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O feminismo nas ONGs

No documento FEMINISMO E EVANGELIZAÇÃO (páginas 180-196)

Outra mudança que pode ser identificada no feminismo dos anos de 1990 está na multiplicidade de ONGs feministas que, segundo Céli, são “a mais pública expressão do

155 POTIGUARA, E. O Brasil e suas mulheres maravilhosas. Disponível em: http://www.elianepotiguara.org.br/

entrevistas.html. Acesso em 30/3/2008. Potiguara relata que quando o Grumin começou a refletir acerca das situações de injustiça de gênero em relação às mulheres indígenas, um cacique reagiu dizendo que “não existe gênero entre os povos indígenas”. Houve casos de homens indígenas que, em contraposição, fundaram organizações de mulheres e colocaram na liderança suas esposas, filhas ou irmãs, acirrando a competição entre as mulheres. No entanto, aos poucos as próprias mulheres foram percebendo que estavam sendo usadas e começaram a mudar de posição reagindo contra a dominação e imposição masculina indígena.

156 WAIKANÃ, G. Mulheres indígenas na luta pela equidade de gênero. ANEXO: Aliança de Parentesco, p. 34.

180 feminismo na virada do século”157, embora muitas mulheres continuem a se articular mediante uma pluralidade de organizações, movimentos, sindicatos partidos, redes e outros grupos. Nos primeiros anos, as ONGs se voltaram para os problemas ambientais com o objetivo de introduzir as questões de gênero nos debates preparatórios à Conferência Internacional do Rio de Janeiro sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente. Com esse intuito elas elaboraram farto material sobre o tema e capacitaram muitas organizações e grupos de mulheres para tratarem do assunto e implantarem ações concretas.

Posteriormente surgiram diversas ONGs feministas que atuam junto às mulheres negras, indígenas, trabalhadoras rurais, prostitutas, portadoras de HIV, extrativistas, recicladoras, lavadeiras e parteiras158. Atualmente, muitas ONGs feministas se ocupam com trabalhos na área da violência contra a mulher, da saúde, dos direitos reprodutivos, da política, do empoderamento das mulheres, visando implementar políticas que constam nos programas de ação das Conferências nacionais e internacionais da mulher159.

As ONGs feministas são compostas de mulheres universitárias e de profissionais da classe média, muitas trabalhando diretamente com grupos de mulheres dos setores populares. Conforme Alvarez, elas distinguem-se de outras ONGs não feministas em dois aspectos essenciais: primeiro, porque não concebem seu trabalho só como ajuda a outras mulheres, mas também com o propósito de mudar as relações de gênero que limitam suas vidas; segundo, as feministas das ONGs se autocompreendem como parte de um

157 PINTO, R. C. Uma história do feminismo no Brasil, p. 97.

158 O Centro Ativo de Integração do Ser – CAIS é uma ONG feminista criada em 1991, com sede em Olinda-PE, que já capacitou milhares de parteiras nas regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e outras regiões do Brasil, trabalhando com treinamento e adequação de métodos de higiene e instrumentalização das parteiras, e procurando desenvolver uma consciência de gênero. O objetivo é valorizar e atualizar a tradição das parteiras tradicionais como referência cultural humanizadora do parto e do nascimento, lutar pela implantação dos direitos reprodutivos e pela democratização das relações de gênero. Em 1996, o CAIS fundou a Rede Nacional de Parteiras Tradicionais que ele coordena e conta com dezenas de associações espalhadas pelo Norte e Nordeste do país. (Ver: Boletim Mulher e Saúde, São Paulo, SOF, n. 24, p, 12, maio 2000). Há outras ONGs de alcance nacional como THEMIS, das Promotoras Públicas Populares.

