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Dimensões e significados do conceito “feminismo”

No documento FEMINISMO E EVANGELIZAÇÃO (páginas 32-37)

Considerado até a metade do século XX como igualdade ou emancipação das mulheres18, o conceito feminismo, segundo Delphy, tem no mínimo, três significados ou universos de referência possíveis: é uma “filosofia”, um conjunto de opções éticas e políticas, que podem ser explicitadas por uma pessoa; é um “movimento social” ora numeroso e visível, ora recolhido e, para outras pessoas, enfim, significa simplesmente “as mulheres” 19.

Em sua trajetória o feminismo adquiriu outros sentidos e passou a ser visto a partir de outras dimensões. Há quem o considera um “fenômeno”20 que surge quando algumas mulheres, a partir de experiências específicas e ao mesmo tempo comuns, compartilham suas identidades e interesses e articulam estratégias para conquistar seus direitos. Pelo fato de questionar as hierarquias nas relações sociais, particularmente nas relações de gênero que se estabelecem entre homens e mulheres, assim como pelos seus desdobramentos sociais, políticos, econômicos e jurídicos, o feminismo é também chamado de “doutrina”21 que prioriza e postula a igualdade entre os sexos.

Todavia, ao termo “feminismo” podem ser associados diferentes significados, tanto em relação às suas representações individuais, quanto às coletivas e políticas. Ele pode indicar tanto um “processo isolado” de rupturas ou mudanças na vida de cada mulher, como uma busca conjunta de superação da subordinação e opressão coletiva das mulheres. Neste sentido, o feminismo é visto como “um projeto de vida pessoal e coletivo”22 que vai sendo construído através de mudanças que se processam nas vidas das mulheres.

18 TELES, M. A. A. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 10.

19 DELPHY, C. Feminismo e recomposição da esquerda. Estudos Feministas, v. 2, p. 188, jul.-dez. 1994.

20 SARDENBERG, C. M.; COSTA, A. A. Feminismos, feministas e movimentos sociais. In: BRANDÃO, M. L.;

BINGEMER, M. C. L. (Orgs.). Mulher e relações de gênero. São Paulo: Loyola, 1994, p. 84.

21 EVANS, R. J. Las feministas. Madrid: Ed. Siglo XX, 1980, p.7; BASTERD, L.; ALVES, B. M. Novos padrões e velhas instituições: feminismo e família no Brasil. In: RIBEIRO, I. (Org.). Sociedade brasileira contemporânea: família e valores. São Paulo: Loyola, 1987, p. 206.

22 TORNARÍA, C. Nosso feminismo, um projeto de vida. In: ROSERO, R. (Ed.). Feminismo e educação popular. Seminário Latino-Americano. São Paulo-Montevidéu, Rede Mulher – Rede de Educación Popular entre Mujeres de CEAAL, 1986, p. 45.

32 Como “teoria política”23 o feminismo contrapõe-se, e ao mesmo tempo é uma resposta à lógica kiriarcal que organiza e divide papéis, tarefas e metas entre homens e mulheres; por isso ele advoga a supressão das relações assimétricas de poder entre os sexos, as gerações, as classes, as etnias e grupos sociais. Para isto as mulheres se organizam, determinam políticas, fixam metas, formulam estratégias e promovem ações concretas.

Como “filosofia universal” de cunho ético-político, o feminismo reflete sobre uma opressão específica comum a todas as mulheres em diferentes lugares e níveis, desde o ideológico, o político, o cultural, até a exploração de pessoas, grupos e povos entre si24. Analisa suas formas de expressões e representações simbólicas, conforme as classes sociais, as gerações e as culturas. Tem como utopia e projeto a transformação social, política e econômica de toda a sociedade. Nesse sentido, o feminismo tem um caráter ético. Primeiro porque defende o direito das mulheres de fazerem opções sobre questões de sua própria vida. Também porque o caráter ético do feminismo se fundamenta no compromisso das mulheres, de usarem esse direito para exigir o bem-estar de todas as pessoas e grupos excluídos e oprimidos, bem como de todas as demais criaturas25.

