at 11 (1946), apud JACKSON, John, World Trade and the Law of GATT, p. 404.

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to counteract the first type. It obligates members not to impose anti- dumping duties with respect to other three types92.

Também ficou acordado que deveria haver a presença de um dano à indústria doméstica e que só se justificaria a aplicação da medida caso a margem de dumping fosse superior a 5% (cinco por cento)93.

As discussões em Havana resultaram em diversas alterações no primeiro texto proposto pelos Estados Unidos. Na segunda sessão da Contracting Parties of Gatt, ainda em Havana, ficou decidido que o artigo VI do GATT seria substituído pelo texto resultante das negociações, com a seguinte justificativa:

While agreeing that there is no substantive difference between Article VI of General Agreement and Article 34 of the Charter, the working party recommends the replacement of that article, as the text adopted at Havana contains a useful indication of principle governing the operation of that article and constitutes a clearer formulation of the rules laid down in that articles94.

O artigo VI do GATT passou quase que sem alterações95 pelas primeiras Rodadas de negociação e foi uma das primeiras questões não tarifárias a serem discutidas após a Conferência de Havana. Nesse sentido, John Jackson relata que:

In the Kennedy Round, nontariff barriers as well as tariffs were to be subject to negotiation, but only a few of nontariff barrier discussion got so far. Of these, the only generalized, multilateral standard to evolve was the “Antidumping Code”, as the resulting agreement is popularly called. This code, officially entitles “Agreement on Implementation of Article VI of GATT”, sets forth certain definitions of terms used in Article VI and establishes standards for the procedure that nations use to impose the antidumping duties. This code, of course, applies only to those countries that accept it. It is not an amendment of GATT and, when new countries enter GATT, they will not automatically be obligated by the code, but opts to be so. However, since the code is worded as an “interpretation” of Article VI of GATT, its provisions could, over time, be accepted as the definitive interpretation of GATT, thus binding all GATT parties. Because of the MFN clause in Article I of GATT, it obligates parties to that code, even

92 U.N. Doc. EPCT/C.II/54, at 11 (1946), apud JACKSON, John, World Trade and the Law of GATT, p. 404. Tradução nossa: Foi dito que as discussões mostraram que havia quatro tipos de dumping: preço, serviço, cambial e social [...]. Os membros só poderiam aplicar medidas antidumping contra o primeiro tipo. Isso obriga os membros a não imporem direitos antidumping em relação aos outros três tipos.

93 U.N. Doc. EPCT/C.II/54, at 12 (1946), apud JACKSON, John, op. cit., loc. cit.

94 Tradução nossa: Embora concorde que não há diferença substancial entre o artigo VI do Acordo Geral e do artigo 34 da Carta, o grupo de trabalho recomenda a substituição do mesmo artigo, conforme o texto aprovado em Havana, já que ele contém uma indicação útil do princípio que rege o funcionamento daquele artigo e constitui uma clara definição das regras nele previstas.

95 Segundo John Jackson, houve uma pequena alteração sobre a prerrogativa de um membro utilizar o antidumping em caso de dano ocorrido em território de terceiro, em 1955. (Op. cit., p. 406).

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in their actions towards GATT contracting parties who are not code parties-an interesting circumstance of non-reciprocity96.

É importante notar que, naquele momento, somente alguns países tinham condições de impor medidas antidumping, mais especificamente, os quatro maiores empregadores históricos de tais medidas97: Estados Unidos, União Europeia, Canadá e Austrália; e eram esses os principais destinatários do Código Antidumping, que só seria implementado na próxima Rodada.

Somente décadas depois, essa ferramenta passaria a ser utilizada também por PEDs, ou seja, o antidumping era um instrumento protecionista quase que exclusivo para países desenvolvidos. Mais a frente, o assunto será abordado com o devido aprofundamento; agora, interessa ressaltar que a inclusão do antidumping já na Rodada Kennedy serviu unicamente a interesses de países já industrializados.

(iii) Maior volume de concessões por parte de países desenvolvidos: Segundo Suleiman Abu-Bader e Aamer Abu-Qarn, essa foi a Rodada em que houve uma significativa redução do nível de tarifas de países industrializados; porém, segundo os mesmos autores, grande parte dos efeitos dessas reduções tarifárias foi eliminada pela introdução de barreiras não tarifárias, as quais emergiram da pressão de grandes indústrias afetadas pelas reduções das tarifas98.

Além disso, apesar das significativas reduções tarifárias, pouco houve de benefício para os PEDs, em virtude de as mais significantes reduções da Rodada Kennedy ocorrerem justamente em relação a produtos manufaturados, especialmente em artigos de alta tecnologia produzidos por países desenvolvidos.

96 World Trade and the Law of GATT, p. 403. Tradução nossa: Na Rodada Kennedy, as barreiras não tarifárias e as tarifas foram objeto de negociação, mas apenas algumas discussões sobre as barreiras não tarifárias foram tão longe. Dessas, a única que teve uma evolução do padrão generalizado multilateral foi o “Código Antidumping”, como é popularmente chamado. Esse código, chamado oficialmente de “Acordo sobre a implementação do Artigo VI do GATT”, apresenta algumas definições de termos utilizados no artigo VI e estabelece normas para o processo pelo qual as nações poderão impor direitos antidumping. Esse código, é claro, se aplica apenas aos países que o aceitaram. Não se trata de uma alteração do GATT e, quando novos países entrarem no GATT, a adesão ao código será optativa. No entanto, considerando que o código está redigido como uma “interpretação” do artigo VI do GATT, as suas disposições podem, ao longo do tempo, ser aceitas como a interpretação definitiva do GATT, portanto, obrigatórias a todas as partes do GATT. Devido à cláusula NMF no artigo I do GATT, as partes do código estão obrigadas a aplicá-lo mesmo em suas ações contra as partes contratantes do GATT que não são partes de código, uma circunstância interessante de não reciprocidade.

97 BOWN, Chad P. The WTO and antidumping in developing countries. Economics & Politics, Oxford, v. 20, n. 02, p. 255-288, jun./2008, p. 255.

98 The impact of GATT on international trade: evidence from structural break analysis. Applied

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Dessa forma, o resultado do estudo de Abu-Bader e Abu-Qarn revelou que, em virtude de ocorrerem apenas modestas reduções tarifárias de produtos primários (matérias-primas, produtos agrícolas ou têxteis), os benefícios da liberação na Rodada Kennedy não alcançaram os PEDs.

(iv) Primeira Rodada em que países da Comunidade Europeia negociaram em grupo:

Para Gilbert R. Winham, esse foi um dos fatores que levaram ao sucesso da Rodada em relação ao aumento de concessões por parte dos Estados Unidos, pois passou a haver um poder de barganha mais equitativo entre os principais negociadores99.

Segundo Lia Valls, um fato com o qual se pode fundamentar essa posição foi a mudança na fórmula de negociações tarifárias100. Já na Rodada Dillon, os países europeus haviam proposto redução linear da tarifa, o que só foi implementado na Rodada Kennedy. Essa mudança permitiu redução de 35% (trinta e cinco por cento) na tarifa média de produtos industrializados dos países desenvolvidos101.