159 Existem, contudo, ONGs feministas especializadas também nas áreas da educação popular entre mulheres, dos direitos (advocacy), do assessoramento a parlamentares, de culturas alimentares alternativas, da preservação ecológica, do desenvolvimento sustentável e do planejamento estratégico. Há também aquelas se dedicam a assessorias a movimentos sociais mistos, a outras ONGs e a órgãos públicos, para a incorporação de uma política de gênero em suas análises e práticas. Outras assessoram organizações de mulheres tanto em projetos pontuais como ao longo de processos, contribuindo, também, com a produção de materiais de apoio como livros, cartilhas, vídeos e programas de rádio, privilegiando a formação de lideranças no campo das relações sociais de gênero, com recortes de classe, étnico-racial e geracional, a partir da respectiva área de atuação de cada ONG.

Embora existam ONGs feministas que têm como preocupação o trabalho com jovens e com homens, é ainda muito restrito o número delas. No entanto, com o aumento da mortalidade infantil, da gravidez de adolescentes, de doenças sexualmente transmissíveis, de mortes por HIV e abortos sem segurança, muitas ONGs feministas incluíram em seus programas ações concretas com as jovens, na área da educação sexual (Ver: ABRAMORAY, M.; CASTRO, M. G. Engendrando um novo feminismo..., p. 41; SOARES, V. As muitas faces do feminismo..., p. 46; PEREIRA, H.; PITANGUY, J. In: BORBA, A. O feminismo no Brasil de hoje. Estudos Feministas, v. 2, n. 2, p. 432-437, jul.-dez. 1994).

181 movimento maior de mulheres, que abrange outras feministas autônomas, ou grupos e organizações de mulheres populares, com e para quem trabalham. É esse “hibridismo” que até agora sustentou a capacidade crítica das ONGs feministas frente às políticas neoliberais do Estado160.

Essa dupla identidade das ONGs é essencial para sua eficiência tanto na esfera da política em geral, quanto na das políticas públicas em particular, ou no âmbito cultural- simbólico, em que as relações de gênero se estabelecem, se desfazem e se recompõem constantemente. A ligação com a base, com a pluralidade e diversidade de atoras(es) no campo feminista e com a sociedade civil é que possibilita o trabalho das ONGs feministas no universo das políticas públicas, e propicia o respaldo da sociedade no campo sociopolítico e cultural, onde se constroem e se desconstroem as assimetrias entre os sexos.

Por outro lado, o feminismo das ONGs, como já foi visto antes, trouxe dois dilemas para as feministas: preservar a autonomia do movimento feminista e sua força subversiva, sem vínculos com o Estado, ou institucionalizá-lo e enfrentar os riscos da dependência de programas financiados pelos governos, o que pode fazer com que as ONGs se tornem simples executoras de programas governamentais, enfraquecendo, assim, sua dupla identidade e seu caráter de subversão ao Estado. É preciso ter presente que o modelo neoliberal fragmenta, enfraquece e torna o Estado cada dia mais omisso na esfera das políticas sociais. Lembra-nos Hildete Pereira que as ONGs surgiram no vácuo deixado pelo Estado no campo das políticas públicas. O movimento feminista no Brasil, por sua vez, sempre teve o Estado como interlocutor, exigindo que ele garanta os direitos constitucionais. Portanto, a preocupação em relação às ONGs feministas, é que elas não interceptem a interlocução dos movimentos de mulheres com o Estado, e isso, de fato, não acontece no Brasil161.

Outra questão a ser pensada diz respeito à representatividade do movimento feminista. Embora este tenha adquirido um rosto marcadamente onguisado, as ONGs não representam todo o movimento. Como já foi visto, há uma multiplicidade de espaços de atuação das feministas. Entretanto, se de um lado ampliam-se os espaços de articulação, o que é muito positivo, de outro, corre-se o risco da fragmentação das práticas. E diversificar sem fragmentar, adverte Maria Lúcia Pereira, exige a articulação das práticas locais com as

160 ALVAREZ, S. E. Feminismos latinoamericanos..., p. 276.

161 PEREIRA, H. O feminismo no Brasil de hoje, p. 435.

182 globais e um espaço comum de discussão e encaminhamento de lutas que interessem à maioria das mulheres162.

