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Um feminismo em busca de cidadania

No documento FEMINISMO E EVANGELIZAÇÃO (páginas 137-142)

136 ser negro ou pertencer a qualquer outra categoria oprimida, traz uma carga a mais em relação a ser homem e ser branco, questão que as feministas sufragistas não chegaram a perceber, pelo fato de estarem inseridas em outro contexto sociopolítico e econômico, como será apresentado nas próximas páginas.

137 é muito significativa a estratégia das mulheres não detentoras de direitos políticos de criar um partido e, dessa forma, se colocarem em uma arena onde suas manifestações eram consideradas ilegítimas por não serem dotadas de direitos. As fundadoras do partido poderiam ter criado um clube ou uma associação, mas preferiram organizar um partido, tomando assim uma posição clara em relação ao objetivo de sua luta, isto é, se tornarem representantes dos interesses das mulheres na esfera política. O estatuto do partido dá uma ideia muito clara do que pretendiam essas mulheres:

não defendiam apenas o direito ao voto, mas falavam de emancipação e independência. Atribuíam à mulher qualidades para exercer a cidadania no mundo da política (o patriotismo) e no trabalho. E, extrapolando a questão dos direitos, propugnavam o fim da exploração sexual, adiantando em mais de cinquenta anos a luta das feministas da segunda metade do século XX31.

No entanto, Leolinda e Gilka não se limitaram à iniciativa partidária, mas organizaram outras manifestações visando alcançar a aprovação dos direitos políticos.

Numa época em que era vetado às mulheres transitarem pelas ruas a não ser acompanhadas (exceto as trabalhadoras), elas organizaram uma passeata no Rio de Janeiro (1917), com cerca de noventa mulheres, no intuito de sensibilizar os políticos e buscar o apoio da opinião pública; e ainda compareciam nas sessões do Congresso para pressionar os deputados a aprovarem o sufrágio. Essas manifestações representaram uma ameaça a muitos membros do Senado e da Câmara, que apelaram para a ridicularização das mulheres e também dos homens que as apoiavam. Esses fatos, no contexto de autoritarismo em que o país vivia, contribuíram para que o processo do sufrágio fosse protelado até 192132.

Além de Leolinda e suas companheiras, muitas outras mulheres, em diferentes Estados, também se engajaram na campanha pelo voto e pela igualdade de direitos políticos;

uma das que mais se destacou foi Berta Lutz (1894-1976), que atuou principalmente na década de 1920. Como tinha sólida formação intelectual, Bertha foi imbatível na elaboração de artigos para jornais, nos discursos, nas palestras, nas audiências com parlamentares e em conversas com pessoas influentes, sempre reivindicando os direitos formais das mulheres, visando sua inclusão na esfera política33. Ela percebia que para se avançar nessa direção era imprescindível articular os esforços isolados. Junto com a professora Maria Lacerda de Moura e outras contemporâneas, fundou a Liga pela Emancipação Intelectual da Mulher

31 PINTO, C. R. J. Uma história do feminismo no Brasil, p. 18.

32 ALVES, B. M. Ideologia e feminismo..., p. 95; PINTO, C. R. J. Uma história do feminismo no Brasil, p. 18- 19. Leolinda foi uma mulher livre, destemida e solidária. Após criar cinco filhos, separada do marido, a partir de 1915 percorreu sozinha o interior do Brasil, passando por Minas Gerais e Goiás, chegando até a fronteira do Maranhão, sempre defendendo os índios do extermínio, bem como do autoritarismo que permeava a prática catequética (PINTO, R. C. J. Uma história do feminismo no Brasil, p. 18).

33 Filha de uma enfermeira inglesa e do cientista Adolfo Lutz, Bertha formou-se em Biologia pela Sorbonne e mais tarde em Direito no Rio de Janeiro. Sua trajetória foi influenciada pelas feministas da Europa, onde estudou, e após regressar ao Brasil (1918), pelas norte-americanas com quem participou de vários eventos. Representou o Brasil na assembleia geral da Liga das Mulheres Eleitoras, realizada nos EUA e foi eleita vice-presidente da Sociedade Pan-Americana de Mulheres.

