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Década de 1980: Expansão, organização e mobilização do feminismo

No documento FEMINISMO E EVANGELIZAÇÃO (páginas 87-95)

O feminismo engajado dos anos anteriores agora cresce e se expande de forma exuberante com todas as implicações que isso significa para um projeto político feminista que defende a radicalização da democracia em todos os aspectos, a começar em si mesmo.

Assim, no cenário de 1980, houve uma rica proliferação de associações e centros de estudo.

Surgiram muitas publicações, como revistas, periódicos, vídeos, bem como uma intensa articulação de redes e grupos de conscientização, de centros de apoio e acolhimento a mulheres vítimas de violências, de coletivos de saúde e coletivos de lésbicas reivindicando direitos e reconhecimento, além de congressos, encontros, passeatas e outras iniciativas

19 GARGALLO, F. El feminismo múltiple: prácticas y ideas feministas em América Latina. En: FEMENÍAS, M. L. (Org.). Perfiles del feminismo iberoamericano. [s.e.]. Universidad Autónoma de México, 2000, p. 114.

87 feministas, que se intensificaram a partir do avanço dos estudos de gênero e da expansão do feminismo em todos os países da região.

Diálogo e confronto entre as “feministas” (corrente autônoma) e as “políticas”

(militantes em partidos da Esquerda) atravessaram a maior parte da prática feminista na América Latina e no Caribe durante essa década. Bem entendido, essas posições polarizadas, tangidas pela própria lógica que criticavam, não refletem senão precariamente a realidade indubitavelmente complexa, diversificada e fluída do feminismo latino-americano e caribenho. Tanto é verdade que uma terceira postura – a mais significativa e com maior número de adeptas – denominando-se enfaticamente “nem umas nem outras”, não aceitou a tipificação polarizada de “feministas” e “políticas”. Paradoxalmente, essa situação levou a um crescimento da consciência de autonomia e a uma melhor compreensão de que ser feminista não significa simplesmente trabalhar com mulheres. De fato, muitas mulheres que atuam junto ou em favor de outras mulheres nem sempre têm uma clara consciência feminista que as ajude a perceber as tramas sutis da dominação e opressão patriarcal.

Debates sobre essa questão agitaram a agenda feminista nesse período causando controvérsias e projetando novas luzes sobre o feminismo latino-americano e caribenho. Em consequência, começa a ficar mais clara a distinção entre “movimento feminista” e

“movimento de mulheres”20. Por outro lado, surge também a preocupação de não se criar um “feministrômetro”21 para aferir quem é “mais” ou “menos” feminista e se as ações realizadas “com” ou “pelas” mulheres dos movimentos são ou não práticas feministas22.

20 Tanto as feministas como as cientistas sociais latino-americanas e caribenhas estabelecem – teoricamente – uma distinção entre movimentos femininos ou de mulheres e movimentos feministas. Paul Singer também explica o sentido desses conceitos mostrando que as lutas contra o aumento do custo de vida, as demandas por escolas, creches etc., assim como medidas específicas para proteger as mulheres que fazem trabalho fora do próprio lar, seriam reivindicações femininas e não feministas, na medida em que não questionam o modo pelo qual as mulheres se inserem no contexto social (SINGER, P. O feminino e o feminismo..., p. 116-117). Hoje essa visão é, pelo menos parcialmente, superada. As feministas entendem que as demandas por libertação, dignidade, justiça, cidadania e melhores condições de vida e trabalho para todas as mulheres são lutas plenamente feministas, uma vez que questionam o status quo e promovem a igualdade de gênero.

21 Essa palavra consta no relatório do II Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe realizado em Lima, em 1983. Ver: II Encuentro Feminista Latinoamericano y del Caribe. Santiago de Chile, Revista de las Mujeres, [n.e.], p. 7-8, jun. 1984.

