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Anos 1980-1982: Recomposição e diversificação do feminismo

No documento FEMINISMO E EVANGELIZAÇÃO (páginas 155-166)

Este breve período trouxe mudanças fundamentais para o feminismo. Neste momento emerge com maior força a consciência do direito à igualdade, mas também à diferença entre homens e mulheres, assim como a consciência dos direitos sociais e políticos das mulheres, tematizados nas reivindicações específicas. A reorganização político-partidária do país contribuiu para a descaracterização das práticas autônomas dos movimentos de mulheres. Vários grupos se desfizeram, muitas feministas se concentraram nos partidos e sindicatos, os quais criaram seus departamentos femininos, ao passo que outras continuaram apenas no movimento. Os discursos feministas invadiram os discursos partidários, mas as práticas autônomas ficaram reduzidas86. A dissidência no interior do movimento marca um novo período para o feminismo.

2.2.1 O feminismo se pergunta pela sua identidade

Se na década anterior o feminismo se expandiu significativamente e ganhou bases populares, os anos 1981-1982 foram promissores, mas ao mesmo tempo desafiantes para as mulheres, tanto no âmbito social quanto na esfera interna do movimento. A efervescência do feminismo no final da década anterior trouxe à luz a questão da identidade do movimento feminista. Por outro lado, as iniciativas do Ano Internacional da Mulher contribuíram para a organização das mulheres, dando origem a novos movimentos de mulheres.

O “movimento de mulheres” é comparado por Paoli a “um imenso guarda-chuva”87 abrigando uma variedade de ações coletivas, com diferentes significados, alcances e durações. O movimento feminista mostra apenas uma face desse amplo movimento de

86 SOUZA-LOBO, E. A classe operária..., p. 225, 230; PINTO, R. C. Uma história do feminismo..., p. 68.

87 PAOLI, M. C. Movimentos sociais no Brasil: em busca de um estatuto político. In: HELLMANN, M. (Org.).

Movimentos sociais e democracia no Brasil..., p. 7.

155 mulheres, “multifacetado, social e politicamente heterogêneo”88. As mulheres das periferias urbanas, as dos movimentos populares, as sindicalistas, as empregadas domésticas, as lésbicas, as trabalhadoras rurais, as indígenas, as negras e as de outras organizações mostram muitas outras faces, cada uma com suas dinâmicas e formas de expressão peculiares. São essas várias faces que, juntas, fazem do feminismo não somente um portador de reivindicações, mas também “um sujeito político capaz de intervir junto à sociedade e ao Estado para a transformação social”89.

De fato, Saffioti observa que, mesmo não tendo uma longa trajetória, já não se pode referir ao feminismo brasileiro contemporâneo no singular90. Este se tornou um fenômeno plural, visto que abrange uma ampla variedade de posturas políticas. Isto se tornou mais visível no II Encontro Feminista Latino-Americano, em Lima (1983), quando se constatou que grande número das participantes não pertencia exclusiva ou necessariamente a um grupo feminista específico, mas participava ativamente de movimentos de mulheres. O Encontro mostrou que na América Latina havia surgido um amplo e diverso movimento de mulheres, do qual o movimento feminista é simplesmente “uma das muitas expressões”91. O feminismo brasileiro tipifica essa diversidade de expressões, o que lhe confere um caráter peculiar.

É preciso, porém, ter claro que a diversidade também traz muitos desafios. Assim, as feministas tiveram que enfrentar muitas questões em relação ao trabalho com o movimento de mulheres. Muitas se perguntaram se o movimento feminista teria se fragmentado e perdido o seu potencial subversivo, ou então, se a luta das feministas junto aos movimentos sociais havia despertado para o surgimento de outros grupos e movimentos, ampliando a organização. Seria melhor as mulheres se concentrarem nas

“lutas gerais” junto à Esquerda, ou em “demandas específicas” do movimento, como o combate à violência e à discriminação, a divisão sexual do trabalho, os direitos trabalhistas das mulheres, a questão da sexualidade, da afetividade, dos direitos reprodutivos, do controle da natalidade e das políticas de saúde?

