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GINZBURG, REVISITADO

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 138-143)

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Scripta Alumni - Uniandrade, n. 9, 2013.

Aos poucos, nota-se que a mudança de postura do historiador em relação ao conflito entre ficção e documento implica uma mudança radical da noção corrente de temporalidade. Essa mudança desloca o historiador da condição privilegiada de analisador dos acontecimentos sociais, exclui-o da possibilidade de, sob um ponto de vista superior e racional, domesticar os fenômenos, tomando os fatos históricos como dados objetivos. Especificamente sobre a noção de temporalidade, isso significa implodir a ideia cronológica da história. É isso que, em linhas gerais, para Didi-Huberman, traduz tomar a história a contrapelo. Se Ginzburg traduz o pressuposto benjaminiano sob uma perspectiva mais factual – a busca por documentos escondidos, a leitura de textos por um viés que contrarie a intenção do autor –, Didi-Huberman, em Ante el tiempo, vê na herança benjaminiana uma mudança revolucionária em relação à temporalidade histórica corrente, àquela que confia na sucessão linear dos acontecimentos. Assim, para Didi- Huberman, ―tomar la historia ‗a contrapelo‘ es ante todo invertir el punto de vista‖ (DIDI- HUBERMAN, 2006, p. 135, ênfase no original). Segundo o francês, é necessário entender

―de qué manera el pasado llega al historiador, y cómo llega a encontrarlo en su presente, en lo sucesivo entendido como presente reminiscente‖ (p. 135, ênfase no original). Deve- se, como foi dito, ―pasar del punto de vista del pasado como hecho objetivo al del pasado como hecho de memoria, es decir, como hecho en movimiento, hecho psíquico tanto como material‖ (p. 137, ênfase no original). Fato em movimento, fato em processo, mas, igualmente, historiador em movimento, historiador em processo. Considerar que os fatos históricos não são objetivos significa, da mesma forma, desconsiderar o historiador enquanto conhecedor estático. É isso que, em Didi-Huberman, significa introduzir elementos como a memória e a imaginação quando se aborda o método de conhecimento histórico. Memória aqui entendida não como armazém organizado do ocorrido, algo como um centro de achados e perdidos onde se pudesse localizar o que se perdeu – ou o que se quisesse resgatar –, mas memória entendida segundo o que ela carrega de acidental, de falho. ―(…) las dificultades esenciales de la ciencia histórica no le vienen solamente del alejamiento del pasado o de las lagunas de la documentación, sino de un inconsciente del tiempo, un principio dinámico de la memoria de la cual el historiador debe hacerse a la vez el receptor – el soñador – y el intérprete‖ (p. 137, ênfase no original).

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levaria a assumir a voz dos réus nos processos de inquisição. ―Creio adivinhar hoje um emaranhado de memórias e experiências infantis misturadas confusamente com paixões e preconceitos muito mais recentes‖ (GINZBURG, 2007, p. 296). O olhar retrospectivo de Ginzburg sobre suas origens acadêmicas permite tecer comparações com alguns dos pressupostos assumidos por Didi-Huberman quando este fala sobre Brecht e Benjamin.

Comecemos pelo sentimento que Ginzburg experimenta de ―euforia da ignorância‖ (p.

296) quando, sem saber nada sobre a feitiçaria, toma a iniciativa que lhe é corriqueira ao abordar um tema sobre o qual não sabe nada: procurar o verbete no dicionário.

Talvez pela primeira vez eu experimentava de fato o que chamaria de

―euforia de ignorância‖: a sensação de não saber nada e de estar a ponto de começar a aprender alguma coisa. Creio que o intenso prazer associado a esse momento contribuiu para impedir que eu me tornasse um especialista, que aprofundasse um campo bem delimitado de estudos. O impulso para enfrentar periodicamente temas e setores de pesquisa que ignoro completamente não se só conservou como se acentuou com o passar dos anos. (GINZBURG, 2007, p. 296, ênfase no original)

Neste trecho, a palavra ignorância assume outra conotação. Não significa a exaltação da falta de conhecimento sobre o tema, mas descreve o prazer experimentado por alguém que se depara com o objeto de pesquisa pela primeira vez.

Segundo o próprio Ginzburg, tal premissa levou-o a não se tornar especialista de nenhum campo delimitado de estudo, o que demonstra, por parte do historiador, a vontade de estar em permanente contato com o desconhecido, de se aventurar por espaços ainda não dominados, de enfrentar novos problemas. Em resumo, esse sentimento de ―euforia da ignorância‖ traduz um movimento de permanente abertura.

