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A sugestão aqui apresentada é que além de expor tal guinada epistemológica Ginzburg parece, de certa forma, assumi-la para si. A questão-chave é efetuada pelo próprio Ginzburg, nas linhas finais do ensaio acima mencionado: ―Mas pode um paradigma indiciário ser rigoroso?‖ (GINZBURG, 1989, p. 178). A proposição da hipótese de pesquisa que, diga-se de passagem, praticamente moveu a vida de Ginzburg, contrariou a leitura tradicional dos processos de inquisição, já que, para o autor, mais do que um conflito coercitivo de ordem religiosa, a relação entre acusadores e réus configurava-se numa disputa de classes, afinal boa parte dos réus eram camponeses que haviam tido as propriedades tomadas. Mesmo quando, a partir dos anos 1970 e 1980, a feitiçaria deixou de ser ―um objeto de pesquisa marginal e bizarro‖

(GINZBURG, 2007, p. 299) e passou a receber atenção especial dos historiadores, Ginzburg recorda que o viés analítico ainda recaía sobre os perseguidores:

No decorrer dos anos 70 e 80, a feitiçaria tornou-se um tema historiográfico, pode-se dizer, na moda: mas o interesse dos historiadores, inclusive quando assumiu formas muito mais complexas do que no passado, continuou a se concentrar de maneira quase exclusiva na perseguição e nos seus mecanismos culturais e sociais.

As vítimas permaneceram sempre na sombra. (GINZBURG, 2007, p.

299)

Por hora, frisa-se a tendência, admitida pelo autor, em optar por temas pouco convencionais. Outro rápido exemplo poderia ser lembrado. No ensaio Ticiano, Ovídio e os códigos da figuração erótica no século XVI, também compilado em Mitos, emblemas e sinais, Ginzburg prova, contrariando até mesmo colegas pesquisadores que se dedicaram ao mesmo tema, que Ticiano não lia latim e, portanto, tomou conhecimento da obra Metamorfoses, de Ovídio, fonte inspiradora para uma série de pinturas, por meio de vulgarizações, reveladas serialmente por Ginzburg.

Na introdução de O fio e os rastros, Ginzburg refere-se a Brecht e lembra a conhecida noção benjaminiana de tomar a história a contrapelo. ―Ler os

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testemunhos históricos a contrapelo, como Walter Benjamin sugeria, contra as intenções de quem as produziu – embora, naturalmente, deva-se levar em conta essas intenções – significa supor que todo texto inclui elementos incontrolados‖ (GINZBURG, 2007, p. 11).

Retém-se, por ora, a nova alusão de Ginzburg a ―elementos incontrolados‖ do texto, que originam as aberturas para uma nova leitura. ―Ignorá-las [as intenções do autor] seria obviamente um absurdo, mas é claro que o autor não é necessariamente o intérprete mais adequado da sua obra‖ (p. 191). Em outra passagem, Ginzburg descreve uma anedota contada por um professor durante um seminário. De um lado, está um professor barbudo, afeito às irregularidades morfológicas e apreciador das anomalias e, de outro, um professor, herdeiro legítimo da tradição cartesiana, calvo, sedento por reduzir as variações dos fenômenos a regras fixas. Ginzburg diz que tem tendência a se posicionar ao lado do professor adepto das anomalias, embora acrescente que a relevância de tal anomalia só se justificaria se conectada a uma possibilidade de conhecimento mais ampla, desde que funcionasse como indício.

