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O feminismo no interlúdio pós-voto e pós-guerra

No documento FEMINISMO E EVANGELIZAÇÃO (páginas 142-146)

141 discriminação e exclusão da mulher como uma questão específica de gênero, não ultrapassou a visão positivista da mulher como esposa, mãe e dona de casa. Além disso, por seu caráter elitista, ele atingiu só uma parcela das mulheres urbanas da classe média e uma mínima parte de mulheres pobres, ao contrário do feminismo anarquista, que se centrava na condição específica das mulheres trabalhadoras.

Mas em que pese os limites e ambiguidades desse processo, deve-se reconhecer que o empenho das sufragistas para a emancipação das mulheres marcou a trajetória do feminismo brasileiro. Por serem em sua maioria mulheres profissionais, elas se ocuparam primeiramente com a educação e os direitos políticos das mulheres porque entenderam que sem eles os direitos civis não teriam bases reais. Nessa luta, ultrapassaram muitas barreiras e abriram espaço para a conquista de direitos que hoje são usufruídos pela maioria das mulheres. Mesmo que não tenha superado a visão positivista sobre a mulher, além da conquista do voto, o sufragismo legitimou atividades fora do lar e ajudou muitas brasileiras da classe média, e mesmo das elites – que viviam isoladas e apáticas no seu pequeno mundo – a se interessar pelos problemas do mundo moderno, bem como a tomar consciência de sua condição subalterna imposta pela cultura patriarcal radicada no Brasil desde o período colonial. Nesse sentido, pode-se, sem dúvida, dizer que o sufragismo foi uma força significativa no processo para a emancipação das mulheres brasileiras.

142 e industrialização, o que possibilitou a expansão da mão de obra feminina, já bastante expressiva desde o início do século. No pós-guerra, elas fundaram comitês, associações, ligas e departamentos por todo o país43, com o objetivo de promover a paz mundial, a democracia e a soberania nacional – inclusive defendendo o petróleo brasileiro; e defender a infância e os direitos das mulheres, bem como lutar contra a carestia e o alto custo de vida.

Nesse contexto, o jornal Momento Feminino (RJ-1947) foi um importante veículo de formação e informação, chegando a atingir dezesseis Estados. Congressos, assembleias e encontros também foram importantes para a articulação e mobilização das mulheres44. As questões mais abordadas nesses eventos relacionavam-se à discriminação, aos direitos e à reforma do código civil.

Em 1958, Juscelino Kubitschek, pressionado por grupos empresariais atingidos pelas campanhas contra o alto custo de vida, proibiu a atuação das associações femininas, sobretudo as de alcance nacional, mas as mulheres continuaram se articulando em outros níveis45. Porém, com o golpe militar de 1964, muitas organizações femininas foram novamente desarticuladas, o que aconteceu, aliás, com todos os movimentos de resistência desse período. Assim, a luta das mulheres, a partir de 1960, foi direcionada para a demanda de liberdades democráticas46. Temas específicos não constaram nas agendas nesse momento. Porém, no início dos anos de 1960, a pílula anticoncepcional passa a ser comercializada no Brasil, possibilitando às mulheres viverem sua sexualidade de outra forma, abrindo novos horizontes, estimulando a busca por mais estudos e profissionalização,

43 Como a Associação de Donas de Casa contra a Carestia (RJ-1945), a Associação Feminina do Distrito Federal (RJ-1945), (que se expandiu em quarenta e três Uniões Femininas de Bairros, para lutar contra a especulação, o alto custo de vida e o despejo de favelas), a Coordenação das Organizações Femininas Brasileiras (RJ-1947), a Liga Feminina do Estado da Guanabara (1960), o Departamento Feminino dos Sindicatos, o Conselho Nacional de Mulheres, a Federação das Mulheres de São Paulo, do Rio Grande do Sul e de Pernambuco e outras organizações em muitos municípios (TELES, M. A. Breve história do feminismo no Brasil, p. 48-51; MONTENEGRO, A. Ser ou não ser feminista, p. 49-51, 65-66.