As questões em torno das lutas “gerais” e “específicas” explicam o porquê da brevidade deste período92. Os grupos denominados “luta de classes” ou “feminismo de

88 STERNBACH, N. S. et al. Feministas na América Latina..., p. 261.

89 SOARES, V. As muitas faces do feminismo no Brasil, p. 38-39; SOUZA-LOBO, E. A classe operária..., p.

221.

90 SAFFIOTI, H. Movimentos sociais: face feminina..., p. 168.

91 SOARES, V. Movimento feminista: paradigmas e desafios, Estudos Feministas, [n.e.], p. 15, out. 1994.

92 As lutas “gerais” e “específicas” foram motivo de debates e dissidências no interior do movimento em São Paulo, culminando com a sua divisão às vésperas do III Congresso da Mulher Paulista (1981). Um resumo sobre

156 partido”, vinculados aos partidos socialistas, sobretudo os de influência marxista-leninista que vinham se firmando desde 1975, denunciavam a exploração da força de trabalho feminina, o sexismo dos patrões, os baixos salários, os sindicatos que discriminavam as mulheres e a opressão masculina na família operária. Defendiam a independência econômica, a participação política e o trabalho das mulheres na indústria. Mas a práxis autoritária e manipuladora da Esquerda não favorecia a prática política das trabalhadoras, que eram vistas apenas como donas de casa, mães, ativistas do partido e arregimentadoras de mulheres para as lutas gerais. O partido planejava o trabalho, as atividades e a organização das mulheres, hierarquizando as lutas e subordinando as questões específicas das mulheres às lutas gerais. Ao impor a linha de ação ao movimento de mulheres, esvaziava a questão feminina de sua especificidade e limitava sua atuação ao partido93. Paralelamente aos grupos “luta de classes” surgiram correntes divergentes nascidas dos grupos de “autoconsciência”, que entendiam o feminismo como “bandeira de luta” e defendiam a autonomia e as demandas específicas das mulheres. O princípio da autonomia, a consciência de que a dimensão pessoal também é política e a recusa da tutela de organizações de esquerda foram pressupostos para a articulação entre eles.

Estes grupos trouxeram para o debate público temas como: trabalho doméstico, violência sexual, relações familiares, contracepção, direitos reprodutivos e trabalhistas, cidadania das mulheres e sujeição da sexualidade feminina à maternidade. Propunham total autonomia do movimento e uma coordenação descentralizada e participativa. Rejeitavam dicotomias como homem/mulher, casa/trabalho, privado/político, geral/específico.

Declarando-se dissidentes, realizaram o III Congresso na Universidade Católica de São Paulo (1981), com cerca de quatro mil mulheres, enquanto os demais grupos (cerca de seis mil participantes) realizaram o Congresso, no Estádio do Pacaembu94.

2.2.2 O feminismo “revisitado”

Esses congressos, de um lado selaram a divisão do movimento de mulheres, mas de outro, sinalizaram uma nova fase no feminismo brasileiro com o surgimento de um

esses fatos encontra-se em MORAES, M. L. Q. Mulheres em movimento, p. 2-16 e em GOLDBERG, A.

Feminismo em regime autoritário. [mimeo]. Rio de Janeiro, XII Congresso Nacional da IPSA, 1982.

93 SOUZA, L. E. A classe operária..., p. 209-217; MORAES, M. L. Q. Mulheres em movimento, p. 5-7.

94 TELES, M. A. Breve história do feminismo...,p.124-129; MORAES, M. L. Q. Mulheres em movimento, p.7- 13.

157 movimento autônomo, com ativistas de diferentes partidos, sindicatos, movimentos e de outros grupos de mulheres, além daquelas independentes. Daí para frente, o respeito pela pluralidade e diversidade de vozes femininas, assim como a sua autonomia, tornaram-se fundamentais para a prática feminista. Hoje, qualquer postura dogmática é imediatamente criticada e rejeitada.