Como “teoria científica”26 o feminismo se constitui em referência e base ideológica do movimento de mulheres; suas formas de expressão e experiências são, contudo, amplas e ao mesmo tempo diversificadas. Ele investiga as causas e as consequências da opressão das mulheres, confronta práticas, discute estratégias, avalia resultados, propõe mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais, no intuito de erradicar a exploração e a opressão das mulheres e de criar condições libertárias para toda a sociedade.

Assim, em seu pleno sentido o feminismo é também “revolucionário”, não só porque nasceu nos albores da Revolução Francesa, mas sobretudo porque postula transformações radicais no campo social, ideológico, político, econômico, cultural e

23 RIVAS, P. Feminismo e educação popular: existe controvérsia? In: ROSERO, R. (Ed.). Feminismo e educação..., p. 22; TELES, M. A. A. Breve história do feminismo..., p. 10; GARCIA, I. Gênero e políticas públicas municipais. In: BORBA, A. et al. Mulher e política: gênero e feminismo no Partido dos Trabalhadores.

São Paulo: Perseu Abramo, 1998, p. 177.

24 TELES, M. A. Breve história do feminismo... p. 10; GARCIA I. Gênero e políticas públicas..., p. 177.

25 HEYWARD, C. A graça como poder efetivador de relação. In: SCHERZBERG, L. Pecado e graça na teologia feminista. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 61. Conforme De Barbieri, “o movimento feminista, em última instância e para além de suas diversas orientações políticas e teóricas, é a extensão desse código elementar que é a Declaração dos Direitos Humanos, a uma categoria social que até agora ainda não goza dos mesmos em muitos aspectos da vida. Há, portanto, no movimento feminista um componente ético e moral que não pode ser disfarçado ou confundido com moralismos que necessitam ser banidos” (DE BARBIERI, T. Sobre a categoria gênero: uma introdução teórico-metodológica. Recife: SOS-CORPO, 1993, p. 16).

26 RIVAS, P. Feminismo e educação popular..., 22; TELES, M. A. A. Breve história do feminismo..., p. 10;

SOARES, V. As muitas faces do feminismo... In: BORBA, A. et al. Mulher e política..., p. 33; FARIA, N.

Feminismo: uma trajetória coletiva de rebeldia. Enfoque Feminista, n. 8/9, p. 33, 1995.

33 religioso, no intuito de mudar toda a realidade27. É importante ressaltar que essa revolução não ocorre só na vida das mulheres, mas atinge também os homens e toda a sociedade, na medida em que interfere nas estruturas familiar, social, política e econômica a partir de suas bases.

Em outras palavras, o feminismo se afirma como ação e compromisso ético-político das mulheres a partir de sua condição de gênero a fim de subverter (não inverter) o poder que produz a opressão. Ele “se define frente ao poder”28. Tem como premissas básicas o fim da dominação de um grupo sobre outro e mudanças diárias na vida das mulheres. Supõe a tomada de consciência coletiva das mulheres sobre a própria condição de opressão e exploração pelo kiriarcalismo, nas suas distintas fases e expressões históricas29. Entende que as mulheres são “sujeitos históricos da transformação de sua própria condição social”30. Por isso, move-as a lutar pela sua própria libertação31. Por outro lado, é bom ressaltar que o feminismo, em suas diferentes acepções, não é o reverso ou a contrapartida do machismo.

Tampouco é sinônimo de guerra entre mulheres e homens, “nem pode ser reduzido a um conflito entre Adão e Eva por causa de uma maçã”32, como muitas pessoas antifeministas pensam. Também não é um chauvinismo feminino que se alimenta de um entusiasmo intransigente por uma causa sem relevância.

