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OS COMEÇOS, O QUARTO

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 36-40)

A personagem inicia seu relato na tentativa de uma ordenação.

Procura reconstruir um antes e um depois de sua experiência. Seja tentando reconduzir a que foi levada, seja procurando saber quem ela era, G. H. busca uma organização anterior, como se houvesse um meio de voltar a ser a forma que era antes de perdê-la. É uma tentativa de voltar ao começo, de não ficar numa profunda desorganização de que quem mal começa a se desarraigar, já querendo voltar para uma organização anterior dos sentidos, da orientação dos gostos e dos sentimentos.

— — — — — — estou procurando, estou procurando.

Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não saber como viver, vivi outra? A isso quereria chamar de desorganização e teria segurança de me aventurar, porque saberia depois para onde voltar: para a desorganização anterior. A isso prefiro chamar de desorganização, pois não quero me confirmar no que vivi – na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o tinha, e sei que não tenho capacidade para outro. (LISPECTOR, 1998, p. 11)

Uma organização da vida humana para ter para onde voltar é o que se torna impossível para G. H. É impossível voltar ao começo de uma experiência que se fez lentamente. Desde o olhar sobre seus retratos, ela via o mistério, o inexpressivo, o silêncio de um lago. Ela parte de um começo que já teve início, um começo já começado.

Um começo que só é possível porque ele já se iniciou desde sempre, de onde não é possível resgatar uma origem.

A alusão a este começo já iniciado está na abertura do texto, antes mesmo que os significantes se ordenem em frases e uma frase anuncie o texto. Os seis travessões sucessivos apontam para este começo, em que não há possibilidade de dizer

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onde começou. Seis travessões finalizam o texto sem fim. O texto prossegue e não termina. A frase final de cada capítulo é o começo do capítulo seguinte. Para cada final, um novo começo, mas não de voltar ao começo do texto, da experiência e de tudo o que deixou de ser G. H. Na própria estrutura do texto, a forma em que o texto se organiza no produto final do livro, é possível perceber esta questão dos começos e da linguagem.

Então, se faz necessário partir da reflexão de Peter Sloterdijk sobre começos da linguagem em nossas vidas.

As questões do começo e do começar desde o princípio que notamos neste texto clariceano são discutidas pelo filósofo alemão Peter Sloterdijk em uma de suas lições de Frankfurt intitulada A poética do começar. Um começo tão impossível de se alcançar que ficamos sempre movidos por esta impossibilidade de um começo: ―El comiezo es cosa extraña. Si no reflexiono sobre ello, sé lo que es comezar, pero si pienso en ello, entonces ya no lo sé‖ (SLOTERDIJK, 2006, p. 35).

O filósofo toma como ponto de partida de sua reflexão a metáfora do Livro da arena, de Jorge Luis Borges. Um livro infinito, impossível de abrir na primeira página sem que folhas e mais folhas brotem entre a capa e a suposta primeira página,

―porque ni el libro ni la arena tiene ni principio ni fin‖ (SLOTERDIJK, 2006, p. 36). Ainda que saibamos o quanto a vida é finita, marcada pelo nascimento e pela morte, nos é impossível voltarmos ao começo, desde o princípio de nossa história. Nossa história começa com uma ausência de nós mesmos e a nossa ausência de recordação. Não estávamos lá no dia do nosso nascimento para registrar com palavras aquele momento.

E, se tentamos procurar por um começo é aquele que já foi começado. Neste carater de impossibilidade de voltar ao começo desde o princípio, temos a possibilidade de saber que já temos começado e que sempre podemos começar novamente. ―No seríamos por tanto los agentes de nuestro próprio comienzo, pero tampoco únicamente víctimas pasivas o agentes de una fundación extraña, sino algo así como medios cuyo modo de ser se puede definir como un poder-comezar-ya-comezado‖ (p. 45, ênfase no original).

Ainda que a metáfora do Livro da arena explore o início de nossas vidas e de nossas histórias, ela também se relaciona com metáfora infinita do começo do ser e da linguagem. O começo do ser não se une ao princípio da linguagem, o que nos impossibilita de voltar ao início. A linguagem pré-existe ao ser quando ele ainda não era tomado pela palavra, quando ainda não era um sujeito capaz de falar. A linguagem é este começo desde o princípio e o ser que tenta voltar ao começo acaba por se dar conta que o seu começo é uma ausência de palavras.

Si nuestra vida fuera un libro finito normal, lo que quedaria de ella, entre la encuardenacíon delantera y el lugar en el que nosotros empezamos a hablar por nosotros mismos, sería, exactamente como em el monstruoso libro de Borges, un montón de páginas imposibles de abrise. Esto no significa otra cosa que para el hombre, en cuanto ser finito que habla, el comiezo del ser y el comiezo del lenguaje no

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van de la mano bajo ninguna circunstancia. Pues cuando comieza el lenguaje, el ser ya está ahí presente; y cuando se quiere empezar com el ser, uno se hunde en el agujero negro de la ausencia de palavra.

(SLOTERDIJK, 2006, p. 41)

Voltar ao começo é o que G. H. não consegue fazer, mas ela busca começar de novo, começar de outra forma de quando se pôs em relação ao mundo. O começar de novo de G. H. é perceber a linguagem de outra maneira, diferente da forma de como a sua humanidade aderiu às palavras uma questão utilitária de designações, sentidos e certezas. A transição que faz a personagem do apartamento para o quarto da empregada aponta para este caráter de começar de novo o seu encontro com a linguagem.