22 Há uma vasta bibliografia feminista latino-americana e caribenha que trata desse assunto. Todas as autoras estão de acordo em que o movimento de mulheres, geralmente, é um espaço de convergência amplo, no qual se expressam variadas formas organizativas, desde aquelas especificamente de gênero, até outras com finalidades socioeconômicas, confessionais, culturais etc. O movimento feminista é, geralmente, apenas uma parte deste movimento amplo e heterogêneo, multirracial e multicultural, tornando-se o principal referente político e ideológico para o conjunto. Suas ações são centradas mais em demandas de gênero, na autonomia e responsabilidade de cada mulher sobre si mesma: sua força de trabalho, sua capacidade de reprodução e sua sexualidade. Não é a quantidade que o caracteriza ou define seu conteúdo, mas as práticas sociais que dele nascem, os novos espaços de questionamento que ele abre e os processos de consciência que ele deslancha. Em outras palavras, sua função é ser consciência crítica, núcleo elaborador de conteúdos e significados com base nas reivindicações e demandas que estão virtualmente presentes no movimento amplo de mulheres, facilitando seu

88 Esses movimentos (feminista e de mulheres), ainda que em determinados aspectos e contextos apresentem certas divergências têm, acima de tudo, abraçado a mesma causa apoiando-se e articulando-se em lutas e projetos afins, ainda que com concepções e metodologias diferenciadas. Evidentemente, isso exigiu uma maior abertura e a ampliação da agenda feminista a fim de incorporar as demandas das mulheres dos setores populares.

Esse passo foi decisivo para que o feminismo na América Latina e no Caribe avançasse na consciência multiétnica racial, um dos maiores desafios que se intensificaram, sobretudo na década de 1990 e neste início de século23.

Outro aspecto importante para o feminismo nessa fase é que o “patriarcado” latino- americano e caribenho, em suas várias interfaces – materiais, ideológicas, culturais, linguísticas, religiosas, institucionais e sexuais – torna-se objeto de múltiplas análises e de calorosos debates em nível nacional e regional. Sternbach e outras pesquisadoras constatam que tais análises, além de problematizar e contextualizar as relações de gênero como relações de poder, projetaram luzes também sobre a Esquerda e seu modo de lidar com a tradicional “questão feminina”. Isso permitiu que as feministas que tinham dupla militância abrissem os olhos sobre o como as questões de interesse das mulheres – assim como elas próprias – eram tratadas pelos seus companheiros (camaradas) de luta24. Essas e outras questões atravessaram toda a década de 1980, como se pode verificar na documentação disponível sobre os Encontros Feministas Latino-Americanos e do Caribe realizados durante esse período.

reconhecimento e aprovação pelas mesmas mulheres. Todavia, mesmo tendo se tornado o principal ponto de referência do movimento de mulheres, o movimento feminista não representa todas as tendências ali compreendidas que, por sua vez, abrange todos os setores de mulheres organizadas, feministas ou não (VARGAS, G. Encuentros feministas: énfasis y estrategias. Feminismos plurales, VII Encuentro Feminista Latinoamericano y del Caribe. Aportes para el 7º debate de la Agencia Lationamericana de Información (ALAI), p. 5-6, nov. 1999).

23 Embora sejam diversificados, esses movimentos (feminista e de mulheres), surgiram e se desenvolveram em um contexto de transição e globalização do capitalismo, sendo atravessados por tendências e interpretações que, paradoxalmente, se entrelaçam, se mesclam, convivem e até se fundem, denotando uma vitalidade e singularidade organizativa, sem linha única nem territórios demarcados, embora com um grande ideário e metas comuns. Isso é que confere originalidade ao feminismo latino-americano e caribenho (VARGAS V.V. Apuntes para una reflexión feminista sobre el movimiento de mujeres. In: LUNA, L. (Org.). Género, clase y raza en América Latina: algunas aportaciones. Edición del SEMINARIO INTERDISCIPLINAR MUJERES Y SOCIEDAD, Universidad de Barcelona, 1991, p. 195-204; FEIJÓ, C. e GOGNA, M. Las mujeres en la transición a la democracia en los movimientos sociales latinoamericanos. En: Cuidadania e Identidad, Ginebra, UNRISD, 1987, p. 129-188) .

24 STERNBACH, N. S. et al. Feminismo(s) na América Latina..., p. 272.

89 1.3 Década de 1990: Autonomia revisitada e reconfiguração do campo feminista

Quem acompanhou o trabalho da mídia no final do último milênio sentiu que o século XXI trouxe, para o mundo todo, muitas expectativas, temores e esperanças que incidiram também na vida dos povos latino-americanos e caribenhos. Eric Hobsbauwn, cientista político inglês, sustenta que o século XX se fechou em 1991 com a queda da União Soviética e a emergência da globalização neoliberal. A partir de então, estamos no século XXI25.