Ademais, mesmo sendo, tanto na teoria quanto na prática, uma resposta política ao kiriarcado, o feminismo não pretende substituí-lo por um suposto matriarcado. Não visa excluir os homens, mas incluir as mulheres e todas as pessoas e grupos excluídos, bem como defender o direito de todas as criaturas à plenitude da vida. Seu caráter humanista afirma a dignidade e libertação tanto das mulheres como dos homens, pois estes também

“têm sido vítimas do ‘mito do macho’, que os coloca como falsos depositários do supremo poder, força e inteligência”33. Ademais, o kiriarcalismo não oprime apenas as mulheres; o

27 TOSCANO, M.; GOLDENBERG, M. A revolução das mulheres, p. 93-96; MONTENEGRO, A. Ser ou não ser feminista, p. 146; TABAK, F. Autoritarismo e participação política da mulher. Rio de Janeiro: Graaal, 1983, p. 146.

28 LAGARDE, M. A mulher e o poder. Rede de Educación Popular entre Mujeres (Org.). Liderança e participação das mulheres, p. 1.

29 SAU, V. Un diccionario ideológico…, p. 106-07; SILVA, A. L. A pesquisa como prática de cuidado na emancipação da mulher. In: SILVA, A. L. et al. (Orgs.). Falas de gênero: teorias análises, leituras.

Florianópolis: Editora Mulheres, 1999, p. 106.

30 SOARES, V. As muitas faces do feminismo no Brasil..., p. 33.

31 MIGUEL, A. Feminismos. In: AMORÓS, C. (Org.). 10 palabras clave sobre mujer. Estella: Verbo Divino, 1998, p. 217.

32 TOSCANO, M.; GOLDENBERG, M. A revolução das mulheres, p. 17.

33 TELES, M. A. Breve história do feminismo..., p. 11.

34 teólogo Nelson James chama a atenção para as opressões que também os homens vivem em sociedades kiriarcais:

Nós, homens, perdemos o contato com nossa vulnerabilidade, nossas profundas capacidades humanas de ternura, nossa necessidade de dependência, em suma, com uma variedade de emoções.

Simplesmente não nos sentimos muito bem. Somos mais alienados da nossa existência corpórea e de nossa sexualidade; ao invés de cultivar uma sexualidade ricamente difundida, o convite para a intimidade se transformou em uma estrita atenção genital. Perdemos o contato com a particularidade concreta da vida pulsante e, ao contrário, somos seduzidos por abstrações, confundindo-as com a realidade. Parece que vivemos com uma constante necessidade de provar o autovalor através de conquistas e vitórias. Estabelecemos competitividade com outros homens e achamos mais fácil ter colegas do que amizades profundas. Provavelmente, nós homens, morreremos mais novos que as mulheres, mais ou menos sete anos, pelas últimas estatísticas34.

De fato, o kiriarcado, com suas inúmeras faces e dinâmicas de submissão, dominação e destruição, impede uma interdependência e mutualidade que favorece a construção de uma sociedade holística e equitativa de múltiplas modalidades. A construção de outro mundo exige que mulheres e homens libertem-se dos condicionamentos impostos pela cultura androcêntrica e estabeleçam novas relações, sem hierarquias e domínio de um sexo ou grupo sobre outro. Foi essa busca por equidade que originou o feminismo e é nela que ele encontra sua razão de ser e seu lugar na história, como passaremos a demonstrar.

2 Trajetória e expressões históricas do feminismo

Existem várias classificações das expressões históricas do feminismo35. Antes de

tudo, convém esclarecer que qualquer classificação que se faça não o estanca e tampouco expressa rigidamente seu processo. Na verdade, a trajetória do feminismo nunca foi linear.

Assim, podemos falar apenas de aproximações que nos ajudam a situar e entender um pouco melhor sua processualidade. Ana de Miguel, por exemplo, refere-se a três etapas distintas. A primeira é a do “feminismo pré-moderno”, que diz respeito às primeiras reivindicações públicas das mulheres. A segunda é a do “feminismo moderno” que se inicia com os movimentos de libertação nascidos no contexto da Revolução Francesa. A terceira se refere ao “feminismo contemporâneo”, denominado por algumas autoras como neofeminismo.

34 JAMES, B. N. Between two garden: reflections on sexuality and religious experience. New York: Pilgrim Press, 1983, p. 46-47.

