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ROTINA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: materialização do currículo

Foto 36 — Café da manhã com a família

3 O CURRÍCULO NA EDUCAÇÃO INFANTIL: políticas e prática

3.5 ROTINA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: materialização do currículo

As políticas educacionais e sobretudo as políticas de currículo e a prática pedagógica orientam as ações que contribuem para a formação das crianças no espaço institucional em termos das condições de atendimento (estrutura material) e nos aspectos pedagógicos (orientação social, política e pedagógica). O currículo e a prática pedagógica estão ancorados em uma concepção de infância, de criança e de escola de educação infantil, apresentando-se como um movimento, um projeto que ganha materialidade como significação e construção de identidade dessa etapa da educação básica, referenciada em princípios e concepções alicerçados em políticas nacionais e locais. Ao mesmo tempo em que essa identidade vai se instituindo, se

38 “Os grandes temas podem ser resumidamente definidos como: a existência de um discurso que institui um estatuto para a infância; a organização de espaços sociais adequados para a educação e cuidado das crianças; o nascimento de um profissional para atuar na Educação Infantil; a definição de valores para a socialização das crianças derivados de algum tipo de compreensão sobre a educação; a criação de instrumentos de trabalho e alternativas de intervenções; a seleção de metodologias e de conteúdos; a produção de materiais e equipamentos educacionais; as decisões sobre a organização espacial; as discussões sobre os usos do tempo; a organização da vida cotidiana das instituições e das pessoas sob a forma de rotina.” (BARBOSA, 2001, p. 01).

fortalece a constituição do trabalho vivido no cotidiano das instituições de educação infantil e, desse modo, estas assumem a responsabilidade de gerir e materializar as orientações de suas propostas pedagógicas, organizando seu fazer cotidiano; sua rotina.

A rotina é o currículo em ação. Ela é estruturadora da prática pedagógica, carrega a dimensão de organização do espaço e do tempo pedagógico. Como afirma Barbosa (2006, p. 205): “A rotina tem seu lado encantador, que é o de aprender a fazer todos os dias as práticas que garantem a vida”, e essa vida viva é promotora do desenvolvimento global do aluno.

Nesse sentido, pensar em uma rotina a partir de um currículo com perspectiva de justiça curricular, é pensar em um tempo que flexibilize as exigências individuais das crianças e as atividades promovidas pelo adulto, pensando sobretudo nas especificidades da faixa etária. Segundo Bondioli e Gariboldi (2012), os bebês necessitam de uma atenção maior em relação aos seus ritmos individuais, enquanto os maiores de dois anos introduzem, pouco a pouco, os ritmos mais coletivos de desenvolvimento. Pensar em um tempo que respeite a criança é promover atividades com alternância de brincadeiras de maior movimentação e outras mais tranquilas, objetivando sempre valorizar movimentos de experiências individuais, que por vezes podem ser imprevisíveis e coletivos. Enfim, que as crianças possam ter uma estrutura que lhes permita vivenciar autonomia e segurança com previsibilidade dos acontecimentos temporais que vivenciam. (BONDIOLI e GARIBOLDI, 2012).

Refletir sobre o uso, a organização do tempo, requer discutir principalmente a possibilidade de apropriação e ampliação das aprendizagens infantis, a partir do olhar sobre a instituição como um espaço pedagógico, com uma função educativa explícita. Pensar em normas, convenções, conhecimentos culturais, que foram construídos pelo homem ao longo da história, exige atividades sistemáticas que respeitem as crianças e apresentem os conhecimentos da humanidade como direito delas, disponibilizados nas linguagens artísticas da Matemática, das Ciências, do Movimento, da brincadeira e da Língua Oral e Escrita (REDIN,1998), ou seja, viver o educar e cuidar com responsabilidade e justiça curricular.