Nesse contexto de perplexidades e esperanças, os feminismos latino-americanos e caribenhos da década de 1990 – após terem participado do processo de consolidação democrática de vários países da região – reconfiguraram sua identidade, sua lógica, seu campo e sua dinâmica desde novas ênfases e articulações. Alvarez26 explica como eles “se globalizaram” ou “se transnacionalizaram”. Constata-se que uma das suas transformações, talvez a mais significativa e ao mesmo tempo, controvertida, impactante e desafiadora, consiste na mudança de uma postura antiestatal para um posicionamento crítico de negociação em relação ao Estado e aos espaços formais internacionais como, por exemplo, as conferências, articulações e projetos da ONU. Concretamente, em palavras de Vargas, isso implicou na

mudança de uma autonomia mais defensiva e de uma lógica e dinâmica mais de confrontação (necessária nas primeiras etapas, tanto por necessidade de afirmação como pela existência das ditaduras no continente), para uma lógica mais de negociação, porém desde uma autonomia forte e propositiva e, por isso mesmo, dialogante27.

Essa mudança significa que, a partir dos anos de 1990 os feminismos assumiram como desafio a construção da cidadania das mulheres a partir de um projeto feminista cada vez mais pluralista e dialógico. Ainda que não isentos de tensões e conflitos, eles avançam sempre mais na consciência de justiça de gênero a partir de outros espaços e outros sujeitos, aprofundando a consciência racial e de classe e buscando responder, acima de tudo, aos

25 HOBSBAUWN, Eric. A era dos extremos. O breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 2005. Há, porém, quem afirma que o novo século começou com os atentados de 11 de setembro de 2001 contra as torres gêmeas do Centro Mundial do Comércio e o Pentágono – coração dos EUA – resultando em milhares de vítimas. O fato teria inaugurado um tempo de instabilidade “arremessando o mundo numa espiral de violência, na qual o direito de defesa se confunde com vingança e abre caminho para toda forma de agressão, a pretexto do agressor de hoje ter sido a vítima de ontem” (OLIVEIRA, Pedro Ribeiro et al. Análise da conjuntura (4-2002) p.

1. Disponível em: <http:// cnbb.org.br/index.php?op= pagina&subop=138>. Acesso em 2/9/2007.

26 ALVAREZ, S. E. Um outro mundo [também feminista] é possível..., p. 533.

27 VARGAS, V. Hacia el VII Encuentro Feminista Latinoamericano y del Caribe. [Carta]. Chile, 1996 [mimeo].

90 anseios das mulheres dos setores populares, as mais exploradas e oprimidas pelo kiriarcalismo e pelo neoliberalismo.

Na expressão de Alvarez, esses feminismos se constituíram em “um amplo, policêntrico, multifacético e polifônico campo político [...] que se estende muito além das organizações ou grupos próprios do movimento”28. Por conseguinte, as bases feministas se ampliaram e continuaram se reconfigurando a partir de uma grande diversidade de lutas políticas e localizações sociais, atingindo proporções massivas e conferindo novas dimensões à prática feminista. Mediante uma multiplicidade de organizações e grupos autônomos de mulheres, de sindicatos e universidades, de meios de comunicação feministas e não feministas, de ministérios e secretarias de mulheres, de ONGs especializadas e profissionalizadas, da participação em partidos políticos e parlamentos, de redes de ação e coalizões locais e intrarregionais, os feminismos latino-americanos e caribenhos desenharam uma nova fisionomia.

De modo particular as redes – em relativa expansão na década anterior – cresceram e conquistaram significativa visibilidade e influência nos anos de 1990, não obstante a consciência das feministas de que ainda há tantos desafios e muito caminho a trilhar, sobretudo em relação a questões étnico-raciais – dentro e fora do âmbito feminista – questões do mundo do trabalho, da sexualidade e da violência contra as mulheres, além de outras.

Portanto, é importante frisar que hoje os feminismos latino-americanos e caribenhos não se expressam em um projeto único; ainda que com traços sociais e políticos comuns bem delineados, a diversidade é sua característica principal29; daí a validade de sua articulação com outros projetos e atores políticos, tendo como referência outras categorias como classe, raça/etnia, gerações e identidades sexuais, a partir da perspectiva da “justiça de gênero”.