3.5 O feminismo na esfera política

Outro campo privilegiado pelas feministas nos anos de 1990 e neste início de século é o da política. Mas a luta política das feministas não ocorre só nos partidos e tampouco é luta só das feministas dos partidos. Há uma variedade de canais e níveis políticos de atuação. A trajetória política do feminismo brasileiro mostra que este se constituiu como uma política feminista, ou como um projeto político que norteia o conjunto das políticas em favor das mulheres e manifesta sua influência em vários campos, como o do conhecimento, da cultura, do direito, da legislação e da própria política como tal. Essa articulação iniciou-se nos anos de 1980, com o processo de preparação para a Assembleia Constituinte, e continuou com a participação das feministas em conferências e fóruns nacionais e estaduais, bem como numa presença significativa nos aparelhos do Estado e em organismos internacionais.

Nesse processo, sentiu-se a necessidade de um órgão para articular as políticas de gênero no âmbito governamental; um desafio que exige clareza em delimitar os espaços de ambas as partes, assim como a relação entre elas, além dos critérios de representatividade das mulheres nesses espaços. Assim, em 1995, foi reinstituído o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, que promoveu o debate público e nele interveio, propondo leis e negociando políticas públicas para as mulheres, constituindo-se num interlocutor com autoridade face às instâncias do governo. Seguindo a Plataforma de Ação aprovada no Cairo e em Beijing, o CNDM elaborou o programa Estratégias da Igualdade visando desenvolver ações no campo da educação, do trabalho, da saúde, do combate à pobreza e à violência, da participação política das mulheres e da comunicação163.

162 PEREIRA, M. L. ONGs: caminhos e descaminhos, Folha Feminista, n. 4, p. 3, jul. 1999.

163 Muitas destas medidas foram efetivadas através dos Conselhos Estaduais e Municipais e das Coordenadorias e assessorias ministeriais e intersetoriais, o que denota um avanço na conquista de espaços políticos institucionais. Hoje as ações são coordenadas pela Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres, criada em 2003, com a função de desenvolver ações conjuntas com todos os Ministérios e Secretarias Especiais. Este organismo governamental, cuja articuladora tem status de Ministra, tem como tarefa e desafio a incorporação das especificidades das mulheres nas políticas públicas e o estabelecimento das condições necessárias para sua plena cidadania. Uma importante conquista das feministas no campo político ocorreu em 2004, quando a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, promoveu a Primeira Conferência Governamental de Políticas Públicas para as Mulheres, cujo processo iniciou-se com as Conferências Estaduais e Plenárias Municipais. Em todo o país, mais de cento e vinte mil participantes discutiram sobre a realidade das mulheres brasileiras, bem como sobre diretrizes e propostas para se enfrentar as discriminações, a violência doméstica e as desigualdades e

183 Outro importante passo político foi dado em 1998, por ocasião da comemoração dos cinquenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, quando o CNDM, iniciou uma extensa campanha de conscientização com o tema Os Direitos das Mulheres são Direitos Humanos, que culminou com a entrega à ONU de uma Declaração dos Direitos Humanos desde uma Perspectiva de Gênero, elaborada pelas próprias mulheres164. Com efeito, nessa nova fase, o CNDM conseguiu articular e impulsionar importantes conquistas. Com seu apoio as feministas criaram, em 1989, o Centro Feminista de Estudos e Assessoria–Cfêmea, uma ONG feminista autônoma, pioneira na monitoria de Projetos de Lei e na assessoria a parlamentares sobre as questões de gênero, a busca de cidadania plena para as mulheres, a defesa dos seus direitos assegurados na Constituição e a regulamentação e ampliação dos mesmos. Desde 1993 ele está credenciado pelas mesas da Câmara e do Senado para acompanhar o processo legislativo.