35 MIGUEL, A. Feminismos..., p. 217; ALVES, M. B.; PITANGUY, J. O que é feminismo. São Paulo:

Brasiliense, 1985, p. 29-70; SAU, V. Un diccionario ideológico…, p. 107-11; ALVES, M. B. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1980, p. 65-85.

35 Hoje, teóricas e ativistas feministas tecem outras classificações, visto que não existe um feminismo único ou homogêneo. Todas têm consciência de que há um processo, tanto na elaboração teórica quanto na organização das práticas. Assim, Saffioti adverte que não se pode mais falar em feminismo no singular, pois o termo “recobre uma gama de posições políticas”36. A multiplicidade de expressões feministas mostra que o movimento, ao abrigar correntes diversas de pensamento, tornou-se um fenômeno plural que se expressa numa variedade de concepções e práticas37. Conforme Rivas são reconhecidas como feministas

as mulheres que participam dessa luta, mesmo sem definir-se como tal; embora nem sempre tenha havido uma relação harmônica entre as feministas teóricas e as que se dedicam à ação; [...] as diferentes formas do feminismo não são excludentes; mesmo se houve momentos de tensão entre teoria e prática”, [...] se reconhece a necessidade de que existam múltiplas e diversificadas formas de organizações de mulheres38.

Se entendermos o feminismo como um fenômeno social, não é estranho que em sua

trajetória histórica ele se expanda sempre mais e dê espaço para tendências diversas de pensamento, todas importantes, no sentido em que cumprem uma função histórica que, em última instância, tem um objetivo comum: a luta pelos direitos e pela libertação das mulheres. Estes distintos enfoques a respeito da situação das mulheres mostram a variedade de reivindicações e metas a alcançar, como também as diferentes procedências e posições políticas de suas protagonistas.

É ainda importante observar que cada uma dessas visões feministas apresenta uma configuração específica de determinados conceitos e estratégias. Daí a necessidade de se conhecer e distinguir esses vários enfoques do feminismo, tendo em conta que, na realidade, eles não aparecem puros nem isolados, e tampouco suas protagonistas se preocuparam em patentear suas elaborações teóricas e suas descobertas como monopólio ou como algo definitivo. Aliás, muitos desses conceitos foram revisados, abrindo espaço para novas categorias de análise. Exemplo típico é o conceito de “patriarcado”, reformulado por algumas autoras como “sistema de sexo-gênero” ou então como “kyriarquia”.

36 SAFFIOTI, H. De feminismos, de feministas, de mulheres. In: CARVALHO, N. V. A condição feminina. São Paulo: Vértice, 1988, p. 168; IDEM. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1992, p. 114. A autora tipifica em duas as posturas feministas: uma reformista e uma revolucionária; ambas, porém, visam minar, em maior ou menor grau, a simbiose patriarcado-capitalismo-racismo, fundada no sexo, na estrutura de classes e nas diferenças raciais.

37 GUSMÁM, V. Citada por ALVAREZ, S. Estudos Feministas, v. 6, n. 2, p. 266, jul.- dez. 1998; GARCIA, I.

Gênero e políticas públicas municipais..., p. 177; SOARES, V. As muitas faces do feminismo no Brasil, p. 33-34.

38 RIVAS, P. Feminismo e educação popular…, p. 26.

36 Para melhor situar essas diversas expressões históricas do feminismo, seguiremos a marcação proposta por Kristeva39 e retomada por Machado40, que mostram três configurações do pensamento feminista como formações de um “campo de saber” sobre o feminismo e o gênero. Todavia, existem autoras que tecem outras configurações. Todas, porém, ainda que com suas peculiaridades, mais ou menos convergem entre si. Segundo essas autoras o pensamento feminista construiu-se a partir de três gerações de feministas em épocas, lugares e situações diferentes41: a primeira geração postulou a igualdade entre homens e mulheres; a segunda defendeu tanto a igualdade quanto a diferença. Já a terceira propõe manter a diferença com equidade, ampliando-a para uma multiplicidade de diferenças: entre mulheres e homens; entre as próprias mulheres; entre os homens; entre classes sociais, raças, etnias, grupos e gerações.

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