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O IMAGINÁRIO MIDIÁTICO NOS CONTOS DE ANDRÉ SANT’ANNA

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 178-184)

Pertencente ao grupo Geração 906, André Sant‘Anna é autor de Amor (1998), Sexo (1999), Amor e outras histórias (2001) e O paraíso é bem bacana (2006).

Considerando-se mais músico do que escritor, Sant‘Anna produz uma literatura sem preciosismos ou experimentalismos, munida de uma linguagem coloquial e firmada no imaginário midiático.

Ao afirmar, na nota de abertura de seu livro Amor e outras histórias, que ―literatura é um negócio muito chato de fazer.(...). Então decidi escrever como se fizesse música, sem esquentar demais a cabeça‖ (SANT‘ANNA, 2001, p. 9-10), o autor supostamente manifesta, de maneira descontraída, uma intenção em fazer uma literatura mais espontânea, sem muito esmero formal. Falaciosa ou não, tal assertiva parece justificar não só a coloquialidade de sua escrita, como também o uso dos gêneros e elementos da cultura da mídia, utilizados num intenso jogo verbal de redundâncias perifrástiscas, imagens e ícones dos mass media, que povoam o cotidiano e a mente dos seus personagens. Ao utilizar o conto como narrativa preferencial, Sant‘Anna assume um estilo muito próprio de narrar, uma vez que as histórias e personagens não passam de figurações estereotipadas da cultura da mídia, de sua consequente influência sobre o cotidiano, definindo as identidades, orientando os processos de comunicação e as divisões classistas e grupais. Em Sexo, por exemplo, os personagens são descritos a partir dos produtos e marcas que usam, assumindo papéis-clichês que simulam uma espécie de mecanização das performances no cotidiano:

As caixas de som, no teto do elevador, emitiam a música de Ray Coniff.

O negro, diante da porta pantográfica, fedia. A gorda, que pisava no calcanhar do negro, fedia. O negro fedia a suor. A gorda fedia a perfume Avon. O ascensorista, de bigode, cochilava. O Executivo de Óculos Ray-Ban conversava com O Executivo De Gravata Vinho Com Listras Diagonais Alaranjadas. Os dois executivos eram brancos. A Gorda Com Cheiro De Perfume Avon era branca.

6 Grupo de escritores que se firmou a partir das antologias Geração 90: manuscritos de computador (2001) e Geração 90: os transgressores (2003), organizadas por Nelson de Oliveira, cujo projeto era reunir os ―melhores contistas da década de 1990‖ (OLIVEIRA, 2001, p 17).

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O Executivo de Óculos Ray-Ban falou para o Executivo De Gravata Vinho Com Listras Diagonais Alaranjadas:

- O hotelzinho era o the best. Não deixe de passar alguns dias na Normandia quando você for à França outra vez.

No quarto andar, a Secretária Loura, Bronzeada Pelo Sol, entrou no elevador. O Executivo De Gravata Vinho Com Listras Diagonais Alaranjadas olhou para a bunda da Secretária Loura, Bronzeada Pelo Sol. (SANT‘ANNA, 1999, p. 7)

A aglomeração fortuita de pessoas em um elevador não é descrita como lugar de interação humana, mas sim como a execução de roteiros prescritos a partir das marcas e dos produtos que caracterizam os tipos humanos (―Óculos Ray-Ban‖,

―Perfume Avon‖, ―Gravata vinho com listras diagonais alaranjadas‖). Assim, torna-se óbvio que os Executivos queiram fazer sexo com a Secretária loura, Bronzeada pelo sol, e não com a Gorda com cheiro de perfume Avon, inferiorizada em sua condição de consumidora de produto barato. Torna-se óbvio que os Executivos conversem sobre viagens internacionais, ao passo que o Negro, sem qualquer caracterização enquanto consumidor, seja visto como um elemento insuportável, incapaz de oferecer uma imagem social plausível, despertando a repulsa e o vilipêndio nos demais. Desse modo, só resta ao ascensorista cochilar, uma vez que parece estar entediado por presenciar situações como esta, nas quais os comportamentos já se encontram condicionados a roteiros de atuação, sem espaço para improvisos. Em seu ensaio Violência e miséria simbólica na cidade de André Sant’Anna, Ângela Maria Dias conclui que:

(...) na cidade de André Sant‘Anna, os vetores implicados na malha constitutiva das perífrases de nomeação – o padrão racial e a posição de classe – constituem os critérios de segmentação do universo de seus respectivos personagens. Assim, o perfil assumido pelos ícones do mercado, não diretamente referidos ao poder aquisitivo – a droga e o sexo –, variará na mesma proporção em que o exercício de escolhas singulares se encontra sempre mais submetido à respectiva inserção social do personagem. (DIAS, 2001, p. 77)

Portanto, a literatura de Sant‘Anna está imbuída de um determinismo midiático-tecnológico na medida em que descreve, dentro do espaço urbano, as performances dos personagens como meras realizações de modelos e padrões impostos pela indústria cultural e pelo mercado. Logo, o enredo constitui-se a partir de simulações, aproximando-se da teoria de Jean Baudrillard, quando comenta sobre a precessão dos simulacros no mundo contemporâneo:

