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A DESPERSONALIZAÇÃO

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 40-45)

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Scripta Alumni - Uniandrade, n. 9, 2013.

E como se não bastasse, ao abrir o armário, G. H. encontra uma barata velha. De onde sobrevêm os resquícios da humanidade, o nojo e a repulsa.

Também se pode pensar este encontro com a barata com o imemorial, que existe há tempos. É uma mistura de antigo e de atual na barata que precede o humano nos inícios do mundo tal qual a linguagem nos separa do início de nossa chegada ao mundo, nos antecede, existindo antes mesmo de nosso nascimento como foi citado anteriormente por Sloterdijk. É assim que a linguagem nos atravessa, mesmo em silêncio, mesmo no indizível.

O que sempre me repugnara em baratas é que elas eram obsoletas e no entanto atuais. Saber que elas já estavam na terra, e iguais a hoje, antes mesmo que tivessem aparecido os primeiros dinossauros, saber que o primeiro homem surgido já as havia encontrado proliferadas e se arrastando vivas, saber que elas haviam testemunhado a formação das grandes jazidas de petróleo e carvão no mundo, e lá estavam durante o grande avanço e depois durante o grande recuo das geleiras – a resistência pacífica. (LISPECTOR, 1998, p. 48)

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Scripta Alumni - Uniandrade, n. 9, 2013.

vacilar, perder a certeza, as garantias dos sentidos pré-estabelecidos, estar na errância.

É o perigo da nudez, do exílio. Ou seja, é permitir-se estar em exílio da palavra, da linguagem. ―Hemos partido de la desnudez, y en efecto, el desterrado está desnudo. En tierra extranjera, no puede valerse de las costumbres que lo han vestido y protegido: su exposición es absoluta y siempre riesgosa‖ (RELLA, 2010, p. 134).

Eu estava vendo o que só teria sentido mais tarde – quero dizer, só mais tarde teria uma profunda falta de sentido. Só depois é que eu ia entender: o que parece falta de sentido – é o sentido. Todo momento de ―falta de sentido‖ é exatamente a assustadora certeza de que ali há o sentido e que não somente eu não alcanço, como não quero porque não tenho garantias. (LISPECTOR, 1998, p. 35, ênfase no original)

De que forma se pode perceber em G. H. este caminho à despersonalização, à nudez? Para chegar a este quarto desterrado, exilar da linguagem em sua nudez e brancura, a passagem só poderia ser feita pela barata. ―A entrada para este quarto só tinha uma passagem, e estreita: pela barata‖ (LISPECTOR, 1998, p. 59).

Ao encontrar com a barata, G. H. ainda se segura em todos os seus resquícios humanos, nas suas atribuições de sentido, no nojo e na repulsa pelo inseto.

Resquícios que ela ainda precisa se livrar. É aí que ela percebe o quanto essas designações se colam às coisas, agregando o que se vê e o que se sente às palavras.

―Toda uma civilização que se havia erguido, tendo como garantia que se misture imediatamente o que se vê com o que se sente, toda uma civilização que tem como alicerce o salvar-se – pois eu estava em seus escombros‖ (LISPECTOR, 1998, p. 63).

Para se despersonalizar, é preciso a destruição dessa civilização, das camadas arqueológicas humanas para chegar a experiência do mundo através da nudez.

―La desnudez, entonces, no es solo una condición sino un estado del ser: se deviene o se re-deviene ser/estar desnudo. Estar desnudo da, así, forma a la experiência del mundo‖

(RELLA, 2010, p. 7). Em G. H., essa experiência de nudez se manifesta no abandono do gosto, do sabor que nela se faz ao provar da barata. Neste gesto singular, ela reflete que as definições a afastam das coisas por delimitá-las pela utilidade.

E seus olhos eram insossos, não eram salgados como eu quereria: sal seria o sentimento e a palavra e o gosto. Eu sabia que o neutro da barata tem a mesma falta de gosto de sua matéria branca. Sentada, eu estava consistindo. Sentada, consistindo, eu estava sabendo que se não chamasse as coisas de doces ou salgadas, de tristes ou alegres ou dolorosas ou mesmo com entretons de maior sutileza – que só então eu não estaria mais transcendendo e ficaria na própria coisa.

(LISPECTOR, 1998, p. 86)

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Através de passagens de despersonalização e de nudez, G. H. chega a uma condição da linguagem, da palavra, oposta àquela que se refere a sua humanidade, que não suportava ficar sem uma explicação, sem um sentido que a orientasse no mundo. A personagem chega à condição de que não se é dono daquilo que se fala. As palavras faltam ao dizer e não é possível ter o domínio dos sentidos, da compreensão das palavras ditas. Diz G. H. ao fim do começo de seu relato:

O mundo independia de mim – esta era a confiança que eu tinha chegado: o mundo independia de mim, e não estou entendendo o que estou dizendo, nunca! Nunca mais compreenderei o que eu disser.

Pois como poderia eu dizer sem que a palavra mentisse por mim?

Como poderei dizer senão timidamente assim: a vida se me é. A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro. — — — — —

— (LISPECTOR, 1998, p. 179)

CONCLUSÃO

Em primeira pessoa, G. H., este pedaço de sequência de letras do alfabeto, nos conta a sua experiência. Não apenas a experiência de ter prendido a antiga barata ao meio pela porta do guarda-roupa e provado da sua pasta amarelecida. Ela relata a experiência da linguagem, de chegar à condição da linguagem, dessa impossibilidade de deter a forma, os sentidos de sua expressão, da condição de impossibilidade de apreendê-la assim como questiona Blanchot a respeito da palavra.