Que o conhecimento histórico implique a construção de séries documentais, é óbvio. Menos óbvia é a atitude que o historiador deve adotar em relação às anomalias que afloram na documentação. Furet propunha desconsiderá-las, observando que o ―hápax‖ (isto é, o que é documentalmente único) não é utilizável numa perspectiva de história serial. Mas, a rigor, o hápax não existe. Todo documento, inclusive o mais anômalo, pode ser inserido numa série. Não só isso: pode servir, se analisado adequadamente, a lançar luz sobre uma série documental mais ampla. (GINZBURG, 2007, p. 263)

A citação acima permite introduzir uma série de questões que perpassam o trabalho do crítico ou do historiador: a utilização de testemunhos figurativos como fontes históricas – que era, na opinião de Ginzburg, o motor propulsor do trabalho revolucionário de Warburg; a relação entre natureza e cultura; o elo entre memória, tempo e imagem; o conflito interminável entre ficção e história e a conjugação entre individual e geral, sintoma e totalidade. Questões que acompanham os ensaios de Ginzburg, direta ou indiretamente. Este último aspecto, o do paradigma indiciário, parece conter o ponto nevrálgico da problemática discutida neste trabalho.

Assim como o médico, que diante da inatingibilidade do corpo humano, sujeito ao imponderável, condiciona-se a conhecer a patologia por meio do sintoma, de uma pista deixada na superfície, da mesma forma o historiador parece condenado a conhecer o funcionamento social mais amplo (o indivíduo pode ser ―um grupo social ou uma sociedade inteira‖ (GINZBURG, 1989, p. 157) somente através do individual. Segundo Ginzburg, este método de conhecimento, que agrupa a medicina, a história e outras disciplinas, contrapõe o paradigma científico introduzido por Galileu no século XVII, que tendo como base a matemática e a experimentação, implica ―a

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quantificação e a repetibilidade dos fenômenos, enquanto a perspectiva individualizante excluía por definição a segunda, e admitia a primeira apenas em funções auxiliares‖ (p.

156). Assim, da mesma forma que o conhecimento médico, ―o conhecimento histórico é indireto, indiciário, conjetural‖ (p. 157). A questão a ser levantada, a partir de então, visa saber até que ponto o historiador admite o caráter conjetural e parcial de conhecimento do fenômeno histórico e desconsidera a pretensão abarcadora da ciência galileana.

Como já foi assinalado, o próprio Ginzburg pergunta-se até que ponto o paradigma indiciário pode ser rigoroso. Sobre essa questão, que envolve o conflito entre fragmento e totalidade, Ginzburg traça a dicotomia (a bifurcação) na qual se encontram os historiadores após a herança deixada pela ciência de Galileu.

Nesse ponto, abriam-se duas vias: ou sacrificar o conhecimento do elemento individual à generalização (mais ou menos rigorosa, mais ou menos formulável em linguagem matemática), ou procurar elaborar, talvez às apalpadelas, um paradigma diferente, fundado no conhecimento científico (mas de toda uma cientificidade por se definir) do individual. (GINZBURG, 1989, p. 162)

De um lado, a generalização sistemática e de alto valor científico, mas de consistência duvidosa, de outro, a individuação do objeto, a escolha pelo vestígio, a análise detida e demorada do sintoma que, ao mesmo tempo em que apresenta firmeza teórica, carece de validade científica pela ausência de potencial generalizante. A leitura deste pequeno trecho deixa claro que o paradigma indiciário introduzia outro método de conhecer que, sem exagero, implicava numa ruptura, senão total, ao menos significativa com a forma de fazer ciência tradicional, oriunda da física de Galileu. E qualquer rompimento, claro, é acompanhando de riscos, perigos, ameaças3.

Como exemplo desta mudança de paradigma, Ginzburg recorda o retorno do pensamento aforismático, de Nietzsche a Adorno, em decorrência do declínio do pensamento sistemático. ―A literatura aforismática é, por definição, uma tentativa de formular juízos sobre o homem e a sociedade a partir de sintomas, de indícios: um

3 José Emilio Burucúa, em Historia, arte, cultura: de Aby Warburg a Carlo Ginzburg, traça um panorama sobre o Instituto Warburg e seus prolongamentos, diz: ―Concluímos así, provisoriamente, que el método warburguiano posee más rasgos indiciarios que galileanos‖ (BURUCÚA, 2007, p. 131). Sobre Ginzburg, Burucúa elogia a capacidade do italiano de ―explicar de una manera nueva y más rica de detalles y argumentos, gracias al relato exhaustivo de un fenómeno individual o pequeño, los macroprocesos sociales de la historia colectiva‖ (p. 134).