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A simulação caracteriza-se por uma precessão do modelo, de todos os modelos sobre o mínimo facto – os modelos já existem antes, a sua circulação, orbital como a bomba, constitui o verdadeiro campo magnético do acontecimento. Os factos já não têm trajetória própria, nascem na intersecção dos modelos, um único facto pode ser engendrado por todos os modelos ao mesmo tempo. (BAUDRILLARD, 1991, p. 26)

Nessa complexa rede de simulações (o ―hiper-real‖), em que os papéis são distribuídos pela indústria cultural, sobretudo a publicidade e seus níveis de consumo atuando ubiquamente nos veículos midiáticos, nota-se que André Sant‘Anna procura não só descrever este determinismo midiático-tecnológico, mas salienta com certa sutileza o drama humano de ser obrigado a assumir para si determinados moldes identitários:

A Adolescente Meio Hippie sentia muito nojo das revistas de sexo expostas na O Vendedor da banca de revistas, em frente ao shopping center. A Adolescente Meio Hippie ficaria decepcionada se descobrisse que O Adolescente Meio Hippie comprava a revista Playboy e a revista Ele & Ela mensalmente. Para A Adolescente Meio Hippie, a revista Playboy e a revista Ele & Ela eram "coisa de adolescente". O Adolescente Meio Hippie também achava que a revista Playboy e a revista Ele & Ela eram "coisa de adolescente". Por isso O Adolescente Meio Hippie ficava ligeiramente envergonhado quando comprava a revista Playboy e a revista Ele & Ela. No entanto, O Adolescente Meio Hippie comprava a revista Playboy e a revista Ele & Ela assim mesmo.

(SANT‘ANNA, 1999, p. 08)

Desse modo, temos em sua literatura uma espécie de fluxo discursivo que ―materializa o infantilismo das mentalidades heterodirigidas pela ditadura da indústria cultural, em sua banalidade e estereotipia normativa‖ (DIAS, 2001, p. 81). Nessa perspectiva, as celebridades e personagens do universo midiático são evocadas enquanto projeções identitárias que, além de espelharem os modelos da indústria cultural, refletem também o drama de consciência dos expectadores (suas aflições, dúvidas e desejos), o drama daqueles que têm por referencial as produções televisivas – ―A sociedade vive em estado de televisão‖ (SARLO, 1997, p. 81) – e suas variações dentro do cenário das mídias. É o que podemos ver, por exemplo, no seguinte trecho de Amor, conto do livro Amor e outras histórias:

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(...) aquela música do Roberto Carlos que conta a história do cabeludo que foi abandonado pela namorada e acha que qualquer coisa vai fazer com que a namorada se lembre dele. É bem provável que a namorada do cabeludo nunca se lembre de nada e fique por aí namorando e abandonando cabeludos. Por mais que o cabeludo fale que a culpa é dela, nada vai fazer com que ela se lembre dele. Mas o cabeludo precisa de um consolo e, por isso, ele fica se lembrando da namorada, achando que ela vai se lembrar dele. É a história de todas essas músicas sobre homens e mulheres. Elas são muito bonitas.

(SANT‘ANNA, 2001, p. 34)

Ao citar referências midiáticas que estão arraigadas na cultura brasileira (Roberto Carlos e a canção Detalhes), o narrador-personagem, de alguma maneira, projeta sua própria desilusão e, ao mesmo tempo, seu sentimentalismo, assumidos no momento catártico. Assim, o leitor deve permanecer atento para esta dimensão subliminar do texto, pois, ―o vocabulário é intencionalmente pobre, as frases, intencionalmente lineares, os personagens, rasos, as expressões, semelhantes às das vozes que, cotidiana e televisivamente, martelam nossos ouvidos‖ (LIMA, 2000). Assim, repleta de vozes que estão investidas de alienação política, vídeo-pornografia, preconceitos, apelos publicitários, deslumbramento infantilóide frente às produções da indústria cultural, a literatura de André Sant‘Anna elabora um intenso pastiche do imaginário midiático e de seus conseqüentes moldes identitários, desnaturalizando o cotidiano, na medida em que simula naturalizá-lo ingenuamente. Nesse sentido, sua literatura se aproxima da constatação de Denilson Lopes quando afirma:

A recuperação estética na atualidade passa menos pelo elogio monumentalizador das (neo)vanguardas do que pela aproximação da arte a uma vida cotidiana, marcada pelas imagens midiáticas, fundamentais para entender a cultura contemporânea não só ao se falar das condições de produção e recepção, mas na análise do que antes chamávamos mensagem, produto, obra. (LOPES, 2007, p. 23)

CONCLUSÃO

Por fim, vale dizer que André Sant‘Anna, assim como vários outros autores contemporâneos, insere-se, com sua literatura, nas novas discussões travadas pela crítica literária atual, na medida em que ultrapassa o arcaico conceito de ―alta

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literatura‖, aproximando-se dos gêneros ―espúrios‖ da indústria cultural, estreitando novas relações com os códigos e ícones massivos. Desse modo, assumi-se o imaginário midiático como laboratório imprescindível para que a literatura possa compreender dores, angústias, medos, aspirações, alegrias, enfim, todos os sentimentos pulsantes do homem comum, oprimido pelos modelos de publicidade e consumo que lhe são impostos e atordoado pelos megabytes de informação.

REFERÊNCIAS

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A REVELAÇÃO DA VERDADE POR MEIO DE UMA VISÃO

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