Se, por um lado, esse fato pode ter repercutido como fragmentação do movimento, por outro, ele sinalizou o início de um feminismo diversificado, pluralista, direcionado para as questões específicas das mulheres, com novas perspectivas enriquecidas pelos Estudos sobre Mulher95. Surgiu uma variedade de organizações de mulheres negras, índias, operárias, lésbicas, trabalhadoras rurais e urbanas, domésticas, sindicalistas e outras associações profissionais, no interior do movimento de mulheres, alastrando-se por todo o país. Assim, pode-se dizer que no início dos anos de 1980, o movimento de mulheres no Brasil era uma força política e social consolidada. E não se pode esquecer que, nesse momento, a anistia começava a trazer de volta muitas feministas exiladas, que contribuíram enormemente para a ampliação e o aprofundamento desse processo.

Para justificar os motivos da dissidência que marcou os novos rumos do feminismo brasileiro, foi publicado um artigo na Folha de São Paulo, assinado por várias feministas do grupo Nós Mulheres, que defendiam a autonomia do movimento frente ao dogmatismo da Esquerda; entre outros, elas destacaram os seguintes pontos:

- A unidade é importante para dar força real ao movimento, mas não pode negar a exigência da subjetividade no espaço político e o direito de cada mulher representar a si mesma.

- É importante as mulheres se unirem e organizarem em qualquer espaço, mas sem disputas pela hegemonia, poder e direção da massa de mulheres que compõem o movimento feminino; tem que ser do jeito feminino de ver e fazer as coisas e não do raciocínio político linear que vem da concepção política e modo de ser masculinos.

- O feminismo se confronta com a contradição de lidar com a subjetividade, num espaço onde as relações são objetivas e racionais; atuou sobretudo no plano político, mas faltou expressão cultural e criatividade na linguagem do movimento feminista; é o que se busca agora.

- O direito à diversidade, sem desigualdades, sem precisar competir com os homens ou ser iguais a eles.

- Descobrir o feminino como alteridade ao masculino e não como seu polo negativo ou sua carência.

- Criar espaços para que os homens possam se admitir frágeis, emotivos e acabar com o desempenho de serem humanos completos e infalíveis.

- Buscar mudar homem e mulher sem ressentimentos; ‘o feminismo é uma exigência de amor’96.

95 SARDENBERG, C.; COSTA, A. A. Feminismos, feministas..., p. 104; MORAES, M. L. Q. Mulheres em movimento, p. 8-9; SARTI, C. A. O feminismo brasileiro..., p. 41-42; PINTO, R. C. Uma história do feminismo..., p. 52-55.

96 GRUPO “NÓS MULHERES”. Os velhos conceitos estão desgastados. Folha de São Paulo, São Paulo, 8 mar.

1981, Ilustr. p. 43.

158 A dissidência, por um lado, provocou muitos questionamentos a respeito da identidade, das metas, das estratégias e das práticas dos movimentos feminista e de mulheres, possibilitando, por outro lado, uma redefinição das mesmas; o movimento feminista cresceu e se articulou com outros grupos e movimentos de mulheres que tinham os mesmos objetivos.

Muito se falou e escreveu sobre o assunto. Boa parte dessa literatura traz, no entanto, um recorte preconceituoso que separa os movimentos: os de “mulheres” seriam populares e remeteriam às reivindicações socioeconômicas; os “feministas” seriam aqueles formados por mulheres da classe média e tratariam das questões socioculturais. Souza- Lobo, Soares e Teles contestam essa rígida demarcação, por ser irreal, classista, precária e preconceituosa, já que as feministas brasileiras continuaram, ao longo dos anos de 1980, em intenso intercâmbio com as várias vertentes do movimento de mulheres, tornando-se difícil localizar um limite entre elas97.

O cuidado em não colocar os movimentos em antagonismo já aparecera no VI Encontro Feminista Latino-Americano, quando foi alertado para que não se usasse um

“feministômetro” a fim de averiguar quais práticas seriam ou não feministas, ou para invalidar os diferentes tipos de trabalhos realizados por mulheres, para mulheres e com mulheres98. Na realidade, a reflexão e as práticas do movimento feminista integram-se àquelas do movimento de mulheres; através de congressos, encontros, seminários e fóruns, assim como das lutas nos sindicatos, das ONGs e em trabalhos com mulheres, as feministas provocaram o debate sobre novos temas e novas práticas no interior do movimento de mulheres, abrindo para novas perspectivas.