Pensar em uma rotina que tenha o tempo pensado e vivido, parceiro de um espaço que não se trate apenas de espaços físicos, mas em ambientes educativos, uma vez que, segundo Forneiro (1998), o termo “espaço”, na sua concepção mais

comum, refere-se ao espaço físico. Para as crianças, esse espaço é tudo que o compõe, nas palavras de Battini (1982, p. 24): “para a criança, o espaço é o que se sente, o que se vê, o que se faz nele, portanto, o espaço é sombra e escuridão; é grande, enorme [...] ou pequeno. É esse lugar onde ela pode ir para olhar, ler, pensar”. Entretanto o ambiente “refere-se ao conjunto do espaço físico e as relações que se estabelecem no mesmo (afetos, relações interpessoais)”. (FORNEIRO, 1998, p. 232). Ou seja, as atividades pedagógicas vividas nesse espaço físico o transformam em ambiente ou não, dependendo da intenção do docente, atribuída à atividade vivida. Em outras palavras, “o espaço não é algo dado, natural, mas sim construído” (HORN, 2004, p. 16).

As atividades vivenciadas e planejadas nesse ambiente oportunizam à criança compartilhar aprendizagens, conhecimentos e fazer trocas, uma vez que o ambiente por si só não traz o conhecimento, ele não brota espontaneamente do amadurecimento das crianças, ele é construído por meio da interação discente- docente-ambiente. (FRISON, 2008).

Bondioli (2004), nos resultados de sua pesquisa, anuncia que existem alguns marcos temporais que pouco se alteram: a chegada, a roda, o lanche, o pátio e a saída, e, vale salientar, é importante mantê-los constantemente como elementos principais para que as crianças e os professores sintam-se seguros em estar na escola. Uma vez que segurança é um dos aspectos que fazem parte do respeito à criança dentro da instituição.

Então, o entrelace entre a organização do tempo e do ambiente educativo mobilizado pelo adulto proporciona a vivência das crianças em um grupo e em um ambiente que as fazem ter sentido de pertencimento, de segurança, de participação e de cooperação e, consequentemente, um espaço e um tempo de prazer, alegria e bem querer. Uma instituição “bonita” em seu sentido de ser justa. (FREIRE, 2006).

Portanto, currículo na educação infantil é vivenciar a rotina. Nas palavras de Barbosa (2001), as rotinas são “constituídas com base em uma política social e cultural que está profundamente vinculada à emergência e à vida concreta das instituições da modernidade” (BARBOSA, 2001, p. 06). A rotina enquanto dispositivo pedagógico atua com o objetivo de estruturar, organizar e sistematizar as ações sociais, políticas e éticas, que acontecem em virtude das nossas crenças e ações. Ela age sobre a mente, as emoções e o corpo das crianças e dos profissionais que estão educando e cuidando delas.

A rotina apresenta elementos estruturantes: a organização do ambiente; o uso do tempo; a seleção e as propostas de atividades; a seleção de materiais (BARBOSA, 2001; 2006). Estes elementos estruturam o estar da criança na instituição, como também o fazer do professor, uma vez que propiciam a organização do espaço para desenvolver suas atividades; definem o papel no processo de aprendizagem; facilitam o atendimento e o desenvolvimento do trabalho pedagógico; provocam a multiplicidade de ideias e asseguram uma estrutura temporal que se constitui num instrumento valioso para o trabalho escolar e sua organização.

Para isso, a organização do cotidiano das crianças em educação infantil pressupõe refletir sobre o estabelecimento de elementos básicos que compõem uma rotina diária, aquilo realizado com as crianças, como suas necessidades reais e imediatas (CORDEIRO, 2007). Pois numa rotina não estruturada, corre-se o risco de se perder muito tempo com atividades que não contribuem com o desenvolvimento das crianças, muitas vezes equivocadas em relação à idade e/ou ao próprio desenvolvimento global dos alunos ou mesmo sem nenhuma intencionalidade pedagógica, refletindo o descaso no atendimento. (SANTIAGO, 1990).

Bondioli (2004) afirma que pensar a rotina, refletir sobre ela, preservar a autonomia da criança e valorizar a interação como mediação da aprendizagem de mundo nos remetem a algumas reflexões, a princípios que regem o fazer pedagógico e visam ao respeito à criança e ao seu desenvolvimento cognitivo, afetivo e social. Paniágua e Plácitos (2007, p. 34) completam sobre estes princípios:  Grau de continuidade/descontinuidade: a determinação das atividades tem um mínimo de continuidade e se relacionar com o episódio anterior e o seguinte, dependendo do tipo de atividade a ser desenvolvida;

