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O EFEITO CHISTOSO NO CONTO OS INFELIZES CÁLCULOS DA FELICIDADE, DE MIA COUTO

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 50-54)

Figura 1: Capa da edição brasileira, editada pela Companhia das Letras (2012), de Estórias abensonhadas (1994), coleção de contos dentre os quais estão Os infelizes cálculos da felicidade.

Disponível em: <http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=13294>.

Em Os infelizes cálculos da felicidade, o protagonista, o matemático Júlio Novesfora, se acha em uma crise amorosa ao se apaixonar pela primeira vez, depois de uma vida de ceticismo quanto ao amor. Porém, seu problema é ter se apaixonado por uma adolescente. Alguns amigos chegam a advertí-lo sobre o perigo dessa relação; mas, Júlio Novesfora se diz incapaz de resolver esse ―problema do coração‖. Seu tio, chamado para dar-lhe conselhos, tenta convencê-lo do erro de sua conduta, reprovando o comportamento do sobrinho. Ao fazer isso, o tio de Júlio Novesfora utiliza uma expressão inusitada: ―Cautela, sobrinho, olho por olho, dente prudente‖ (COUTO, 2012, p. 96). É este o improvérbio desse conto de Mia Couto.

No que respeita à forma, esse improvérbio cumpre um dos pressupostos formais do chiste, o da substituição de parte de palavras ou de palavras inteiras, baseado na proximidade sonora entre as expressões envolvidas (no caso, substituição de ―por dente‖ por ―prudente‖). Outros aspectos que fazem desse improvérbio um fenômeno chistoso são a sua brevidade e sua condição de ser, tal como o chiste, um fenômeno, essencialmente, de linguagem.

O improvérbio e o chiste também passam pelos mesmos processos de formação. Para se compreender esse improvérbio (―olho por olho, dente prudente‖), é imprescindível o conhecimento da língua em que ele foi escrito (a língua portuguesa).

Além disso, assim como no chiste, há a manifestação da inteligência no processo de

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criação desse improvérbio, pelo astuto jogo com as letras e os sons que fazem parte da expressão ―dente por dente‖ (―por dente‖, ―prudente‖). Há, ainda, a intenção ―hostil‖;

porém, velada do emissor ao comportamento de Júlio Novesfora. Para escapar de tensões psiquicas e sociais, o emissor disfarça a mensagem hostil para que a agessão possa ser socialmente assimilável e desprovida de emoções desagradáveis. Por fim, como no chiste, o único elemento sujeito ao riso do improvérbio é o leitor-receptor.

O improvérbio consiste em um fenômeno mestiço de prosa e poesia e mestiço do oral e do escrito, criado através de processos substitucionais de palavras e ideias. É composto de um provérbio; de uma substituição ou inversão de sons (rimas e ritmos) e de ideias e, por fim, de uma intenção hostil, velada através do riso, a um objeto ao qual venha a ser dirigido.

Essa mudança de ideias e palavras deturpa a memória oral da língua portuguesa ao mesmo tempo em que a ―hostiliza‖, veladamente, através do riso. Há, portanto, um caráter rebelde no improvérbio, uma vez que ele subverte a cultura do provérbio original. O quadro a seguir oferece uma visualização dos elementos do chiste presentes no improvérbio:

Elementos formadores do Chiste Elementos chistosos no Improvérbio (“olho por olho, dentre prudente”) Substituição de ideias, parte de palavras

ou de palavras inteiras. ―Por dente‖ por ―prudente‖.

Brevidade. ―Olho por olho, dente prudente‖.

Fenômeno de linguagem. Surge no diálogo entre dois personagens.

Trata-se de um fenômeno de linguagem e não de uma ação, como no cômico.

Conhecimento da língua em que foi

escrito. Apenas o leitor de Língua Portuguesa pode compreender o improvérbio e estar sujeito ao riso.

Manifestação da inteligência. Manifestação da inteligência no jogo com as letras, sons e ideias: ―dente por dente / dente prudente‖.

Intenção hostil, porém, socialmente

aceitável (velada) do emissor. A qualidade metafórica de ―dente prudente‖

substitui formas diretas de agressão verbal.

Riso. O leitor-receptor ri-se da deturpação

proverbial.

Figura 2: Presença dos elementos formadores do Chiste no Improvérbio.6

O provérbio ―olho por olho, dente por dente‖ é um aforismo do principio da lei de talião (do latim lex talionis, ―lei da retaliação‖). De acordo com essa lei, existente desde as primeiras civilações e documentada no reino da Babilônia pelo

6 Essa tabela foi elaborada pelo autor deste estudo.

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Código de Hamurabi (1780 a. C.), a punição para um criminoso deve ser exatamente igual ao crime que ele comete. No conto, o tio de Júlio Novesfora pede-lhe prudência, uma vez que a punição para o sobrinho pode ser igual ao crime cometido por ele. Sua presente paixão pela jovem pode fazer com que ele seja punido da mesma maneira:

sendo abandonado, no futuro, por alguém mais jovem.