Em síntese, o grande mérito do feminismo nesse curto período é que ele questionou o modo autoritário e fragmentado de a Esquerda atuar politicamente. Além disso, dissolveu a dicotomia entre geral e específico; propôs uma nova articulação entre as dimensões pessoal, teórico-prática e política; reforçou a importância dos temas do cotidiano na elaboração de políticas públicas, bem como dos temas da pluralidade e diversidade das experiências a partir das relações de gênero. Isso supunha uma constante revisão e recriação das práticas e trouxe muitas mulheres à participação política, fazendo emergir um feminismo plural e dialógico, com lutas definidas e politicamente comprometido, que Souza-Lobo chamou de “feminismo revisitado”99.

97 SOUZA, L. E. A classe operária..., p. 241; SOARES, V. As muitas faces do feminismo..., p. 42; TELES, M.

A. Breve história do feminismo..., p. 128-129.

98 ALVAREZ, S. Feministas na América Latina..., p. 270.

99 SOUZA-LOBO, E. A classe operária tem dois sexos, p. 211.

159 2.3 Anos 1983-1989: Conquista de novos espaços e ampliação de espaços

estratégicos

Este período foi marcado por uma intensa conscientização e participação política. É o momento da consolidação democrática no Brasil, quando os movimentos feministas e de mulheres se afirmam como sujeitos coletivos. Inicialmente eles se confrontam com o Estado no momento em que a condição feminina torna-se objeto de políticas públicas.

Posteriormente, busca-se estabelecer novas e possíveis articulações com o Estado, em vista da elaboração de propostas específicas para a Assembleia Nacional Constituinte (1988).

As relações entre homens e mulheres deixam de ser assunto só da vida privada, sendo levadas para o debate público. Questões como divisão sexual do trabalho, violência doméstica, controle da contracepção e educação de menor qualidade, configuram-se como formas de dominação das mulheres, tornando-se objeto de denúncias e de políticas sociais concretas. “O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, os Conselhos Estaduais da Condição Feminina, as Comissões de Mulheres dos sindicatos e dos partidos são os novos interlocutores entre o Estado e os movimentos de mulheres”100. Duas posturas polarizaram os debates nesse momento:a das que optavam por ocupar os espaços governamentais e a das que defendiam os movimentos como espaço exclusivo de atuação das feministas. O pensamento feminista se insere nas universidades e intensifica sua interlocução, sobretudo com ONGs e com o movimento social.

2.3.1 O feminismo no espaço acadêmico

Os anos de 1983-1989 mostraram um grande reflorescimento na organização das mulheres. Desde 1979 a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais – ANPOCS, havia incorporado o tema “Mulher” em seus encontros anuais. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência também foi um espaço importante para as feministas realizarem seminários e encontros101. Inicialmente estes eventos ocupavam um pequeno espaço nas reuniões anuais; a partir de 1984 as feministas se organizaram de forma autônoma e criaram espaços de reflexão e debates próprios e independentes.

100 SOUZA-LOBO, E. A classe operária tem dois sexos, p. 225, 230.

101 TOSCANO, M.; GOLDENBERG, M. A revolução das mulheres, p. 40-46; SARDENBERG, C.; COSTA, A.

A. Feminismos, feministas..., p. 103-09.

160 O feminismo entrou nas universidades, inicialmente a partir dos Núcleos de Estudos sobre Mulher, dos Grupos de Trabalho da ANPOCS e, posteriormente, dos Núcleos de Estudos de Gênero. Desde então, muitas mulheres passaram a atuar na área da pesquisa, reflexão e produção teórico-científica102. A incorporação pelos GTs, dos estudos de gênero, significou um avanço epistemológico em relação aos estudos que vinham sendo realizados. A iniciativa disseminou-se para outras associações nacionais como a de antropologia, história, educação, psicologia, linguística, saúde e outras. Os Centros de Documentação sobre a condição feminina também tiveram uma importante função nesse período. Daí por diante, trabalhos, teses, pesquisas e outras publicações multiplicaram-se em todas as universidades do país103.