 Duração e tipo de atividade do dia a dia escolar: a duração de cada atividade é atribuição do(a) professor(a) responsável pela sala de aula; cabe a ele empregar com consciência a distribuição desse tempo e refletir sobre a valorização dos saberes inerentes a essas situações;

 Colocação e ritmo dos momentos no dia a dia escolar: devemos, pois, analisar e refletir sobre a colocação das atividades e o ritmo em que as mesmas aparecem no dia a dia da escola, levando em consideração o desenvolvimento infantil e as áreas de conhecimentos específicos para a ampliação dos saberes dos alunos. Ou seja, necessita-se considerar o ritmo, a participação, a relação com o mundo, a realização, a fruição, a liberdade, a consciência, a imaginação e as diversas formas de sociabilidade dos sujeitos envolvidos.

A rotina tem seu valor vinculado e reconhecido na construção de espaço, ao tratar de deslocamentos espaciais previamente conhecidos e na organização de tempo, na medida em que uma sequência ocorre com uma determinada frequência temporal. (BARBOSA, 2006). Estes dados fazem parte da organização do currículo vivido na instituição, pois se trata de elementos estruturantes da organização institucional e de normatização das crianças e dos adultos que frequentam os espaços coletivos de cuidado e educação. Constituem-se em elementos integrantes das práticas pedagógicas e didáticas previamente pensadas, planejadas e elaboradas, com o objetivo de ordenar e operacionalizar o cotidiano da instituição. (BARBOSA, 2006).

Nesse sentido, um currículo justo requer uma rotina que veja a criança como referencial do planejamento, como ser integral, que se relaciona com o mundo a partir do seu corpo, em vivências concretas com diferentes parceiros e em distintas linguagens, demanda considerar os dois grandes eixos, as interações e as brincadeiras, assim como a indissociabilidade entre o cuidar e educar. (BRASIL, 2009). Por isso, uma rotina, gestada em uma proposta crítica vivida com as crianças, constitui condição essencial em sua formação.

Sendo assim, a rotina de que tratarmos aqui respalda-se, dentre outros autores, em Freire (1998), afirmando que o dia a dia de uma instituição faz pulsar (em diferentes ritmos) um coração vivo de um grupo, uma sequência de atividades diferenciadas que se desenvolvem num ritmo próprio, em cada grupo-classe, em cada escola, em cada rede de ensino, como descrevemos anteriormente. Ela diferencia-se do que é uma rotina pensada pejorativamente como rotineira, com um ritmo pobre, com pouca variação, muito repetitiva, homogênea, enfadonha e chata. Essa ideia em nada lembra uma escola e, sobretudo, uma escola de educação infantil em que a alegria, o prazer, o lúdico, o choro, os porquês, a curiosidade infantil fazem parte de todo um aprendizado, um aprender sobre e para a vida.

Atributos de intencionalidade, tomada de consciência e o exercício de sua função da prática educativa vai se tornando realidade na busca do inédito-viável (FREIRE, 1983), ou seja, das condições, construídas, que podem possibilitar ultrapassar obstáculos, desafios para a busca do ser mais, que se traduz, no âmbito da EI, em atitude de respeito à criança e na construção de um currículo vivo, em que existem contestações às forças da emancipação por parte de forças da regulação e do controle social.

Em vista disso, um currículo que tome a criança como ponto de partida exige que se compreenda o mundo que envolve o afeto, o desafeto, o prazer, a fantasia, o movimento, a poesia, as ciências, as artes, a música, a linguagem e as matemáticas e, especialmente, o brincar, como elo mediador e linguagem necessária à construção da identidade pessoal e social em suas múltiplas dimensões. O brincar enquanto linguagem simbólica propõe e traz em si um potencial criativo, originando a simbologia que envolve o mundo da criança, pois a própria experiência lúdica é geradora da realidade simbólica que permeia as demais linguagens.

Portanto, currículo é visto nesse estudo como prática pedagógica materializada na rotina, vivida com intencionalidade, objetivando a construção de conhecimentos por parte da criança, contribuindo para a formação da sua identidade. Concebemos a criança como cidadã, capaz e competente de interferir no ambiente em que vive. Para ela, a vida é algo que se experimenta.