Compara-se, agora, a ―euforia da ignorância‖ de Ginzburg com o que Didi-Huberman fala a respeito da ingenuidade.

La ingenuidad por lo tanto no tiene nada que ver con la simplificación idiota de todas las cosas. Es, más bien, una apertura particularmente confiada hacia la voluptuosa complejidad – relaciones, ramificaciones, contradicciones, contactos – del mundo circundante. Es el gesto de aceptar interrogativamente esta complejidad. Es el placer de querer jugar con ella. En este sentido, la ingenuidad es tan creadora como receptora. El que inventa algo, afirma Brecht, siempre se vuelve sensual: ―La invención te vuelve enamorado‖ (Erfindung macht verliebt). Y en cuanto al amor, te vuelve – deliciosamente – ingenuo.

Lo cual no quiere decir estúpido, ni ignorante incluso. Ya que el sabio, el pensador o el artista, capaces de jugar trabajando, creando,

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capaces de reencontrar el gesto de aprender, de abrirse de nuevo constantemente al placer de la Fibel, hacen, con la invención o el descubrimiento, un uso fecundo, poderoso, de la ingenuidad. (DIDI- HUBERMAN, 2008, p. 263, ênfase no original)

Mais adiante, depois de contar o que inicialmente o levou até a feitiçaria e os processos da inquisição, Ginzburg relata como chegou ao processo do jovem pastor de gado Menichino della Nota. O estudo sobre esse processo foi o mote para a escritura de Os andarilhos do bem, outra obra de Ginzburg amplamente conhecida e traduzida em vários idiomas. Ginzburg recorda que foi vasculhar no Arquivo de Estado, de Veneza, onde se encontram ―mais de 150 grossos envelopes repletos de interrogatórios e de processos, que cobrem um período de dois séculos e meio‖

(GINZBURG, 2007, p. 302). Diante de um arquivo tão vasto, Ginzburg não procedeu de maneira pensada, estabelecendo critérios ou prioridades, traçando escalas sistemáticas de pesquisa a fim de tomar nota da maior parte possível do material. Ao contrário, o gesto de Ginzburg frente à imensidão do material foi o do jogador.

Como eu não sabia, literalmente, o que estava procurando, fazia pedidos ao acaso – sei lá, envelopes número 8, 15 e 37 – e punha-me a folhear as páginas dos processos. Parecia-me estar jogando uma espécie de roleta veneziana. Realço esses detalhes triviais porque eles me possibilitam realçar a absoluta casualidade da descoberta: o interrogatório, realizado em 1591, de um jovem pastor de gato de Latisana, um pequeno centro não muito distante de Veneza.

(GINZBURG, 2007, p. 302)

No meio de mais de 150 envelopes, cada um deles contendo uma infinidade de processos e interrogatórios, Ginzburg encontrou – reconheceu, quase como um amor à primeira vista – o documento a partir do qual escreveria uma das obras mais importantes da sua vida. Achado que é resultado do gesto de jogador de Ginzburg, que diante da infinidade de prateleiras, todas elas repletas de documentos, as mesmas pelas quais ele fumava um cigarro atrás do outro, brinca de puxar envelopes aleatoriamente, movimento que compara ao de uma roleta veneziana. Atrás de uma escolha decisiva para as pretensões teóricas de Ginzburg escondiam-se, unidos, jogo e acaso. Didi- Huberman, em Ante el tiempo, lembra que por trás da aparência desesperada os textos de Benjamin e a literatura de Kafka mantém ―un aspecto literalmente festivo en esta escritura y en este pensamento‖ (DIDI-HUBERMAN, 2006, p. 133, ênfase no original).

El que rompe el rosário, el que hace ―estallar el continuo de la historia‖

se muestra sostenido, de un extremo al outro de su obra, por la

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energia infantil de alguien que, sin embargo, hace de la historia, por ende del pasado, el objeto y el elemento de todo su trabajo. A aquello que Peter Szondi llamó muy bien la ―esperanza en el pasado‖ en Benjamin, podría dársele también el caráter de un juego – perturbador – con la memoria. Un juego. Es decir una serie rítmica de movimientos, de saltos, como los desplazamientos de piezas sobre el tablero o como la danza del niño que juega a la rayuela. Pues en ese juego se construye un auténtico conocimiento. (DIDI-HUBERMAN, 2006, p. 134, ênfase no original)