44 Alguns de maior abrangência foram: o I Congresso da FMB (1951); a 1a e 2a Assembleia Nacional de Mulheres (1952); a Conferência Nacional de Trabalhadoras (1956); o Encontro Nacional da Mulher Trabalhadora (1963) e a Convenção Feminina do Distrito Federal. Em todos esses eventos houve participação de mulheres de quase todos os Estados: donas de casa, trabalhadoras rurais, professoras, profissionais liberais, estudantes, funcionárias públicas e operárias mostraram um feminismo mais popular e politizado, com maior capacidade de organização das mulheres, mas ainda com pouco senso crítico em relação às questões específicas das mulheres.

45 A articulação ocorria através da Associação das Mulheres Cristãs, da União de Mulheres Universitárias e da Liga Feminina do Estado da Guanabara; esta, além de cursos, promoveu campanhas contra a alta do custo de vida.

46 Essa luta se deu principalmente por meio da União Brasileira de Mães e Esposas em favor da Anistia, do Movimento do Custo de Vida e do Movimento por Creches, que reuniram milhares de mulheres de várias organizações femininas de bairros e de outros segmentos sociais e religiosos.

143 causando uma verdadeira revolução nas relações entre os gêneros, embora seja uma revolução silenciosa, realizada sob a vigilância cerrada da ditadura militar.

É justamente nesse momento que emerge no cenário brasileiro a jornalista e escritora gaúcha Carmen da Silva que, por vinte e dois anos (1963-1985), manteve uma coluna na revista Cláudia, intitulada: A arte de ser mulher. A partir desse espaço ela atingiu milhares de mulheres de todo o Brasil, principalmente as da classe média, partindo dos seus problemas concretos, que chegavam ao conhecimento da escritora mediante as cartas das leitoras. Foi uma lutadora, por meio das discussões sobre a condição da mulher e na divulgação da causa feminista, num veículo de comunicação que, mesmo com ares de modernista, na maioria dos artigos reafirmava os tradicionais papéis da mulher como esposa, mãe e dona de casa. Carmen, pelo contrário, “preconizava a realização pessoal e a participação social como caminho para a emancipação feminina”47.

Entretanto, não foi apenas na revista que Carmen expressou as concepções do feminismo e defendeu a causa feminista. Como escritora e jornalista de ampla visão ela fez muitos contatos pessoais com feministas do Brasil e de outros países, o que lhe permitia atualizar, aprofundar e avançar em sua reflexão, como também responder às indagações de centenas de suas leitoras. Em uma pesquisa sobre a vida dessa escritora, Ana Duarte afirma que no Brasil “sua atuação a colocou no cenário público, sendo chamada a participar de inúmeros eventos em rádio, televisão e jornais; deu entrevistas, fez conferências em diversas universidades, em associações de moradores, em clubes de mães”48, justamente num dos períodos mais dramáticos da vida do país, tornando-se uma das grandes colaboradoras para a formação do feminismo brasileiro que emergiu em 1975 como um movimento social.

Portanto, a ideia de que o feminismo no Brasil morreu após a conquista do voto e renasceu apenas no Ano Internacional da Mulher é, de certa forma, controvertida, pois subestima e reduz a atuação de muitas mulheres que, como Carmen, não apenas divulgavam ideias feministas, mas reuniam grupos e assumiam comportamentos dissonantes dos padrões sexuais normativos da época. Mas, por outro lado, não se pode generalizar como sendo feministas – na acepção dos feminismos hoje – todos os movimentos femininos organizados nesse período, pois nem todos questionavam a específica condição de subordinação e opressão das mulheres, como a divisão sexual do trabalho e os tradicionais papéis de gênero. Alguns movimentos até reforçavam certos estereótipos – comentam Céli e Ana

47 DUARTE, A. R. F. Carmen da Silva: o feminismo na imprensa brasileira. Fortaleza: Expressão, 2005, p. 114.

48 DUARTE, A. R. F. Carmen da Silva: o feminismo na..., p. 11-12.

144 Alice – ao utilizarem ideias e representações de virtudes domésticas e maternas para, a partir da condição de mãe, esposa e dona de casa, intervir no mundo público49.

Assim, uma visão retrospectiva sobre as diversas expressões desta primeira onda do feminismo leva a perceber que, embora ainda não se verifique a existência de um movimento feminista no Brasil, no sentido que as ciências sociais atribuem ao termo, pode- se, no entanto, falar de uma intensa mobilização feminista. Esta mobilização se expressou de diversas formas em diferentes espaços, apresentando graus diversificados de radicalidade e até mesmo diferentes ideologias, conforme a origem e os diferentes níveis de inserção sociocultural das respectivas protagonistas. A nova onda feminista que emerge nos anos de 1970, irá retomar o processo e dar novo impulso ao feminismo.

