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As mulheres no movimento de Jesus

No documento FEMINISMO E EVANGELIZAÇÃO (páginas 196-200)

A situação das mulheres na sociedade palestinense era pior que a da maioria das pessoas excluídas: não lhes era permitido participar ativamente da vida social e religiosa, já que no judaísmo do tempo de Jesus elas eram consideradas social e religiosamente inferiores por não serem circuncidadas e, consequentemente, não participarem da Aliança.

Por essa razão, não estavam obrigadas a seguir os mandamentos da Torah tais como: ir em peregrinação a Jerusalém para as festas da Páscoa, de Pentecostes e das Tendas; tocar o schofar no Ano Novo ou recitar diariamente o Shemá, além de outros. Sobretudo estavam dispensadas de estudar a Torah, o que era considerado perigoso para uma mulher.

15 FIORENZA, E. S. As origens cristãs..., p. 99; FIORENZA, E. S. Discipulado de iguais: uma ekklesia-logia feminista crítica da libertação. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 196-197; FIORENZA, E. S. O papel da mulher no movimento cristão primitivo. Concilium, n. 111, fasc. 1, p. 9, 1976; SÖLLE, D. Libertada para a liberdade e condenada ao silêncio: a imagem da mulher no cristianismo. Estudos Teológicos, v. 31, n. 1, p. 79, 1991.

HOORNAERT, E. O movimento de Jesus, p. 45; THEISSEN, G. Sociologia do movimento de Jesus, p. 33-34;

AUBERT, J. M. La mujer: antifeminismo y cristianismo. 2ª edição. Barcelona: Herder, 1976, p. 194; GEBARA, I. Pensar a rebeldia cristã a partir das relações de gênero. In: SOUZA, S. D. (Org.). Gênero e religião no Brasil:

ensaios feministas. São Bernardo do Campo: Rudcolor, 2006, p. 136; MOYA, M. R.; RENARD, H. Pensando en las mujeres..., p. 31-32.

196 Entretanto, deviam sujeitar-se a todas as proibições da Torah e ao rigorismo da legislação civil e penal, inclusive à pena de morte, assim como às rigorosas prescrições de purificação que, devido à sua condição biológica de mulher, estavam obrigadas a observar16.

Além de tudo, eram pejorativamente identificadas com Eva, a porta pela qual o pecado e a morte entrara no mundo; por essa razão, cabia-lhes lidar com os corpos dos defuntos e muitas vezes encaminhar o cortejo fúnebre até o local do sepultamento.

Juridicamente eram equiparadas aos menores e aos escravos, todos governados por um senhor. Conforme os costumes vigentes deviam viver mais restritas ao ambiente doméstico, embora no campo elas tivessem um pouco mais de liberdade. No templo de Jerusalém e nas sinagogas ficavam em local separado e sua participação na liturgia era tão somente como ouvintes. Não podiam ensinar e sequer pronunciar a bênção às refeições17. É oportuno mencionar que todo judeu piedoso rezava três vezes ao dia agradecendo a Deus por não ter nascido gentio, escravo ou mulher18.

Neste contexto, a prática de Jesus em relação às mulheres inovou e causou impacto (Jo 4,27); com seu comportamento profundamente humano ele superou o androcentrismo e o sexismo do seu tempo. Sua atitude em relação às mulheres foi de atenção, acolhimento,

16 JEREMIAS, J. Jerusalém no tempo de Jesus: pesquisas de história econômico-social no período neotestamentário. São Paulo: Paulinas, 1990, p. 489-493. No entanto, existem outras pesquisas como a de Bernadette Brooten J. Women learders in the ancient synagogue: inscriptional evidence and backgraund issues.

Dissert. Brown Judaic Studies. Chico, Scolars Press, 1982, que vêm resgatando outros aspectos até recentemente desconhecidos a respeito da liderança de mulheres em diversas sinagogas.

17 FIORENZA, E. S. O papel da mulher no movimento cristão..., p. 9-10; JEREMIAS, J. Jerusalém no tempo de Jesus..., p. 483-485, 491-492; BOFF, Leonardo. O rosto materno de Deus: ensaio interdisciplinar sobre o feminino e suas formas religiosas. Petrópolis: Vozes, 1979, p. 77-78; PETRY, Z. L. As mulheres: testemunhas do Reino. Estudos Bíblicos, n. 30, p. 48, 1991; TEPEDINO, A. M. As discípulas de Jesus. Petrópolis: Vozes, 1990, p. 82; TOMITA, L. E. A autoridade das mulheres na evangelização primitiva. Estudos Bíblicos, n. 31, p. 48, 1991; RAMING, I. Da liberdade do Evangelho à Igreja estratificada de homens. Concilium, n. 154, fasc. 4, p. 5- 15, 1980; MALONEY, L. M. A questão da diferença feminina na filosofia clássica e no cristianismo primitivo.