CONCLUSÃO

Na obra Sobrevivência dos vagalumes, de modo mais específico, Didi- Huberman trata de objeto aparentemente singelo, os vagalumes, ou, para ser mais preciso, o seu desaparecimento. Os vagalumes, claro, assumem o peso da metáfora que representaria os focos de resistência que, na visão de Didi-Huberman, devem ser levantados sempre que possível, ainda que os holofotes dos reinos imperialistas pareçam ofuscar qualquer reação. De qualquer forma, os vagalumes também são tomados na condição poética de simples insetos, construindo, por vezes, o que Didi-Huberman chama de ―imagem poético-biológica‖ (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 28), seja quando ele fala do modo de acasalamento dos vagalumes ou quando informa que são necessários cinco mil vagalumes para que se produza a luz equivalente a de uma vela4. Sobre a imagem dos vagalumes, Didi-Huberman reforça que, por trás deste exemplo inofensivo, exibe-se a potência política do imaginar. ―Afirmar isso a partir do minúsculo exemplo dos vagalumes é afirmar que em nosso modo de imaginar jaz fundamentalmente uma condição para nosso modo de fazer política. A imaginação é política, eis o que precisa ser levado em consideração‖ (p. 60, ênfase no original).

No caso de Ginzburg, segundo pode-se avançar no presente trabalho, a configuração desta imagem, que traduz os resultados obtidos por esse conhecimento histórico que conflita ficção e história, paradigma indiciário e generalidade, resume-se ao jogo entre micro e macro-história. O próprio Ginzburg aproxima, principalmente a partir de referências a Kracauer e a Proust, o método de pesquisa do historiador aos instrumentos modernos das técnicas de registro de imagem, em especial ao cinema e à fotografia.

4 Analogias interessantes com o texto de Ginzburg também poderiam ser feitas, principalmente no que se refere a essas imagens poético-biológicas ou a essa recorrência ao caráter antropológico no desenvolvimento das questões. É o caso, por exemplo, quando Ginzburg remete a origem do paradigma indiciário ao homem-caçador, que perscrutava as pistas deixadas pela presa na intenção de caçá-la. Ou quando, ao falar sobre a relação do homem com o alto e o baixo, lembra da infância demorada do ser humano, que coloca o adulto na posição de autoridade. Isso, porém, demandaria tempo e pode ser objeto de trabalho à parte.

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Citando também Kracauer, Didi-Huberman alerta que não basta apenas reconhecer o valor documental da fotografia que tomou conta da época moderna – assim como não basta para nós, hoje, apenas reconhecer que as imagens midiáticas tomaram conta das comunicações sociais modernas –, mas é necessário ―afrontar la cuestión, estilística e política, de comprender qué palabra sabrá responder a la nueva visibilidad de los acontecimientos históricos‖ (DIDI-HUBERMAN, 2008, p. 210).

Por fim, conclui-se que esse trabalho não procurou igualar os pressupostos teóricos dos críticos analisados, muito menos isolá-los em blocos separados, colocando, de um lado, o suposto convencionalismo e o pé atrás de Ginzburg quanto ao pós-moderno e, de outro, as potencialidades artísticas e teóricas da operação de montagem que Didi-Huberman apresenta a partir de Brecht e Benjamin. Ao contrário, buscou-se apontar, tomando Ginzburg como exemplo, as indefinições que perpassam o trabalho do crítico. Como se viu, Ginzburg parece operar ora de uma forma, ora de outra.

Ainda assim, é possível afirmar que questões semelhantes atravessam o trabalho de todos os teóricos citados neste trabalho. Questões que, não por acaso, seguem vigentes e sem resposta definitiva.

REFERÊNCIAS

BURUCÚA, J. E. Historia, arte, cultura: de Aby Warburg a Carlo Ginzburg. Buenos Aires:

Fondo de Cultura Económica, 2007.

DIDI-HUBERMAN, G. Cuando las imágenes toman posición. Tradução de Inés Bértolo.

Madrid: A. Machado Libros, 2008.

_____. Ante el tiempo. Tradução de Oscar Antonio Oviedo Funes. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2006.

_____. Sobrevivências dos vaga-lumes. Tradução de Véra Casa Nova e Márcia Arbex.

Belo Horizonte: UFMG, 2011.

GINZBURG, C. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. Tradução de Rosa Freire d‘Aguiar e Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

_____. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. Tradução de Federico Carotti.

São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

RANCIÈRE, J. A partilha do sensível: estética e política. Tradução de Mônica Costa Netto.

São Paulo: EXO; 34, 2009.

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MARÉ, NOSSA HISTÓRIA DE AMOR (2007) – UM DIÁLOGO

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