Em decorrência do trabalho realizado junto ao Congresso Nacional, o Cfêmea tornou-se ponto de referência nacional e internacional, sendo consultado por parlamentares e organismos governamentais, por pesquisadoras(es) e estudantes, pela mídia e por lideranças de conselhos, redes, movimentos e associações de mulheres. Seu trabalho prioritário, no entanto, é junto às lideranças políticas feministas165.

discriminações de classe, gênero, raça, geração e outras. Ao final desse processo, foi lançado o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, com objetivos, prioridades e metas bem definidas. Este é um importante instrumento para a construção da cidadania das mulheres. A partir dele, os movimentos de mulheres passaram a ter como monitorar os compromissos assumidos pelo governo com relação aos direitos das mulheres. Em agosto de 2007, cerca de três mil mulheres, delegadas dos Estados e Municípios e também da sociedade civil, novamente se reuniram na Segunda Conferência Governamental das Mulheres Brasileiras, para avaliar a implementação do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres lançado em 2004, pactuado pelos Estados e Municípios, mas, na realidade, com pouca efetivação. (Mais informações em: https:www.planalto.gov.br/

ccivil_03/MPV/antigas2003/103.htm).

164 COMITÊ LATINO-AMERICANO E DO CARIBE PARA A DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES – CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS DA MULHER. Declaração dos Direitos Humanos:

uma perspectiva de gênero. Documento apresentado à Organização das Nações Unidas em 10-12-1998.

165 O Cfêmea é dirigido por um colegiado de mulheres e tem sua sede em Brasília. Além de publicações específicas de sua área ele edita mensalmente, há dezenove anos, o Jornal Fêmea. Embora seu trabalho específico seja junto ao Poder Legislativo, onde atua de forma democrática, suprapartidária, autônoma e comprometida com o movimento de mulheres, é importante destacar que ele tem inserido cada vez mais em sua agenda as demandas das mulheres negras, das trabalhadoras urbanas e rurais e de outras categorias de mulheres excluídas. São dezenove anos de avanços e de resistência contínua às tentativas de negação dos direitos das mulheres pelo Estado brasileiro. Se olharmos essas quase duas décadas que ficaram para trás, veremos que as trabalhadoras rurais em regime de economia familiar, até 1992, não tinham direito ao salário maternidade e, portanto, à licença gestante; que até 1996, quem decidia por uma esterilização tinha que fazê-la em hospitais privados; que os casais que vivam em união estável não eram considerados uma família e, por isso, não tinham direitos decorrentes dessa relação; que a violência contra as mulheres era considerada um crime de menor potencial ofensivo. A Lei Maria da Penha, ou Lei 11.340/2006, é hoje um dos recursos mais importantes para o enfrentamento da violência doméstica e familiar que atinge milhões de mulheres em todo o Brasil. Enfim, esses direitos, entre outros conquistados, já mudaram e continuam mudando a vida de uma multidão de mulheres em nosso país (Mais dados no Jornal Fêmea, n. 151, p. 2-7, ago.-dez. 2006 e n. 152, p. 2, jan.-jul. 2007).

184 Por fim, cabe destacar a Marcha Mundial das Mulheres como uma das mais importantes articulações ou um novo sujeito político estratégico, aglutinador do feminismo brasileiro neste início de século. Como foi referido no capítulo anterior, a Marcha mobilizou milhares de mulheres de todos os países em ações concretas contra a pobreza e a violência sexista, por meio de um importante movimento de repúdio às desigualdades sociais e ao domínio de uma ordem econômica mundial, que serve a poucos enquanto empurra para a miséria milhões de seres humanos. As mulheres propõem um mundo fundado na justa distribuição das riquezas, na posse da terra e na soberania dos povos dos países pobres, frente aos pretensos donos do mundo.