Concilium, n. 238, fasc. 6, p. 59, 1991.

18 Essa oração judaica foi codificada pelo Rabi ben Jehuda no século II d.C, e expressa claramente a mentalidade discriminatória que no tempo de Jesus, e ainda depois dele, pesava sobre as mulheres: “Bendito sejas, Senhor Deus, rei do universo, por não me fazer nascer gentio. Bendito sejas, por não me fazer nascer escravo. Bendito sejas por não me fazer nascer mulher” (Tos. Ber., VII, 8; cf. J. Ber. 20b; Menahot, 43b). (Oração citada por vários autores e autoras, como por ex.: FABRIS, R., GOZZINI, V. A mulher na Igreja primitiva. São Paulo: Paulinas, 1986, p. 32, 85; TEPEDINO, A. M. As discípulas de Jesus, p. 78). No mundo grego, onde o cristianismo se desenvolveu largamente, as mulheres também sofriam igual discriminação. Demóstenes resume muito bem como os homens as viam e as tratavam: “Mantemos as heteras para o prazer; as concubinas para as exigências diárias do corpo; e as esposas para que nos dêem filhos e sejam as fiéis guardiãs de nossos lares” (Demóstenes. Contra Neaera, p. 122. Citado in: VINCENT, Sister. La mujer y el sacerdocio. Madrid: Paulinas, 1971, p. 61). Embora as mulheres romanas desfrutassem de uma certa liberdade e convivência social em comparação às mulheres do mundo grego, o Direito Romano as excluía de cargos públicos em razão da “ignorância do seu sexo”. Perante a lei elas eram simples objetos de propriedade do esposo, o paterfamilias, que representava e detinha o poder na estrutura familiar. Ainda assim, a situação das mulheres no Império Romano era bem mais elevada do que em outras civilizações antigas. Certamente isto deve ter favorecido aquelas que aderiram ao cristianismo, pois elas podiam desfrutar de uma maior liberdade de movimento (e quando viúvas, até dos próprios bens), o que provavelmente contribuiu para a difusão da mensagem cristã, como veremos mais adiante.

197 compaixão, solidariedade, valorização, aprendizado e, em várias ocasiões, até mesmo de cumplicidade como, por exemplo, em Lc 8,47 e Mc 14,3-8. Em todos os evangelhos elas aparecem como as mais pobres entre os pobres (deserdados, rejeitados, pagãos, pecadores, crianças e outros tipos de pessoas discriminadas), a quem a Boa-Nova é especialmente dirigida; por serem as mais oprimidas elas são as beneficiárias privilegiadas dos milagres de Jesus e de sua práxis libertadora. Todas as mulheres, que por meio de Jesus experimentaram a força da basileia amorosa de Deus, sentiram-se plenamente humanas.

O anúncio da basileia rompe com as estruturas patriarcais; no movimento de Jesus as mulheres encontram uma nova família, na qual não se menciona o patriarca (Mc 10, 29- 30; Mt 19, 29) e tampouco se prolongam ou se reproduzem as relações patriarcais vigentes.

Deus é o único que tem a “autoridade de pai” na comunidade e que torna possível a relação de irmandade; ninguém pode reivindicar para si tal autoridade e poder. Essa inversão de valores e de estruturas sociais possibilitou a construção da base para o “discipulado de iguais”, que marcou decisivamente o movimento de Jesus.

Conforme o Evangelho de João, o primeiro diálogo e reconhecimento de Jesus como o Messias ocorre por meio de uma mulher samaritana (Jo 4) que se torna a primeira apóstola da Samaria19, o que pode indicar a participação de samaritanos homens e mulheres no movimento de Jesus. Da mesma forma Marta, a grande amiga de Jesus, também o confessa como o Messias-libertador (Jo 11,27) no mesmo nível da confissão de Pedro (Mc 8, 29). A mulher sírio-fenícia, em Mc 7,24-30, ou cananeia, em Mt 15,21-28, desafia Jesus a estender a Boa-Nova para além das fronteiras do Povo de Israel. Este fato pode indicar o papel primordial das mulheres na expansão do movimento de Jesus. Em Mc 5,25-34, uma mulher considerada legalmente impura extrai de Jesus a força para romper com sua discriminação e recebe dele a mais alta confirmação de sua fé e ousadia: “tua fé te curou...”.

