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Inserção do feminismo no movimento popular e no movimento rural

No documento FEMINISMO E EVANGELIZAÇÃO (páginas 168-172)

Desde a fundação da Central de Movimentos Populares–CMP, em 1993, as mulheres se preocupam com a discussão e incorporação do conceito de gênero, numa perspectiva feminista, nas ações e reivindicações dos movimentos incorporados à Central.

Esse novo tipo de abordagem resulta da organização das mulheres em um Setorial Nacional, estruturado, porém, nos Estados, que articula militantes de outros movimentos com as dos movimentos autônomos de mulheres filiados à Central. O Setorial se fortaleceu internamente, aumentou o número de mulheres nas direções estaduais e nacional da CMP e se propõe aproximar o feminismo dos movimentos populares, convocando-os a reverem as suas ideias e práticas; atua para que o conjunto da CMP assuma a luta contra a discriminação das mulheres; incentiva as mulheres a discutirem sua realidade e a apresentarem propostas para melhorar a vida de todas as mulheres, e ainda realiza oficinas nos bairros sobre saúde, violência, sexualidade, autoestima, cotidiano das mulheres e relações de gênero.

Além de investir na formação política das mulheres e acompanhar o cotidiano da CMP, o Setorial participa das mobilizações do movimento feminista, apresentando, porém,

125 PINTO, R. C. Uma história do feminismo no Brasil, p. 93.

168 seu rosto próprio126, enriquecendo-o com a diversidade de práticas das mulheres da base.

No II Encontro Nacional de Mulheres, que abordou o tema Construindo elos de um feminismo popular, percebe-se o caminho percorrido e as propostas para se avançar:

[...] tivemos importantes avanços na organização de mulheres, na articulação dos diferentes grupos e Estados, na formação feminista e na questão da saúde da mulher. Temos participado de todos os momentos da vida da Central. [...] Estivemos presentes também nos espaços feministas nacionais e latino-americanos [...]. Discutimos como a CMP pode trabalhar as questões da mulher e incorporar a perspectiva de gênero em todos os movimentos. Agora queremos fortalecer a atuação das mulheres na CMP, tirar bandeiras de lutas que permitam ações unificadas em nível nacional e fortalecer o Movimento Popular de Mulheres127.

Um dos desafios que o Setorial enfrenta é o de construir um campo mais amplo de interlocução e práticas entre as mulheres. Daí a iniciativa das feministas da CMP, de se juntarem às mulheres da CUT, às mulheres negras, às trabalhadoras rurais e a tantas outras;

isto, sem dúvida, facilita não só a articulação enquanto movimento de mulheres, mas também contribui para inserir o feminismo em um projeto global de transformação da sociedade ou –como elas expressam – “para que outros setores sociais também incorporem o feminismo”128. Entretanto, percebe-se que as mulheres da CMP também têm certo cuidado com a expressão “feminismo popular”, e querem deixar claro que tipo de feminismo estão postulando,

[...] para não se pensar que há um feminismo popular e um feminismo feminista, como se o feminismo popular fosse menos feminista”; [...] é muito importante a discussão que estamos fazendo de querer encontrar a ‘cara feminista da Central’; [...] muitas vezes nos colocamos no movimento feminista sentindo-nos um pouco menores, como se a gente não fosse tão feminista; a gente acaba introjetando essa imagem que somos menos feministas porque estamos dentro de estruturas mistas; [...] as mulheres que se colocam como feministas nesses espaços, se propondo a enfrentar cotidianamente o conflito das relações de gênero, do machismo, são muito corajosas129.

Percebe-se que o Setorial tem avançado e alcançado bons resultados, como a mudança na linguagem sexista e na relação com os companheiros da CMP, assim como a maior autoestima e autoconfiança das mulheres ao assumirem cargos na direção, além de outras conquistas. No entanto, enfatizam elas, “o ponto onde mais avançamos foi na

126 CARDOSO, P. O feminismo na Central de Movimentos Populares, Folha Feminista, n. 9, p. 3, nov. 1999.

127 SETORIAL DE MULHERES DA CMP. Programa do II Encontro Nacional. (Arquivo). São Paulo, 12-14 jul. 1998.

128 RELATÓRIO (Arquivo). Balanço e desafios atuais do feminismo. II Encontro Nacional do Setorial de Mulheres da CMP. São Paulo, 12-14 jun. 1998, p. 11.

129 RELATÓRIO. Balanço e desafios atuais..., p. 12.

169 formação feminista. E o grande desafio para a CMP é aparecer com dois rostos: de homem e de mulher. Daí a importância de formar também os homens para o feminismo”130.

Por sua vez, a situação da mulher rural foi tratada na Conferência Mundial da Década das Nações Unidas para a Mulher (1980), que visava avaliar a implementação do Plano de Ação Mundial adotado em 1975 na Conferência do México sobre a Mulher. A Conferência teve como subtemas as questões do emprego, da saúde e educação.

Especificamente em relação à mulher rural, o Plano insistia em que os governos formulassem políticas agrícolas que incluíssem “a participação das mulheres rurais, fornecendo-lhes tecnologia adequada, garantindo seu acesso à propriedade da terra e a financiamentos”131, tendo em consideração as mudanças ocorridas no cenário mundial em relação às mulheres.

Como foi visto antes, a atuação das feministas brasileiras até a década de 1980 foi junto às mulheres urbanas. Quem desempenhou um papel fundamental na organização das mulheres rurais foi a Igreja Católica, inspirada pela Teologia da Libertação, estimulada pelas assembleias de Medellín e Puebla, e tendo as religiosas como articuladoras e alimentadoras do processo, e como canal entre as demandas de emancipação dos movimentos de mulheres em geral e as demandas das mulheres rurais. Aos poucos as CEBs e a Pastoral da Terra também passaram a dar mais atenção para a situação das mulheres da área rural.