No Brasil, a Marcha contou com a participação de organizações de mulheres de todos os Estados; juntou setores dos movimentos autônomo, popular, sindical, rural e urbano de mulheres; ampliou o debate econômico entre as mulheres e as levou para as ruas; construiu uma plataforma nacional, a Carta das Mulheres Brasileiras, exigindo terra, trabalho, direitos sociais, autodeterminação das mulheres e soberania do país. O objetivo imediato foi fortalecer o protagonismo das mulheres, visibilizar sua participação nas lutas sociais em curso no país, fortalecer a luta pela erradicação da pobreza e preservar a vida das pessoas e do meio ambiente. Em visita ao Brasil, Anne McBrearty, uma das coordenadoras da Marcha/2000, salientou que as mulheres brasileiras têm uma trajetória histórica de lutas muito forte, corajosa e determinada: “Quando quero dar um exemplo de organização da Marcha Mundial, cito sempre o Brasil, pela capacidade que vocês têm de reunir num só movimento vários setores organizados: populares, sindicais, religiosos e feministas. Com poucos recursos vocês mobilizam muitos grupos de mulheres dos vários Estados”166.

De fato, as propostas da Marcha têm encontrado eco em diversos setores dos movimentos sociais e de mulheres em todo o Brasil. Ao levarem para as ruas suas demandas, as mulheres brasileiras entendem que não é suficiente exigir igualdade só entre os sexos; é preciso lutar contra todo tipo de opressão e exclusão entre classes sociais,

166 McBREARTY, A. Entrevista à redação do Boletim da Marcha, n. 3, p. 3. São Paulo, SOF, 15 a 29/6/2000.

Após a primeira fase de articulação da Marcha, as brasileiras definiram três temas prioritários para o seu prosseguimento: o direito à saúde pública (com destaque para o atendimento à saúde da mulher), a luta contra a violência sexista (com destaque para a luta contra a impunidade) e o aumento do salário mínimo. Combater a pobreza e lutar por uma justa distribuição de renda implica em articular uma outra política econômica e um outro modelo de desenvolvimento, que seja ecologicamente sustentável e centrado na melhora das condições de vida da maioria da população. Ultimamente, em razão do aumento da fome no mundo, a Marcha se centrou na questão da soberania alimentar e na crise do sistema financeiro, que afeta diretamente a vida das mulheres, sobretudo as das populações mais pobres.

185 grupos, etnias, povos e gerações. Marchar por um mundo sem violência implica em procurar meios para erradicar a violência contra as mulheres, originária de todas as demais:

social, política, econômica, racial, cultural e religiosa. As lutas específicas das mulheres são parte das lutas pela transformação geral de toda a sociedade e, portanto, de lutas anticapitalistas, anti-imperialistas e antirracistas, contra todas as formas de discriminação, exploração e violência; em suma, uma ação integrada por um mundo mais humano e equitativo, como foi anunciado na primeira edição da Marcha e continuou nas posteriores:

Marchamos para mostrar que a participação ativa das mulheres na vida política, econômica, social e cultural é ponto de partida para nossa libertação e a de nossos povos. Marchamos para que cada qual tenha a sua voz e vez, para que cada uma de nós tenha do que viver. Iniciamos o novo século lutando para que os direitos fundamentais das mulheres sejam reconhecidos como inseparáveis dos direitos humanos universais, para que a igualdade, a justiça, a paz e a solidariedade sejam valores dominantes. Temos mais que 2000 razões para marchar. Porque queremos mudar a vida das mulheres no mundo todo. Porque queremos mudar o mundo167.