Porém, antes desta transição singular, G. H. atardava à mesa do café, no sentimento de pertencimento de sua casa. Os cômodos de seu apartamento refletiam sua organização: os aposentos precediam e prometiam os outros, sem perder a orientação para onde se vai e de onde se vem. Nenhuma mudança de cômodo era bruscamente feita: a casa era uma citação entre aspas de G. H., onde cada penumbra, cada luz refletia uma ordem sem que se perdesse, sem que se ficasse errante. Cada detalhe tinha um lugar e um sentido como uma réplica elegante, uma criação artística como ela dizia.

Como eu, o apartamento tem penumbras e luzes úmidas, nada aqui é brusco: um aposento precede e promete o outro. Da minha sala de jantar eu via as misturas de sombras que preludiavam o living. Tudo aqui é réplica elegante, irônica e espirituosa de uma vida que nunca existiu em parte alguma: minha casa é uma criação apenas artística.

(LISPECTOR, 1998, p. 30, ênfase no original)

Ela estava sozinha. A empregada se despedira no dia anterior. O último envolvimento amoroso tinha se desfeito amistosamente. Ela decide arrumar a casa a começar pelo quarto da empregada, o bas fond do apartamento. Arrumar é dar sentido e entendimento através da ordem e da forma. Pensava que encontraria o quarto escuro e mofado e ela traria a organização, abrindo a janela, lavando o chão. Porém, entra em choque ao perceber que o quarto estava limpo e não era mais um depósito.

Este contava com um guarda-roupa, uma cama e três malas, nas quais as iniciais de G.

H. eram um acúmulo sedimentado de poeira. O quarto era de uma brancura estonteante.

Os ângulos mais abertos que o comum davam a impressão de que o quarto não pertencia ao prédio, nem ao apartamento. O quarto-minarete era o oposto da casa. A casa era a face dos sentidos atribuídos, da organização humana.

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O quarto divergia tanto do resto do apartamento que para entrar nele era como se eu antes tivesse saído de minha casa e batido a porta. O quarto era o oposto do que eu criara em minha casa, o oposto da suave beleza que resultara de meu talento de arrumar, de meu talento de viver, o oposto de minha ironia serena, de minha doce e isenta ironia: era uma violação das minhas aspas, das aspas que faziam de mim uma citação de mim. O quarto era o retrato de um estômago vazio. (LISPECTOR, 1998, p. 42)

Tão indelimitado e tão nu era o quarto assim como a linguagem: sem começo nem fim como nos faz pensar Sloterdijk. ―O quarto não tinha um ponto que se pudesse chamar de seu começo, nem um ponto que pudesse ser considerado o fim. Era de um igual que o tornava indelimitado‖ (LISPECTOR, 1998, p. 45).

O que desconcerta G. H. era que o quarto refletia uma condição da linguagem. Neste estranhamento de não pertencer ao quarto, do quarto não fazer parte de sua casa, não fazer parte do prédio, não fazer parte de uma construção humana que habita para se sentir confortável e protegida. O quarto era sem começo nem fim e mesmo entrando nele se fica do lado de fora. A assim como a linguagem em que não conseguimos apreendê-la, não conseguimos cristalizá-la de sentidos. Terá sempre algo em nossas palavras que escapa, que não é possível ser detentor do sentido que se fala.

Nesta questão da retórica do silêncio em Clarice Lispector, Waldman retoma o não- sentido que escapa às palavras. ―A palavra não alcança o dizer por que a palavra repousa sobre uma lacuna que oculta um vazio branco do qual, entretanto, ela depende‖

(WALDMAN, 1998, p. 286).

Tirando toda a construção humana dos sentidos e da utilidade designadora que damos às palavras ao abandonar os costumes, os hábitos que adquirimos para viver na construção humana que é a civilização, chegamos a esse quarto nu que, de tanta brancura, nos sentimos fora do lugar. Através deste quarto esbarramos no exílio de nossa linguagem. Ao pensar a relação do exílio com a escritura, Franco Rella nos faz pensar neste outro lugar, neste outro mundo que reflete o vazio da linguagem.

―Podemos pensar que, al menos em algunos casos, la desnudez extrema de la escritura conduce verdadeiramente a la vidência de otro mundo, sin que debamos concluir que el descubrimiento de este otro mundo es el descubrimiento de la nada?‖ (RELLA, 2010, p.

15).

Assim fica G. H. de frente ao nada, ao mudo, ao inexpressivo, diante de uma janela solta, três malas, um armário e uma barata. ―É que apesar de já ter entrado no quarto, eu parecia ter entrado em nada. Mesmo dentro dele, eu continuava de algum modo do lado de fora. Como se ele não estivesse bastante profundidade para me caber e deixasse pedaços meus no corredor, na maior repulsão de que já fora vítima:

eu não cabia‖ (LISPECTOR, 1998, p. 45).

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E como se não bastasse, ao abrir o armário, G. H. encontra uma barata velha. De onde sobrevêm os resquícios da humanidade, o nojo e a repulsa.

Também se pode pensar este encontro com a barata com o imemorial, que existe há tempos. É uma mistura de antigo e de atual na barata que precede o humano nos inícios do mundo tal qual a linguagem nos separa do início de nossa chegada ao mundo, nos antecede, existindo antes mesmo de nosso nascimento como foi citado anteriormente por Sloterdijk. É assim que a linguagem nos atravessa, mesmo em silêncio, mesmo no indizível.

O que sempre me repugnara em baratas é que elas eram obsoletas e no entanto atuais. Saber que elas já estavam na terra, e iguais a hoje, antes mesmo que tivessem aparecido os primeiros dinossauros, saber que o primeiro homem surgido já as havia encontrado proliferadas e se arrastando vivas, saber que elas haviam testemunhado a formação das grandes jazidas de petróleo e carvão no mundo, e lá estavam durante o grande avanço e depois durante o grande recuo das geleiras – a resistência pacífica. (LISPECTOR, 1998, p. 48)

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 36-40)