―¿Devolver a las palabras su sentido? ¿No devolver las palabras al Sentido?‖ (BLANCHOT, 1994, p. 79).

A personagem experimenta com seu corpo a impossibilidade de apreensão, mas também a possibilidade do desapego, do despojamento do sentido ao permitir-se ficar na errância, na falta de compreensão, na falta das palavras que alcancem o dizer. Ela compreende assim como Blanchot que ―las palabras no tenían sentido más que porque el sentido, al introducir la sospecha, al filtrarse, cual vapor invisible, deletéreo, de un lugar sin origen, no cesaba, al tiempo que parecía darles vida, de romper en pedazos, de mortificar las palabras‖ (BLANCHOT, 1994, p. 121).

Para sair dessa relação entre o eu e o mundo, daquilo que organiza e nomeia as coisas com as palavras, G. H. parte para sua despersonalização enquanto pessoa, enquanto eu para enfim chegar a um estado em que a linguagem é justamente essa impossibilidade, porém condição, de nomear e apontar fixamente em que não se sabe o que diz pois ―no hay ‗yo‘ para no saber‖ (BLANCHOT, 1994, p. 98, ênfase no original). Então, nessa impossibilidade se chega ao neutro, ao inexpressivo, ao mudo das palavras, daquilo que não se alcança ao dizer, que sempre nos escapa. A paixão de G. H.

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e a nossa é de chegar à condição da linguagem, dessa impossibilidade de pertencimento, de definição, de sentidos. De chegar ao que não é quente nem frio, mas morno e sem o gosto humano das definições, ao inexpressivo das palavras.

De agora em diante eu poderia chamar qualquer coisa pelo nome que eu inventasse: no quarto seco se podia, pois qualquer nome serviria, já que nenhum serviria. Dentro dos sons secos de abóbada tudo podia ser chamado de qualquer coisa porque qualquer coisa se transmutaria na mesma mudez vibrante. (LISPECTOR, 1998, p. 96)

Neste quarto seco a que chega G. H. em que qualquer nome serve, pois não se tem nenhum, nos evoca um fragmento singular de Maurice Blanchot que condensa as reflexões desta discussão. É um diálogo circular, que não se sabe quem fala, são diálogos inconclusos. Não há uma cena em que se deem tais falas. Há um encontro da ficção teórica de Blanchot com a de Clarice através destes fragmentos, nessas vozes sem vozes, sem serem nomeadas, mas que, no entanto, apresentam a dispersão de um sentido esvaziado da escritura. Neste diálogo aberto, nessa conversa infinita, sempre retomando a frase anterior e dispersando-a assim como faz Clarice no texto de A paixão segundo G. H., é que se percebe este nome sem nome dado às coisas. Que as coisas tenham nome, mas que nunca se saiba tal nome para que não sejam chamadas. Um nome que tem um espaço em branco, um nome vazio, um nome enquanto exterioridade, sem relação com a coisa.

— Les daríamos un nombre.

— Tendrían uno.

— El que le diésemos no sería su verdadero nombre.

— Sin embargo, sería capaz de nombrarlos.

— Capaz de informar que, el día en que se considerasen listos para ello , habría un nombre para su nombre.

— Un nombre tal que no daría lugar a que se sintiesen interpelados por él, ni tentados de responder a él, ni siquiera jamás nombrados por dicho nombre.

— ¿No hemos supuesto, sin embargo, que tendrían uno que sería común a todos ellos?

— Lo hemos supuesto, pero sólo para que pudiesen pasar desapercibidos con más comodidad.

— Pero entonces ¿cómo sabremos que podemos dirigirnos a ellos?

Están lejos, ¿sabe?

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— Para eso tenemos los nombres, más numerosos y más maravillosos que todos aquellos que se utilizan normalmente.

— No sabrían que es su nombre.

— ¡Cómo iban a saberlo! No tienen nombre. (BLANCHOT, 1994, p.

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REFERÊNCIAS

BLANCHOT, M. Lo extraño y el extranjero. Archipiélago: Cuadernos de la crítica de la cultura, v. 13 , n. 49, Barcelona, out. 2001, p. 80-87.

_____. El paso (no) más allá. Tradução de Cristina Peretti. Barcelona: Paidós, 1994.

LISPECTOR, C. A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

NUNES, B. A linguagem e o silêncio. In: _____. O dorso do tigre. São Paulo: 34, 2009, p.

125-134.

RELLA, F. Desde el exilio. (La creación artística como testimonio). Traducción de Paula Fleisner. Buenos Aires: La Cebra, 2010.

SLOTERDIJK, P. Poética del comezar. Venir al mundo, venir al lenguaje (Lecciones de Frankfurt). Traducción de Germán Cano. Valencia: Pré-textos, 2006.

WALDMAN, B. ―A retórica do silêncio em Clarice Lispector‖. In: JUNQUEIRA FILHO, L. C.

U. (Org.). Silêncios e luzes, a experiência psíquica do vazio e da forma. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998, p. 283-294.

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O IMPROVÉRBIO DE MIA COUTO NO CONTO OS INFELIZES

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