No decorrer de seus quase dez anos a Marcha tem ampliado seu raio de atuação sociopolítica e influenciado vários movimentos mistos, contribuindo para unir e fortalecer mulheres camponesas e urbanas, gerando espaços de articulação e mobilização entre elas e os movimentos sociais brasileiros. Na medida, porém, em que ela se expande e conquista novos espaços, colocam-se novos desafios a serem enfrentados e novas formas de violência contra as mulheres e outras categorias de pessoas. O tráfico sexual e o comércio da prostituição, a mercantilização do corpo das mulheres, o racismo, a homofobia, os fundamentalismos, a educação sexista, a precariedade no trabalho e a desigualdade salarial, a soberania alimentar, a reforma agrária, o agronegócio e a agroecologia, o livre comércio, a dívida nacional, a militarização, a ameaça à biodiversidade, enfim, são temas que ocupam a agenda feminista, com previsão de um intenso trabalho pela frente, como preconiza Ávila:

a estruturação da ordem patriarcal, tanto no Brasil como na América Latina e Caribe, está totalmente imbricada com o desenvolvimento dos sistemas capitalista e racista, que não se constituem como dimensões separadas. Isto, de saída, já coloca um sentido para a nossa luta, pois as mulheres nessa imbricação não são apenas diferentes [...], mas também são desiguais.

Portanto, o sentido da luta é antipatriarcal, mas requer um sentido antirracista e uma luta contra as desigualdades de classe. Mas o patriarcado é também fundado no modelo da heterossexualidade e, então, temos que lutar também contra a homofobia. Enfim, a pobreza e a falta de poder das mulheres, a dupla jornada de trabalho e a falta de valor do trabalho doméstico,

167 SEMPREVIVA ORGANIZAÇÃO FEMINISTA. Marcha Mundial das Mulheres contra a pobreza e a violência sexista e pela distribuição da riqueza. Editorial, Folha da Marcha, p. 1, 8/3/2000.

186 a violência contra as mulheres, a repressão contra as mulheres lésbicas, o racismo contra as mulheres negras e indígenas, nós transformamos todas essas questões, e muitas outras, [...] em pautas de lutas [...], uma luta que a cada conquista tem que avançar e radicalizar, no sentido de ir às raízes da discriminação e da opressão168.

Conclusão

Vimos que em sua trajetória, o feminismo brasileiro passou por fases, flutuações, rupturas, diálogos, reatamentos e mudanças que, dialeticamente, foram delineando-lhe novas faces a partir da incorporação da pluralidade e da diferença. Algumas de suas características amadureceram e são evidentes; outras, interpeladas pelas novas realidades, se transformaram; outras ainda, apenas se esboçam e abrem novos caminhos, precisando, assim, de maior acuidade para serem notadas.

Com efeito, o feminismo brasileiro mudou, e muito, não apenas em relação ao movimento sufragista e emancipacionista que surgiu no século XIX, mas também em relação à nova onda que emergiu na segunda metade do século XX e se estendeu até o início dos anos de 1990. Para ser mais precisa, como bem nota Alice Costa, ele vem mudando cotidianamente, “a cada enfrentamento, a cada conquista, a cada nova demanda, em uma dinâmica impossível de ser acompanhada por quem não a vivencia em suas entranhas”169.

Tendo, na primeira e segunda onda, se implantado nos setores femininos abastados e letrados de nosso país – no sentido atribuído por Paulo Freire a este termo – e posteriormente nos setores médios, o ideário e as propostas feministas expandiram-se paulatinamente, na medida em que se articularam com os setores populares e suas organizações, configurando-se como um feminismo interclasses, embora este conceito tenha sido (e ainda é) questionado por algumas feministas socialistas.

É comum ouvir que, por sua dimensão continental, o Brasil é marcado por diferenças não somente geográficas, mas também socioeconômicas, políticas, culturais e religiosas que se revelam numa variedade de Brasis em sua composição. Essa heterogeneidade leva-nos a perceber que há diferentes interesses e formas de compreender e de interferir na realidade. Por conseguinte – como tentamos mostrar neste capítulo – não se pode falar do feminismo brasileiro como um bloco monolítico e, menos ainda, reduzir as

168 ÁVILA, M. B. Os sentidos da ação transformadora feminista. Disponível em: http://www.cfemea.org.br/

temasedados/detalhes.asp?IDTemasDados=172. Acesso em 18/4/2008.

169 COSTA, A. A. A. O movimento feminista no Brasil..., p. 9.

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