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ECOS DESDE O TÚNEL CORTAZARIANO 1

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 54-57)

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Scripta Alumni - Uniandrade, n. 9, 2013.

MANIFESTAÇÕES DA LINGUAGEM POÉTICA DE ROBERTO

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Scripta Alumni - Uniandrade, n. 9, 2013.

INTRODUÇÃO

Em sua Teoria do túnel, texto de 1947, o escritor argentino Julio Cortázar faz um levantamento da história recente do gênero romanesco ao mesmo tempo em que propõe uma reformulação transgressiva onde a estética verbal seja submetida à busca pela expansão e pelo pleno exercício das faculdades e possibilidades humanas. Não devendo ser dotada de uma autossuficiência estética, a literatura deve ser antes uma expressão total do homem. Parte daí sua aposta em uma escrita não conformada às convenções, que não se deixe limitar pela mediação do idioma e que busque eliminar as distâncias existentes entre o homem e o mundo, sempre privilegiando os questionamentos que envolvem a condição humana. Isso, em última instância, conduz a uma nova relação com o real e a um questionamento da linguagem, instrumento através do qual o homem constrói o mundo para si, de conquista do real por meio do qual o homem também se constitui.

Por isso, diante do risco de que uma linguagem conformada venha a empobrecer a experiência e, consequentemente, impedir o aprofundamento da reflexão, Cortázar propõe o desvio e a agressão às ordens estéticas estabelecidas como meio de superação linguística. Aspectos subversivos dessa natureza são privilegiados em seu levantamento histórico do romance, sendo este pontuado, sobretudo, pela incursão do elemento poético3 no âmbito narrativo e no qual Les chants de Maldoror4, do Conde de Lautréamont, e Une saison en enfer5, de Arthur Rimbaud, figuram como destacados antecessores. É desse contexto que surge a imagem do túnel: ―Essa agressão contra a linguagem literária, essa destruição de formas tradicionais tem a característica própria de um túnel; destrói para construir‖ (CORTÁZAR, 1998, p. 49). O escritor privilegiado por Cortázar ―perfura as muralhas do idioma literário por uma razão de desconfiança, por acreditar que se não o fizer se encerrará num veículo capaz de conduzi-lo somente por determinados caminhos‖ (p. 46).

3 ―A história da literatura é a lenta gestação e desenvolvimento dessa rebelião‖ (CORTÁZAR, 1998, p. 54, ênfase no original).

4 ―(...) com uma eficácia assombrosa, romance e poema mergulham um no outro sem titubear. Submetendo a linguagem enunciativa à marcha de um acontecer alternadamente mágico, onírico, romanesco, abstrato, de pura criação automática, Lautréamont inventa uma realidade pueril – a realidade de um deus de vinte anos – como aríete confesso contra a realidade cotidiana e exalta, candoroso, as forças negativas num prolongado pesadelo delirante, lúcido, sem paralelo. Mas ao inventar essa realidade a prefere poética, regida pela analogia antes que pela identidade, e a extrai de si mesmo numa indizível operação noturna. Negando-se a submeter sua realidade poética às ordens estéticas da linguagem, superada por uma avalanche de imagens fulgurantes e deslumbramentos atrozes, o Conde se deixa falar, derrama no amplíssimo período retórico da prosa uma revelação em que o autêntico e o puerilmente alinhado (...) se entremesclam e se confundem‖ (CORTÁZAR, 1998, p. 73, ênfase no original).

5 ―A criação de Une saison en enfer consiste então em notar (...) uma experiência poética, isto é, pertencente a uma ordem não-redutível à enunciação mas comunicável pelo mesmo sistema de imagens em que a experiência se propõe, imagens que coexistem com a vivência que mencionam e conservam eficácia incantatória tanto para seu apreensor como para os leitores do produto verbal‖ (CORTÁZAR, 1998, p. 75, ênfase no original).

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Outro dado que não se pode negligenciar é que o subtítulo de Teoria do túnel é Notas para uma localização do surrealismo e do existencialismo. Para Saúl Yurkievich, a palavra ―localização‖ denota um posicionamento pessoal, a intenção de situar as duas tendências a que Cortázar se filia dentro da literatura moderna.

(YURKIEVICH, 1998, p. 11). Assim, no que diz respeito ao surrealismo, Yurkievich escreve:

Abolir os limites entre o narrativo e o poético provoca uma infusão lírica que gera um texto andrógino dotado da dupla propriedade ou potência comunicativas: o romancepoema, chave de acesso ao humano global. Esse amálgama se vincula à cosmovisão surrealista.

O surrealismo é para Cortázar tanto estro quanto janela (quer dizer, perspectiva) ou ato. Equiparado ao poético por excelência, o surrealismo o modela e o apetrecha. Não obstante, atribui-lhe um papel circunscrito na conformação romanesca porque sustenta que não há romance surrealista. A intervenção do acaso, o premonitório, as coincidências extraordinárias, o devaneio onírico, o mágico, a aproximação ao fantástico – componentes surrealistas – infundem ao relato (que se constitui de acordo com seu regime específico) as requeridas dimensões poéticas. Elas dilatam o alcance do romance, ao mesmo tempo em que liberam outras chaves de acesso à realidade. (YURKIEVICH, 1998, p. 18-19, ênfase no original)

No mesmo sentido, a passagem de As moscas que serve de epígrafe à Teoria do túnel, prova a proximidade de Cortázar ―ao existencialismo, principalmente o sartriano; antecipa seu desassossego em relação à condição humana, sujeita, em um mundo desatinado, a um questionamento radical‖ (YURKIEVICH, 1998, p. 13). Logo em seguida, Yurkievich complementa:

Existencialismo, aqui, implica um compromisso liberador, remete ao homem privado das falsas investiduras e da ilusória potestade que assume sua finalidade, que afinca no constitutivo da existência, no contínuo constituir-se a si mesmo para legitimar sua humanidade, para encontrar a partir de si a livre participação numa realidade que não cessa de se construir. (YURKIEVICH, 1998, p. 13-14)

Dessa maneira, essas afinidades de Cortázar com o surrealismo e com o existencialismo, assim como sua tentativa de conjugá-los, além de permitirem uma contextualização histórica de Teoria do túnel, justificam a perspectiva adotada em

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sua análise, pois esta, fundamentalmente pautada numa reflexão de cunho existencialista a propósito das inquietantes questões em torno do homem, refaz o caminho de questionamento deste em sua relação com a realidade, aproximando o surrealismo ao aporte de elementos poéticos com vistas à superação da linguagem pela desestabilização das acomodações linguísticas existentes.

Delimitado o contexto de Teoria do túnel, pode-se adiantar desde já que o presente trabalho não se concentrará em torno do extenso apanhado histórico elaborado por meio da perspectiva proposta pelo escritor argentino, antes se deterá às reflexões trazidas em sua análise a respeito das relações entre linguagem e realidade.

Mais especificamente, se buscará estabelecer uma aproximação de algumas de suas ideias a alguns procedimentos observados na prosa de Roberto Bolaño que demonstram, por vezes, à maneira cortazariana, um caráter inconformista na medida em que dão testemunho de uma relação singular com a realidade por parte do autor, o que, consequentemente, também deslocará de maneiras diversas as relações entre texto e leitor e, finalmente, deste com a realidade.

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 54-57)