138 (1919), tendo como objetivo principal promover a cidadania e a igualdade política das mulheres34.

A Liga teve, no entanto, curta duração, cedendo o espaço, em 1922, a uma organização, mais articulada, a Federação Brasileira para o Progresso Feminino; esta logo se espalhou por vários Estados, mantendo uma luta de quase cinquenta anos, ampliando as demandas e conquistas anteriores com projetos de lei para a regulamentação do trabalho feminino e infantil, a igualdade de salários e a orientação das mulheres na escolha da profissão, visando despertá-las para questões públicas, assegurar-lhes direitos políticos e prepará-las para exercê-los35.

No entanto, a atuação da FBPF era complexa e controvertida, visto que suas líderes, embora desafiassem os padrões sexistas do seu tempo, questionavam apenas parcialmente a exclusão das mulheres, evitando tocar nas questões de poder entre os sexos, tanto no âmbito privado como no público; em outras palavras, elas centravam suas demandas somente na inclusão das mulheres na esfera política, não enfrentando as questões de gênero que podiam melindrar suas relações com as diversas esferas de poder, o que Céli Regina caracteriza como feminismo “bem-comportado”, que não mexe na posição privilegiada dos homens36.

34 Todas as cofundadoras da Liga pertenciam a famílias da elite e utilizavam sua posição de esposas, filhas e amigas de homens políticos para influenciar, ou mesmo pressionar o Congresso e o Senado a aprovar as demandas das mulheres. Entre outros, o deputado, e depois governador do Rio Grande do Norte, Juvenal Lamartine, com quem Bertha e as líderes da FBPF mantinham articulações políticas, foi um dos maiores aliados na conquista do voto (Ver: TELES, M. A. Breve história do feminismo no Brasil, p. 44; ALVES, B. M.

Ideologia e feminismo..., p. 105; SALES, C. M. V. et al (Orgs). Feminismo: memória e história. Fortaleza:

Imprensa Universitária, 2000, p. 19).

35 ALVES, B. M. Ideologia e feminismo..., p. 44, 115-125; SINGER, P. O feminino e o feminismo..., p. 111-112;

DUARTE, L. C. Feminismo e literatura no Brasil, p. 160. Uma reportagem do Rio Jornal, de 25/8/1925, informa que, contemporaneamente à FBPF, foram formadas outras organizações feministas que também demandavam direitos civis e políticos, embora não com o mesmo destaque e repercussão. O texto cita especificamente o Partido Liberal Feminino, fundado por Julita Monteira Soares em 25/8/1925, que explicita claramente os seus objetivos: intervir na formação das Assembleias Legislativas para salvar a família operária da fome, combater a politicagem e o analfabetismo, aconselhar a mulher do operário, do trabalhador, do funcionário público, para que seja mais vigilante na defesa de seus próprios interesses (Citado in: ALVES, B. M. Ideologia e feminismo..., p.

115).

36 PINTO, C. R. J. Uma história do feminismo no Brasil, p. 10 e 26. As lideranças da FBPF que mais se sobressaíram eram filhas de intelectuais, militares, políticos ou de profissionais de destaque, como médicos, advogados e engenheiros. Todas tinham qualificação profissional, a maior parte como professoras, jornalistas e advogadas, constando também uma médica, uma engenheira e a primeira aviadora brasileira, Anésia Pinheiro Machado. É compreensível que elas tenham lutado para conquistar direitos políticos para as mulheres a partir de sua inserção social e cultural, mas isso conferiu um rosto bastante elitista ao feminismo da FBPF. Esta, no decurso de sua existência, chegou a congregar doze associações de mulheres, entre as quais a Associação de Enfermeiras Diplomadas, a Associação de Mulheres Universitárias, a Associação de Funcionárias e a Associação de Professoras. Ao todo a FBPF contou com cerca de mil militantes, em vários Estados do país.