Longe de significar um enfraquecimento ou fragmentação na organização das mulheres – como algumas pessoas pensam – essa articulação das diversidades propicia a partilha de uma variedade de experiências que enriquece a luta das mulheres e fortalece a causa feminista, já que tanto a lógica patriarcal como a capitalista incidem na vida de todas as mulheres de diferentes setores e categorias sociais dos países da região.

28 ALVAREZ, S. E. Feminismos latinoamericanos. Estudos Feministas, v. 6, n. 2, p. 265, jul.-dez. 1998.

29 VARGAS, G. O desenvolvimento do feminismo e da educação popular na América Latina, p. 19;

STERNBACH, N. S. et al. Feminismo(s) na América Latina..., p. 258, 261.

91 Sem dúvida, essa heterogeneidade também pressupõe e abriga divergências e conflitos, mas isso faz bem a movimentos que, por sua própria índole, rejeitam os absolutismos e defendem o direito à diferença, porém sem desigualdades. As divergências não invalidam nem impedem que os feminismos da região mantenham muitos pontos comuns; é claro que para isso devem ser levados em conta os diferentes níveis de consciência e as formas diversificadas de organização das mulheres em cada país.

A década de 1990 também se caracteriza por uma profunda transformação do feminismo no que se refere à intrigante questão da autonomia, que acirrou não poucos debates. Os Encontros Feministas regionais evidenciam a polarização de algumas posições que contêm uma clara interpretação política do contexto de atuação do feminismo, assim como a definição de estratégias que incidem direta e primeiramente na sua função social em tal contexto30.

De modo geral, nos encontros dessa década os debates focaram a diversidade de expressões da política feminista na região. As questões centrais ali abordadas foram o reconhecimento da representatividade múltipla, os mecanismos de acesso à política de financiamento para projetos, a dupla identidade das ONGs feministas que se colocam como representantes de grupos de mulheres de base, assim como a crescente incursão de feministas em esferas políticas nacionais e internacionais, particularmente nas cúpulas e conferências da ONU. Esse envolvimento, considerado por algumas como importante para se avançar numa agenda feminista transformadora, foi interpretado por outras como “um desvio perigoso” que poderia conduzir ao “patriarcado global neoliberal”, ou então a um

“conluio” com ele31.

É sabido que as ONGs, de modo geral, incorrem no perigo de se tornarem substitutas ou amortizadoras das reivindicações da sociedade civil – e mais especificamente

30 Nos anos de 1970 a autonomia foi debatida e buscada sob o prisma da liberdade no contexto dos regimes totalitários que dominaram a maior parte dos países latino-americanos e caribenhos. Na década de 1980 essa discussão foi ampliada a partir do conceito de cidadania, no âmago do processo de redemocratização. No início de 1990 a abordagem sobre a autonomia voltou-se mais para o campo da práxis feminista em relação com o movimento de mulheres, os partidos políticos de esquerda ou centro-esquerda e as organizações políticas clandestinas de esquerda. Diante da polêmica questão da dupla militância (no movimento e no partido), emerge quase como um imperativo a necessidade de se construírem espaços feministas alternativos de poder solidário, ou seja, de um feminismo autônomo, com uma referência político-ideológica clara, capaz de orientar as mulheres que assumem postos de decisão nas estruturas político-partidárias. Daí para frente, a abordagem sobre a autonomia passou a focar questões diretamente relacionadas ao gênero como: situação econômica das mulheres frente à globalização neoliberal, política de qualidade dos serviços públicos de atendimento às mulheres, direitos sexuais e reprodutivos, violência extra e intradoméstica, democracia com participação, além do engajamento de feministas em organismos políticos nacionais e internacionais.

31 ALVAREZ, S. E. et al. Encontrando os feminismos latinos..., p. 550; Ver tb. ALVAREZ, S. E. Um outro mundo [também feminista] é possível..., p. 533.

92 dos movimentos sociais – contribuindo para que os governos se eximam ainda mais da criação e implementação de políticas sociais. As ONGs feministas não escaparam desse risco, pois, paulatinamente, passaram a substituir os “grupos de consciência” e os “coletivos feministas” característicos do feminismo da década de 198032.