2 Segunda fase (Décadas de 1970-1980): Irrupção da segunda onda feminista

O feminismo que emerge no Brasil nos anos de 1970, se apresenta como um fenômeno histórico que, mesmo enunciando genericamente a emancipação feminina, se concretiza no âmbito de contextos socioculturais, políticos, religiosos e históricos bem específicos, dentro de limites e possibilidades concretas. A referência aos contextos de sua enunciação é que lhe dá o sentido. Em assim sendo, antes de tudo é preciso lembrar que ele surge sob o impacto do feminismo internacional e como decorrência do processo de modernização do Estado brasileiro, o que implicou, como já foi assinalado antes, na ampliação do sistema educacional e, por conseguinte, em um aumento das expectativas e demandas das mulheres brasileiras. Soares e Delgado mostram que, entre 1969 e 1975, a entrada das mulheres brasileiras na universidade aumentou cinco vezes, enquanto que o ingresso dos homens apenas duplicou. Em decorrência, houve uma maior incorporação das mulheres no mercado de trabalho e, paralelamente, uma maior atuação delas nos sindicatos, consequência de um aumento de 176% na sindicalização feminina, enquanto que a sindicalização masculina aumentou apenas para 87%50.

Hoje se sabe que esse processo foi alimentado, dentre outros motivos, pelo impacto dos livros O Segundo Sexo (1949), de Simone de Beauvoir, e A Mística Feminina (1969), de Betty Friedam, somados à luta dos negros americanos contra a segregação racial, aos

49 COSTA, A. A. O movimento feminista no Brasil.., p. 13; PINTO, C. R. J. Uma história do feminismo..., p. 43.

50 DELGADO M. B.; SOARES V. O movimento de mulheres na transição democrática. In: HELLMANN, M.

(Org.). Movimentos sociais e democracia no Brasil: sem a gente não tem jeito. Marco Zero: Labor, 1995, p. 81 e 87.

145 movimentos políticos contrários à guerra do Vietnã, à postura do movimento jovem da década de 1960 nos EUA, que colocou em xeque os valores conservadores da organização social; à efervescência cultural de 1968, em Paris, expressa nos novos comportamentos afetivos e sexuais influenciados pelo acesso a métodos contraceptivos; ao recurso das terapias psicológicas e da psicanálise; à oposição ao autoritarismo e à repressão do Estado brasileiro; à derrota da luta armada e ao processo de elaboração do que ela significou – nos níveis pessoal e político – para as mulheres; assim como às novas experiências cotidianas, que se conflitaram com o padrão tradicional de valores ancorado em hierarquias kiriarcais.

A tudo isso adicionem-se as marcas de gênero deixadas pela tortura, devido à violência específica a que foram submetidas muitas mulheres militantes, tanto sexualmente, como pela utilização da relação mãe e filhos como vulnerabilidade feminina51.

Todavia, além dos impasses e desafios relacionados à conjuntura repressiva em que surgiu, o feminismo brasileiro contemporâneo enfrentou dificuldades e desafios também de caráter estrutural, visto que as mulheres não constituem uma categoria universal. Pelo contrário, suas existências são entretecidas pela diversidade social e cultural e, por conseguinte, por fronteiras concretas que recortam o mundo culturalmente identificado como feminino. A fome, a miséria, o racismo, a desigualdade socioeconômica, são problemas que não podem ficar fora de qualquer luta específica, como a da transformação das relações de gênero. A segunda onda feminista no Brasil deve ser entendida dentro desse quadro referencial.

Souza-Lobo, Sarti, Costa e Sardenberg, caracterizam as décadas de 1970 a 1990 pela emergência da cidadania das mulheres, a partir de vários momentos distintos e ao mesmo tempo interligados, nos quais pode-se perceber como o feminismo brasileiro incorporou novas faces, novas vozes, novos matizes e novas estratégias de luta, na medida em que foi sendo desafiado pelas mudanças que ocorreram na sociedade brasileira52.

No documento FEMINISMO E EVANGELIZAÇÃO (páginas 142-146)