Embora poucas, sua força política era significativa e conseguiu, estratégica e juridicamente, se impor e conquistar o voto para “todas” as mulheres brasileiras, contra a proposta do “voto qualificado”, formulada por alguns políticos, o qual, apenas as mulheres escolarizadas e economicamente independentes poderiam exercer. Também por essa razão Bertha defendeu incansavelmente o acesso das mulheres à escolaridade.

139 Entretanto, entre as próprias fundadoras da FBPF houve quem ousou ir além dos direitos políticos. Foi o caso de Nathércia da Silveira que, em 1931 deixou a Federação e fundou a Aliança Nacional de Mulheres, a qual chegou a ter cerca de três mil sócias em várias regiões do país. O objetivo da ANM era trabalhar pela independência e estabilidade econômica das famílias, pela assistência médica, trabalhista e judicial às mulheres e pela sua formação intelectual, a fim de que elas pudessem usufruir dos seus direitos civis e políticos.

As dirigentes e sócias da ANM visitavam as periferias e conversavam diretamente com as mulheres; iam às fábricas fiscalizar as condições de trabalho e denunciar, se fosse o caso, o que denota o caráter populista da organização e o sucesso do grande número de sócias, constituindo-se em um tipo de feminismo de base mais popular. No entanto, por ser uma associação de cunho contestatório e reivindicativo, em 1937 a ANM foi fechada, devido à estrutura política autoritária do país, que não tolerava organizações de pressão37.

Não obstante os esforços dessas e de outras mulheres, a luta para conquistar direitos políticos teve uma longa e sinuosa trajetória. O projeto de lei sobre o voto feminino, que há anos tramitava na Câmara, rejeitado várias vezes, finalmente foi aprovado pelo Congresso e o Senado (1921), mas não chegou a ser votado. Diante da morosidade dos parlamentares e pressionado pelas líderes da FBPF com quem mantinha estreita ligação e a quem prometera apoio, se eleito, o governador Juvenal Lamartine (RN) antecipou-se aprovando uma lei estadual a favor do voto feminino. Assim, em 1927 ocorrem as primeiras votações, mesmo sem a aprovação do governo federal. Alzira Soriano, em Lages (RN-1929), disputou as eleições municipais com um coronel da região e foi eleita com 60% dos votos, sendo a primeira mulher prefeita da América do Sul.

A aprovação de Lamartine repercutiu rapidamente entre as militantes da FBPF em muitas cidades do país, levando-as a aplaudir a iniciativa e a reivindicar o mesmo direito em seus Estados. Em diferentes capitais, várias mulheres se alistaram e votaram, de forma que, quando a Revolução de 1930 começou, o voto feminino já era aprovado e exercido em dez Estados. Após a Revolução (1932) Getúlio Vargas promulgou o novo Código Eleitoral e aprovou o voto feminino mediante o decreto n. 21.076, mas que só foi confirmado pela Constituição de 193438. Pela primeira vez, uma constituição brasileira consagrou o princípio

37 ALVES, B. M. Ideologia e feminismo..., p. 122-123.

38 Nas eleições de 1933 Carlota Pereira foi eleita deputada federal por São Paulo e em 1934, Berta Lutz assumiu, após a morte do titular, o mandato de deputada federal. Outras cinco mulheres foram eleitas deputadas estaduais em São Paulo, Bahia, Alagoas, Sergipe e Amazonas. Bertha e Nathércia participaram intensamente da elaboração do anteprojeto da Constituição de 1934, que aprovou o voto. Para acelerar o processo do sufrágio, Bertha também fundou em 1932 a Liga Eleitoral Independente e promoveu um curso de educação política para

140 de igualdade entre os sexos, o direito do voto feminino e as garantias de proteção ao trabalho das mulheres. Vargas ainda nomeou mulheres para algumas comissões governamentais, consulados e delegações brasileiras no exterior, criou o Ministério do Trabalho, o salário mínimo, além de outras medidas que há décadas eram reivindicadas.