É importante ressaltar que mediante esses grupos, as mulheres rurais foram ampliando sua consciência e despertando para questões sociais; orientadas pelas religiosas, elas começam a se inserir nos sindicatos, nos quais criaram um espaço feminino para canalizar suas reivindicações específicas. Na Constituinte de 1986-1988 elas se aliaram e foram apoiadas pelo departamento de mulheres da Central Única dos Trabalhadores, que se tornou um canal importante para as trabalhadoras rurais expressarem suas demandas e propostas e conhecerem melhor o feminismo.

Outro passo nesse processo foi a criação de canais próprios, isto é, de associações e movimentos de mulheres rurais autônomos, mediante os quais elas mesmas passaram a conduzir suas reivindicações. Assim nasceu, em 1989, no Rio Grande do Sul, o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais, hoje presente em todo o país, que visa conquistar a cidadania das mulheres do campo por meio do reconhecimento da sua profissão, da

130 RELATÓRIO. Balanço e desafios atuais..., p. 14.

131 TABAK, F. Autoritarismo e participação política da mulher, p. 43-44.

170 obtenção de direitos sociais e do seu empoderamento como trabalhadoras. As ações consistem tanto em demandas dirigidas ao governo como na formação das integrantes do movimento132.

Apesar das dificuldades de intercâmbio e de informações, as trabalhadoras rurais têm mostrado sua força, eficiência, coragem e capacidade de articulação em eventos que chamam a atenção do mundo e cobram políticas concretas dos governos, como a Marcha das Margaridas e o I Encontro Latino-Americano e do Caribe da Mulher Trabalhadora Rural, realizado em Fortaleza–CE, em 1996, quando foi criada a Rede das Mulheres Trabalhadoras Rurais da América Latina e do Caribe, sediada no Brasil. É fundamental o fortalecimento da organização e articulação política dessas mulheres em nível nacional e continental, tendo em vista o atual contexto de globalização. A Rede possibilita uma reflexão e ação conjunta frente às políticas globalizadas e opressivas e seus reflexos na vida das mulheres rurais, as quais “desafiam as distâncias, o isolamento, o analfabetismo, a fome e as políticas opressivas, com coragem, força e altivez”133 a fim de se fortalecerem e se articularem.

A Marcha das Margaridas aconteceu pela primeira vez em 2000, em adesão à Marcha Mundial de Mulheres, e levou vinte mil trabalhadoras rurais a Brasília:

agricultoras, sem-terra, indígenas, extrativistas, pescadoras, artesãs, quilombolas, assalariadas, diaristas e outras. Desde então, tornou-se uma das mais importantes manifestações do movimento de mulheres134. Suas reivindicações combinam a luta

132 Uma visão mais abrangente da origem e do desenvolvimento do MMTR encontra-se em: SCHAAF, Alie van der. Jeito de mulher rural: a busca de direitos e da igualdade de gênero no Rio Grande do Sul. Passo Fundo:

UPF, 2001. Em nível mundial, a preocupação com a mulher rural aparece timidamente após a 4ª Conferência Mundial das Nações Unidas sobre a Mulher (Beijing/1995), quando a Federação Internacional de Produtores Agrícolas, a Fundación Cumbre Mundial de Mujeres Rurais e a União Mundial das Mulheres Rurais, preocupadas com a situação das camponesas, propuseram o dia 15 de outubro como o Dia Mundial da Mulher Rural, visando valorizar e visibilizar as lutas e as reivindicações das trabalhadoras rurais. As brasileiras, porém, preferiram o dia 12 de agosto, em homenagem à ex-líder sindical Margarida Alves, assassinada a mando de latifundiários.

133 ALMEIDA, V. Dia Mundial da Mulher Rural. Jornal Fêmea, n. 104, p. 10, set. 2001.

134 A Marcha das Margaridas é inspirada na luta de Margarida Alves. É organizada pela Comissão Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais – da Contag – pelo MMTR e pela Articulação Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais; mas não faltam as alianças, parcerias e apoio provindos de várias ONGs e organizações feministas, além de muitos outros movimentos de mulheres rurais e não rurais do Brasil, da América Latina e do Caribe e, até mesmo da Marcha Mundial de Mulheres. Esse apoio é muito importante para se fortalecer e ampliar as relações entre as organizações de trabalhadoras rurais, movimentos feministas e entidades comprometidas com a construção de um desenvolvimento rural que tem como parâmetro de sustentabilidade a igualdade entre mulheres e homens. A segunda edição da Marcha das Margaridas, em 2003, reuniu em Brasília cerca de quarenta mil mulheres de todo o Brasil. Desta vez foi entregue diretamente ao presidente da República, na presença dos ministros da Casa Civil e do Desenvolvimento Agrário uma pauta de reivindicação com mais de cem itens. No entanto, mais do que uma simples entrega de pauta, as trabalhadoras rurais demonstraram a importância de ser um sujeito político nos processos de negociação das políticas públicas voltadas para um desenvolvimento rural sustentável.

171 feminista com a luta por mudanças estruturais na sociedade. Mostra o protagonismo das mulheres do campo, mobilizando-se a partir de temas do seu cotidiano: manejo sustentável do meio ambiente, valorização permanente do salário mínimo, saúde pública e de qualidade, soberania alimentar, fim da violência sexista e igualdade de direitos entre homens e mulheres, além de outras políticas públicas voltadas para a população rural, e em particular, para as mulheres rurais no seu todo135.

No documento FEMINISMO E EVANGELIZAÇÃO (páginas 168-172)