As curas físicas realizadas por Jesus simbolizavam restaurações sociais, culturais e políticas que permitiam às mulheres participar plenamente do “discipulado de iguais” em sua comunidade. Jesus nunca reprovou ou humilhou as mulheres; a mulher anônima de Betânia, que rompe com preconceitos vigentes e o unge publicamente, recebe dele a mais alta aprovação: “deixem-na... em todo o mundo, o que ela fez será contado em sua memória” (Mt 26,6-13). E dentre os pobres, a quem Jesus declara bem-aventurados, as

19 O teólogo Orígenes (+254) em sua interpretação de Jo 4,1-42, sem nenhuma dificuldade chama a mulher samaritana de Apóstola, argumentando que ela foi uma insigne missionária e mensageira da Boa-Nova para seus concidadãos (Patrologiae cursus completus, PG 14, 448).

198 viúvas recebem dele especial atenção e cuidado (Lc 7,11-17; Mc 12,41-44; Lc 18,2-5). Em Jo 8,3-11, a mulher condenada à lapidação, ao encontrar-se com Jesus, é compreendida e restaurada em sua dignidade. Aliás, em Mt 21,31-32, as prostitutas têm a precedência: ao contrário dos fariseus, elas ocuparão os primeiros lugares na basileia de Deus.

Pode-se afirmar, portanto, que sendo as mais discriminadas e oprimidas, as mulheres constituem parte integrante e prioritária da visão e da missão messiânica de Jesus, e exercem um papel fundamental nesta visão evangélica da reversão social que a práxis e a palavra dele inauguram. Como observa Bingemer, por elas se encontrarem na base da rede de relações sociais de seu tempo, suportando o peso de suas contradições, sua adesão à proposta messiânica apresentada por Jesus é surpreendentemente rápida e radical20.

Dessa forma, o movimento de Jesus, por não ser excludente, mas inclusivo21, tornou possível a solidariedade entre as pessoas que não eram admitidas em outros grupos judaicos de renovação, devido a leis religiosas ou a ideologias segregadoras. Por isso, ele foi uma semente de renovação dentro do judaísmo, trazendo esperança para as pessoas mais desprezadas e sobretudo para as mulheres, muitas das quais passaram a segui-lo. Nesse sentido, em consonância com o pensamento de Dorothee Sölle, podemos dizer que, “em termos teológicos, o movimento de Jesus resgatou a condição da mulher como imagem de Deus (Gn 1,27) que o patriarcado intentou e ainda intenta destruir”22.

De fato, a tradição evangélica (Mc 9,35; 10,41-45; Mt 18,4; 20,25-28; 23,7-12; Lc 9,48, 22, 24-27; Jo 13,14-17) coloca em evidência que o ethos do movimento de Jesus subverte radicalmente todas as relações sociais e religiosas hierárquico-patriarcais e anula categoricamente todas as relações de dominação que geram dependência e exclusão no na comunidade cristã. Fiorenza argumenta que essa exigência de estruturas inclusivas, humanizadoras e livres de domínio, no movimento de Jesus, oferece a base teológica para o reconhecimento e a afirmação das mulheres como discípulas de pleno direito. As mulheres galiléias

não só foram determinantes para estender o movimento de Jesus aos gentios, mas também para a própria continuidade desse movimento depois da morte e ressurreição de Jesus; [...] como discípulas de Jesus, elas não fugiram [...] mas ficaram em Jerusalém até o fim, para acompanhar sua execução e seu sepultamento. [...] foram também as primeiras a articular sua experiência da bondade poderosa de Deus, que não abandonou Jesus na sepultura, mas o ressuscitou dentre os

20 BINGEMER, M. C. L. Experiência de Deus em corpo de mulher. São Paulo: Loyola, 2002, p. 53.

21 FIORENZA, E. S. Discipulado de iguais..., p. 196.

22 SÖLLE, D. Libertada para a liberdade, condenada ao silêncio: a imagem da mulher no cristianismo. Estudos Teológicos, v. 31, n.1, p. 80, 1991. Ver tb. BOFF, L. O rosto materno de Deus..., p. 77 e 79.

No documento FEMINISMO E EVANGELIZAÇÃO (páginas 196-200)