Essa política de concessões foi uma estratégia de dominação que se fortaleceu sempre mais, até culminar no golpe de Estado (1937), quando o Congresso foi fechado e as mulheres excluídas dos departamentos governamentais e serviços diplomáticos; “foram golpeadas justamente no momento em que obtiveram o direito ao voto que há décadas vinham lutando para alcançar”39. Daí para frente, suas lutas se fundiram novamente às lutas gerais do povo para resistir à ditadura e defender as liberdades democráticas. Infelizmente, em todo o país, elas puderam exercer, plenamente, o tão arduamente conquistado direito de votar, somente na eleição de 194540, na qual nenhuma mulher se elegeu. A Assembleia Constituinte de 1946, que preparou a nova constituição, foi um retrocesso para as mulheres ao suprimir a declaração do princípio de isonomia – “Todos são iguais perante a Lei” – eliminando a expressão: “sem distinção de sexo”, como constava na Constituição de 1934.

Na realidade, o direito ao voto alcançado pelo sufragismo foi uma conquista muito frágil, que não assegurou o exercício de uma plena cidadania para as mulheres e sua inclusão na vida pública, pois o voto, por si só, não altera a condição de vida das mulheres.

As sufragistas se deram conta disso só bem mais tarde. Logo após a luta pelo voto, que era apenas um meio e não um fim, elas não se articularam para garantir o espaço conquistado e postular outros direitos. Entre perdas e ganhos, ao não avançar nessa luta, a FBPF aos poucos se apagou.

Algumas análises contemporâneas do feminismo sufragista41 mostram que ele não deu conta de promover uma transformação radical nas relações de poder entre os sexos, já que não afrontava o poder constituído, mas buscava seu apoio, não ultrapassando os limites da esfera política, visando apenas incorporar as mulheres nas esferas de poder e não a romper com as lógicas e dinâmicas desses espaços. E ao não tratar a questão da

incentivar e instruir as mulheres a se alistarem. Foi uma defensora incansável dos direitos das mulheres até o fim de sua vida em 1976.

39 SARTI, C. Feminismo no Brasil: uma trajetória particular. Cadernos de Pesquisa, n. 64, p. 39, fev. 1988.

40 ALVES, B. M. Ideologia e feminismo..., p. 126-128.

41 Entre outras: COSTA, A. A. Trajetória e perspectivas do feminismo para o próximo milênio. In: PASSOS, E.

et al. (Orgs.). Metarmorfoses: gênero na perspectiva interdisciplinar. Salvador: GRAFUFBa, 1998, p. 26-48;

SARDENBERG, C. M.; COSTA, A. A. Feminismos, feministas..., p. 81-114; SARTI, C. A. O feminismo brasileiro desde 1970: revisitando uma trajetória. Estudos Feministas, v. 12, n. 2, p. 35-50, maio-ago. 2005.

141 discriminação e exclusão da mulher como uma questão específica de gênero, não ultrapassou a visão positivista da mulher como esposa, mãe e dona de casa. Além disso, por seu caráter elitista, ele atingiu só uma parcela das mulheres urbanas da classe média e uma mínima parte de mulheres pobres, ao contrário do feminismo anarquista, que se centrava na condição específica das mulheres trabalhadoras.

Mas em que pese os limites e ambiguidades desse processo, deve-se reconhecer que o empenho das sufragistas para a emancipação das mulheres marcou a trajetória do feminismo brasileiro. Por serem em sua maioria mulheres profissionais, elas se ocuparam primeiramente com a educação e os direitos políticos das mulheres porque entenderam que sem eles os direitos civis não teriam bases reais. Nessa luta, ultrapassaram muitas barreiras e abriram espaço para a conquista de direitos que hoje são usufruídos pela maioria das mulheres. Mesmo que não tenha superado a visão positivista sobre a mulher, além da conquista do voto, o sufragismo legitimou atividades fora do lar e ajudou muitas brasileiras da classe média, e mesmo das elites – que viviam isoladas e apáticas no seu pequeno mundo – a se interessar pelos problemas do mundo moderno, bem como a tomar consciência de sua condição subalterna imposta pela cultura patriarcal radicada no Brasil desde o período colonial. Nesse sentido, pode-se, sem dúvida, dizer que o sufragismo foi uma força significativa no processo para a emancipação das mulheres brasileiras.

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