Insistir em práticas espontaneístas é desrespeitoso, é retirar o direito da criança de ser e estar em um ambiente adequado a suas vivências. Desse modo, não há justiça curricular no espontaneísmo, pois formar um indivíduo é muito mais do que puramente treiná-lo no desempenho de destrezas. (FREIRE, 1986). Ser capaz de construir uma prática pedagógica planejada, com intencionalidade, que mobilize o interesse das crianças de modo que elas possam avançar na construção de conhecimentos é condição sine qua non para sua formação cidadã.

Assim, nas palavras de Santos (2013), o interesse das crianças é:

condição fundante para a construção de uma prática pedagógica humanizada e voltada para o respeito e autonomia desses sujeitos. As ações desenvolvidas junto a eles são testemunho e conteúdo da ação pedagógica. Portanto, cada gesto, cada palavra e cada olhar da professora e dos outros profissionais da educação [...] influenciam na construção da identidade e da personalidade dos bebês. (SANTOS, 2013, p. 08).

Ações desenvolvidas em uma instituição de educação infantil são, antes de tudo, ações pedagógicas e transformam-se em conteúdos para a aprendizagem da criança. Portanto, a exemplo do adulto, a capacidade de ser mais, que está presente nas crianças, é o ponto de partida para se pensar na humanização daquelas que participam de creches e pré-escolas, devendo-se promoverem atitudes intencionais para sua educação. Afinal, ensinar exige a corporificação das palavras pelo exemplo; nossas atitudes buscam, demonstram a segurança extremamente necessária para a construção da identidade de um indivíduo (FREIRE, 1996, p. 34).

A prática pedagógica dialógica acontece por meio da interação entre os sujeitos, tendo como centro o interesse das crianças e, com a amorosidade e a intencionalidade do professor, reforça e conduz o trabalho docente-discente. Nesse sentido, completa Freire (1996, p. 69-70):

Toda prática educativa demanda a existência de sujeitos, um que, ensinando, aprende, outro que, aprendendo, ensina, daí o seu cunho gnosiológico. [...] Docência e discência: quem ensina, aprende também. E quem aprende, ensina também. [...] um grande valor, porque ele se insere num paradigma de educação contra- hegemônico, que tem como horizonte a humanização, a liberdade e a justiça social.

Estes são os fios que permeiam a discussão em torno das políticas públicas que nortearam a história da educação infantil ao longo dos últimos 30 anos. Não se trata de narrar sobre um percurso linear, mas povoado de tensões, de conflitos, de dissensos, mas também de consensos no campo do currículo e da educação infantil. Com esses debates, percebemos avanços em ambos os campos de conhecimento. Hoje, parece haver consenso de que há um currículo para a educação infantil, portanto, uma política de conhecimentos para esta etapa da educação básica que guarde suas especificidades, que forneça uma identidade que lhe seja própria.

No que se refere às concepções e aos princípios, o debate atual em nada lembra as concepções de criança de outrora (século XIX, em especial), visto que se passou a visualizar a criança como centro do processo pedagógico. As lutas de setores da sociedade civil em favor das garantias dos direitos das crianças tiveram êxitos e lograram conquistas fazendo, com isso, avançar a perspectiva de currículo que emana desses embates e é discutido atualmente. Tais avanços tornaram possível, hoje, pôr-se em pauta, por exemplo, um currículo com base crítica, com finalidades, conteúdos, cuja prática se efetiva na relação entre os sujeitos, com vistas à distribuição de conhecimentos de forma justa para todas as crianças, em um local institucionalmente pensado para ela, em que possa ser cuidada e educada, brincando, interagindo e, acima de tudo, sendo feliz.

Esse espaço materializa-se em uma instituição de educação infantil, com rotinas diversificadas, planejadas, baseadas em práticas pedagógicas com novas formas de lidar com os conteúdos, tempos e ambientes específicos, respaldadas em princípios e concepções que vislumbram a humanização.

Com essas lentes, buscamos compreender como o currículo é materializado na prática docente-discente, na rotina estabelecida em um centro municipal de educação infantil.

A seguir, apresentamos o percurso metodológico desenvolvido, de acordo com os objetivos de pesquisa.

4 PERCURSO TEÓRICO-METODOLÓGICO: fazendo caminhos e conhecendo o