Congressos, seminários e encontros em nível nacional, estadual e local também foram realizados, com a participação ativa e o apoio das feministas universitárias. Em 1985, o Brasil sediou o III Encontro Feminista Latino-Americano e Caribenho. Como a maioria das participantes era de brasileiras, esse Encontro foi o marco para se criar uma nova forma de organizar os Encontros Nacionais, que passaram a incorporar mulheres de muitas organizações populares que não se denominavam “feministas”. Esse encontro fez perceber que o feminismo brasileiro delineava um novo rosto, ou melhor, uma multiplicidade de novos rostos.

2.3.2 Retomada do espaço político e conquista de novos espaços

Quando, no início da década de 1980, os movimentos sociais foram desmobilizados em razão da reorganização político-partidária, vários partidos criaram comitês e secretarias de mulheres e abriram espaço para a participação feminina, fato significativo após o regime militar, tanto para as mulheres quanto para os partidos. Embora ainda muito tênue, a

102 Vimos que na primeira onda feminista houve uma abundante circulação de artigos, jornais, revistas, livros e outros textos produzidos por mulheres. Na segunda onda, a produção acadêmica relacionada aos Estudos sobre Mulher começa a partir de 1967, e aos Estudos de Gênero a partir de 1980, época em que as chamadas

“minorias” firmaram sua luta pelos direitos à alteridade. Conforme Machado, isso explicaria porque até esse momento não temos uma produção tão vasta sobre as teorias feministas e de gênero como em outros países do norte, o que favoreceu, por outro lado, a abordagem de temas mais ligados à realidade das mulheres brasileiras (MACHADO, L. Z. Feminismo, academia..., p. 26-27).

103 SALES, C. M. V. et. al. Feminismo: memória e história, p. 35. Segundo Regina Céli, “a mais importante iniciativa na área dos estudos de mulheres e das relações de gênero no Brasil foi, sem dúvida, os concursos de dotação de recursos para pesquisas sobre mulher, promovidos pela Fundação Carlos Chagas e financiados pela Fundação Ford, de 1978 a 1998. Durante esses vinte anos foram realizados oito concursos que financiaram cento e setenta projetos de todas as regiões do país” (PINTO, R. C. Uma história do feminismo no Brasil, p. 86).

161 militância das mulheres na política partidária cresceu em relação às eleições anteriores104; os encontros e fóruns feministas também passaram a ocupar o lugar de muitas organizações, tornando-se um espaço alternativo de articulação entre as militantes dos diferentes partidos. Cabe ressaltar que, ainda em 1883, quando as oposições se aliaram para demandar eleições diretas e imediatas, as mulheres se uniram no Movimento de Mulheres pelas Diretas Já que, além de fortalecer a Campanha pelas Diretas Já, apontou novas perspectivas para o feminismo no campo político.

Embora a participação das mulheres na política ainda hoje seja um desafio não assumido plenamente pelos partidos, uma importante conquista nessa área foi a incorporação das demandas das mulheres pelo poder público. Em 1983 as feministas do PMDB de São Paulo articularam com o governo Estadual o Conselho da Condição Feminina, primeiro órgão governamental do Brasil a tratar da condição da mulher. Em 1984 elas pressionaram o governo brasileiro a ratificar a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, adotada pela ONU em 1947. Em 1985 elas articularam com o governo federal a criação do Conselho Nacional dos Direitos da MulherCNDM, ligado ao Ministério da Justiça, que elas mesmas passaram a coordenar.

A entrada nos espaços governamentais de poder causou desconfianças e preocupações para aquelas que defendiam os movimentos como o único campo de atuação das feministas. Duas opções eram possíveis nesse momento: vincular-se a um partido correndo o risco de colocar em jogo a unidade e autonomia do movimento, ou manter a coesão e atuar politicamente apenas na forma de pressão ao Estado. Na realidade, essas questões nunca foram resolvidas no interior do movimento feminista; fato é que a criação de órgãos governamentais como Conselhos, Secretarias e Ministérios para se ocuparem especificamente de questões relacionadas às mulheres nunca obteve consenso entre as feministas ou, no mínimo é visto com bastante cautela105. A institucionalização sinaliza um risco da perda de autonomia e radicalidade de qualquer movimento social, em relação aos partidos e ao Estado, e um enfraquecimento da luta por transformações mais profundas nas relações de poder, o que é duvidoso que ocorra em instâncias governamentais.