A deturpação do provérbio ―olho por olho, dente por dente‖ cria um poema cujo tema é a possibilidade de retaliação a que Júlio Novesfora se sujeita.

Somente a prudência pode fazer com que sua situação inapropriada não se reverta contra ele: a paixão que agora causa prazer pode causar dissabor no fututo. A metáfora

―dentre prudente‖ consiste numa maneira cortês de expressar que somente o ―dente‖

prudente pode permanecer intocado pela retaliação, pelos ―socos‖ do destino. Nesse sentido, ―dente‖ metaforiza o próprio Júlio Novesfora. A crítica de seu tio encontra uma forma indireta de se expressar, espirituosa; eficaz em hostilizar e, ao mesmo tempo, ocultar a ―agressão‖, driblando a repressão do psiquismo e do meio social através da metáfora.

A resolução tomada por Júlio Novesfora se baseia na fuga da punição anunciada pelo provérbio da lei de talião que ele ouviu de seu tio:

Uma noite, estando ele em seu leito, estranhos receios invadiram o professor: essa menina vai fugir (...). Novesfora nem chegou de entrar no sono, tal lhe doeram as suspeitas do desfecho.

Passaram-se os dias. Até que, certa vez, (...) encontraram não o professor mas a menina derramada em pranto (...). Se aproximaram, lhe tocaram o ombro. O que passara, então? Onde estava o mestre?

— Ele foi, partiu com outra.

Resposta espantável: afinal, o professor é que se fora, no embora sem remédio. E partira como? (...). A ditosa namorada respondeu: que ele fora com outra, extranumerária. E que esta seria ainda muito mais nova (...). (COUTO, 2012, p. 98)

CONCLUSÃO

É ao tratarem de como acontece o relacionamento do escritor com o procedimento de recorrer à memória oral que Macêdo e Maquêa tocam no tema do processo de escrita do improvérbio:

(...) muitas vezes, (a) memória (oral) é lida às avessas, noutras é subvertida pela ironia e pelo gosto de brincar com as ideias e com as palavras, e ainda noutras, ela é inventada no espanto de uma

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ausência que fala daquilo que foi silenciado pela opressão colonial.

(MACÊDO; MAQUÊA, 2007, p. 25)

Subverter a memória oral: eis a motivação que subjaz à técnica do improvérbio, mais um dos elementos da obra de Mia Couto que mostra como ele ―maneja a linguagem das suas figuras legitimando a transgressão lexical de uma fala estrangeira‖

(CRAVEIRINHA, citado em PIRES, 2007, p. 49). Transgredir a esta fala estrangeira significa, consequentemente, trangredir sua conotação colonial.

O improvérbio subverte ditos populares já sedimentados pela tradição cultural, destituindo-o da língua e da cultura do provérbio inicial. Ele compõe uma manifestação rebelde; porém, disfarçada pelo riso e que, portanto, pode ser socialmente veiculada: uma manifestação de repúdio às imposições linguisticas e culturais do colonizador. O improvérbio parece, sim, constituir-se como uma marca de moçambicanidade. E o modo como ele o faz é sendo chistoso. Por isso mesmo, o improvérbio se constitui enquanto uma técnica de subversão literária a imposições culturais e linguísticas relacionada à língua portuguesa, ao mesmo tempo em que promove um grito de afirmação da moçambicanidade.

REFERÊNCIAS

ASSIS, M. de. Não consultes médico. In: FARIA, J. R. (Org.). Teatro de Machado de Assis. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 511-557.

COUTINHO, M. J. The Heart is a Beach: proverbs and ―improverbs‖ in Mia Couto‘s stories.

Disponível em: <http://www.colloquium-

proverbs.org/index.php?topic=seccao&seccaoid=19&papper=28&lang=pt>.

Acesso em: 3 jan. 2011.

COUTO, M. Os infelizes cálculos da felicidade. In: COUTO, M. Estórias abensonhadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 93-99.

HOUAISS, A. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. São Paulo: Objetiva, 2009. CD-ROM.

MACEDO, T; MAQUÊA, V. Literaturas de língua portuguesa - Marcos e Marcas - Moçambique. São Paulo: Arte & Ciência, 2007.

PIRES, L. F. C. L. O absurdo ou o diálogo dos possíveis em Guimarães Rosa e Mia Couto.

Lisboa, 2007. Dissertação (Mestrado em Literaturas Lusófonas Comparadas).

Universidade Aberta, 2007.

VERTUAN, E. O chiste e o riso na peça ―Não consultes médico‖, de Machado de Assis. In:

Revista Trama, v. 4, n. 8, 2008, p. 51-58.

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MANIFESTAÇÕES DA LINGUAGEM POÉTICA DE ROBERTO

No documento NOVOS TEMPOS, MESMAS HISTÓRIAS (páginas 50-54)