Burucúa lembra que esse tipo de método exige distanciamento por parte do historiador, a fim de que este analise os fenômenos de modo objetivo e não sucumba aos encantos do texto e àquilo que é representado pelas imagens. Sobre esse assunto, diz Burucúa, a respeito de Ginzburg: ―A decir verdad, el proprio Ginzburg no ha quedado inmune a la fascinación, según lo prueba su Historia Nocturna, aunque no es momento de criticar los excesos ficcionales de Carlo por cuanto ahora nos convocan, más bien, el rigor de su trabajo de filología histórica y su capacidad para develar analogías, persistencias y miradas recíprocas entre hombres de tiempos y lugares muy distantes, allí donde ni siquiera nos animábamos a sospecharlas‖ (p. 138). Ver referência completa ao final.

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homem e uma sociedade que estão doentes, em crise‖ (GINZBURG, 1989, p. 178, ênfase no original). O pesquisador apoiado no paradigma indiciário aposta as fichas no menor, no passageiro, no volátil, mas que tira a sua potência política, a sua capacidade detonadora, justamente da sua condição aparentemente infinitesimal. Não por acaso, Ginzburg diferencia intuição alta e intuição baixa. De acordo com o crítico italiano, a segunda estaria ligada ao paradigma indiciário.

Essa ―intuição baixa‖ está arraigada nos sentidos (menos superando- os) – e enquanto tal não tem nada a ver com a intuição supra-sensível dos vários irracionalismos dos séculos XIX e XX. É difundida no mundo todo, sem limites geográficos, históricos, étnicos, sexuais ou de classes – e está, portanto, muito distante de qualquer forma de conhecimento superior, privilégio de poucos eleitos. É patrimônio dos bengaleses expropriados do seu saber por sir William Herschel, dos caçadores, dos marinheiros, das mulheres. Une estreitamente o animal homem às outras espécies animais. (GINZBURG, 1989, p. 179, ênfase no original)

A intuição baixa, derivada do paradigma indiciário, traz regras que

―não se prestam a ser formalizadas e nem ditas. Ninguém aprende o ofício de conhecedor ou de diagnosticador limitando-se a por em prática regras preexistentes‖

(GINZBURG, 1989, p. 179). Embora essa intuição baixa esteja arraigada aos sentidos, mas não deva superá-los a fim de que não se caia em irracionalismos, ela põe em jogo

―elementos imponderáveis: faro, golpe de vista, intuição‖ (p. 179).

A questão é investigar até que ponto sustenta-se a universalidade desta ferramenta de alcance democrático que Ginzburg nomeia intuição baixa. Embora no fim do ensaio Ginzburg aproxime o pesquisador moderno do caçador e até mesmo aponte a intuição baixa como fator unificador entre o homem e as outras espécies animais, páginas antes ele nos alerta que ―a distinção entre natureza (inanimada ou viva) e cultura é fundamental – certamente mais do que aquela, infinitamente mais superficial e mutável, entre as disciplinas individuais‖ (GINZBURG, 1989, p. 171). ―Uma coisa é analisar pegadas, astros, fezes (animais ou humanas), catarros, córneas, pulsações, campos de neve ou cinzas de cigarro; outra é analisar escritas, pinturas ou discursos‖ (p. 171).

Por um lado, afirmação do imponderável, elogio ao faro e ao golpe de vista; de outro, separação entre materiais relevantes e irrelevantes, distinção entre o que pode e o que não pode ser aproveitado pelo historiador, alusão ao poder dos sentidos acompanhado de pedido de cautela.

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Se as pretensões de conhecimento sistemático mostram-se cada vez mais como veleidades, nem por isso a ideia de totalidade deve ser abandonada. Pelo contrário: a existência de uma profunda conexão que explica os fenômenos superficiais é reforçada no próprio momento em que se afirma que um conhecimento direto de tal conexão não é possível. Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-la. (GINZBURG, 1989, p. 177)

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 131-135)