104 Nas eleições de 1986-1990, foram eleitas 26 deputadas federais, 36 estaduais, cem prefeitas e duas senadoras suplentes, sendo que na Assembleia Legislativa elas compunham apenas 5,7% da Casa. Ainda assim, foi incansável o trabalho dessas mulheres na preparação da Assembléia Nacional Constituinte, desde as bases locais até a bancada feminina, constituída por deputadas de diferentes partidos, que apresentou à Constituinte trinta emendas sobre os direitos das mulheres abrangendo, basicamente, todas as reivindicações feministas.

105 PINTO, R. C. Uma história do feminismo no Brasil, p. 69. A questão da autonomia, um dos pontos fortes do debate feminista dos anos de 1970, adquire, na década de 1980, novos contornos e expressões, quando o feminismo entra nos sindicatos, nos partidos e nos aparelhos do Estado.

162 Porém, os Conselhos não só respeitaram a autonomia do movimento de mulheres, mas também fortaleceram suas lutas com programas e políticas de apoio, integração e desenvolvimento das mulheres em diversas áreas. Junto com os Fóruns Feministas, eles se empenharam na elaboração de propostas para a Assembleia Constituinte de 1988, mediante a discussão e análise de propostas das mulheres de diferentes setores sociais e das diversas regiões do país. Foi realizada até uma campanha nacional na televisão e através de outdoors com o slogan “Constituinte pra valer tem que ter direitos da mulher!”106.

É importante destacar que toda essa mobilização resultou numa “Carta das Mulheres”, elaborada por um grupo de feministas convocadas pelo CNDM, sendo “o documento mais completo e abrangente produzido na época”107 e, talvez, o mais importante elaborado pelo feminismo brasileiro contemporâneo. Na primeira parte a carta defendia e reafirmava a justiça social, propunha a criação do Sistema Único de Saúde SUS, o ensino público e gratuito em todos os níveis, a autonomia sindical, as reformas agrária e tributária, a negociação da dívida externa e outros direitos gerais. Na segunda parte apresentava propostas específicas relacionadas aos direitos das mulheres a respeito do trabalho, da saúde, da sociedade conjugal, dos direitos de propriedade, do direito das mulheres de conhecerem o próprio corpo e de tomarem decisões sobre ele, bem como de sua segurança e integridade física e psíquica.

Assim, na esfera das políticas públicas, a questão da violência contra a mulher, levada para o debate da Assembleia Nacional Constituinte, mas que já vinha sendo amplamente debatida pelos movimentos de mulheres e grupos feministas autônomos, resultou na criação das Delegacias para Atendimento Especializado às Mulheres (1985), que marcou importante passo nas lutas iniciadas anteriormente pelos SOS-Mulher e SOS- Corpo108. Muito se deve também ao fato de, a partir de 1980, as forças armadas e as polícias civil e militar admitirem mulheres em seus quadros, possibilitando a criação das delegacias coordenadas por profissionais mulheres.

106 O CNDM recebeu o apoio também de órgãos das Nações Unidas como o Unifem, a Unesco e o Unicef, o que permitiu a realização de muitos projetos de pesquisa sobre a condição feminina. Por sua representação nacional, estadual e municipal ele foi, junto com a Bancada Feminina do Congresso Nacional, um importante agente de lobby – chamado de lobby do batom – na Assembleia Constituinte, conseguindo a incorporação de muitos direitos específicos das mulheres na Constituição Brasileira.

107 PINTO, R. C. Uma história do feminismo no Brasil, p. 75.

108 TELES, M. A. Breve história do feminismo no Brasil, p. 135-136. O cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, professor da Universidade de São Paulo e coordenador do Núcleo de Estudos sobre a Violência, afirmou que “se há algo que vai ficar na história do Brasil são as Delegacias de Mulheres; no terceiro milênio, quando se falar da democracia no Brasil, as Delegacias de Mulheres estarão aí comprovando a luta e a competência das mulheres no combate à violência sexista” (PINHEIRO, P. S. Entrevista à Central Brasileira de Notícias em 25-9-1999).

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