Esse processo de “onguização”33 do feminismo corre o risco da dependência de governos e entidades financiadoras com a consequente perda de autonomia e a ameaça de descaracterização da dupla identidade da maioria das ONGs feministas latino-americanas e caribenhas, a saber: manter a reflexão política crítica e as lutas feministas profundamente subversivas, e ao mesmo tempo ocupar espaços institucionais e, desde aí, interferir nas políticas públicas. Com efeito – como sublinhou Alvarez – é exatamente essa “identidade híbrida” que sustenta a capacidade crítica das ONGs feministas para rebater “versões patologizadas” das políticas governamentais com perspectiva de gênero, bem como para promover interpretações alternativas dos direitos das mulheres e fomentar o empoderamento das mesmas34.

Outra questão não menos espinhosa é que os organismos – estatais ou não – que subsidiam os projetos das ONGs feministas passaram a exigir atividades cada vez mais técnicas e profissionais e menos questionadoras e ativistas, de modo que se tornou mais difícil se conseguir recursos para projetos destinados à conscientização e mobilização feminista. Evidentemente, isso gerou muita polêmica entre as feministas que preferem a institucionalização do movimento mediante a participação em organismos governamentais, e as que defendem sua total autonomia, considerando que, institucionalizar implica em correr o risco da perda de força política e do caráter e função questionadora do status quo, característica fundamental do feminismo.

32 Inicialmente a maior parte das ONGs feministas direcionou suas ações para a promoção da educação popular, da conscientização e do empoderamento das mulheres dos setores populares. Posteriormente, muitas buscaram articular seu trabalho de base com ações voltadas mais para as políticas públicas e outras modalidades de invenção político-cultural. Nos anos de 1990, além de promover a conscientização e de procurar interferir na sociedade civil e na cultura a fim de transformar as relações de gênero, muitas ONGs procuraram ultrapassar os estreitos limites das democracias formais, voltando-se cada vez mais para avaliação de políticas públicas e a implementação de projetos governamentais de gênero que disponibilizem serviços sociais às mulheres, particularmente àquelas excluídas das políticas neoliberais. Assim, uma infinidade de políticas locais, regionais e supranacionais levou a aumentar a busca por conhecimentos e serviços especializados sobre mulher e gênero oferecidos por ONGs feministas cada vez mais profissionalizadas e tecnicamente capacitadas. Nesse momento, ganha força o enfoque feminista para o “advocacy”, o qual trata da defesa, promoção, monitoramento e avaliação de políticas públicas de gênero, nacionais e internacionais, visando principalmente à construção de agendas políticas institucionais.

33 ALVAREZ, S. E. Feminismos latinoamericanos, p. 268.

34 ALVAREZ, S. E. Feminismos latinoamericanos, p. 261, 267, 277.

93 O questionamento do feminismo autônomo sobre os meios de financiamento das ações feministas na região foca-se principalmente na origem dos recursos e no programa institucional das agências financiadoras. Critica-se, particularmente, o estabelecimento de parcerias ou programas pontuais – por uma parte dos feminismos da região – com instituições que, notoriamente, são as maiores responsáveis pela situação de exclusão e pobreza na região, sobretudo em relação às mulheres, base social de suas ações políticas35.

Argumentam as feministas autônomas que autonomia não é simplesmente autogerir recursos financeiros sem poder questionar suas fontes, métodos e, sobretudo, os objetivos velados de certas instituições financiadoras. Sua crítica aos financiamentos refere-se à prática social, aos conteúdos, às propostas que se subordinam aos financiamentos, aos agentes financiadores, às formas como se têm manejado os financiamentos das ONGs, numa relação utilitarista do movimento feminista, e principalmente quando se negociam a pobreza e a sua situação como mulheres, com o Banco Mundial, com os governos, com os ditadores e repressores36.

Todavia, em que pese essa dependência perigosa, não se pode deixar de reconhecer que há práticas diferenciadas entre as ONGs em relação a essa política de alinhamento discursivo. É o caso das ONGs constituídas por feministas socialistas ou outras feministas, que não aceitam “estabelecer parcerias com organismos ou programas de financiamento atrelados aos ajustes estruturais no continente”37.

Em suma, a questão da autonomia, tão debatida e buscada nos anos de 1970 sob o prisma da liberdade num contexto de autoritarismo sociopolítico, aprofundada e ampliada em 1980 no bojo do processo de redemocratização, reposicionou, nos inícios de 1990, os debates anteriores se estendendo por toda a década e eclodindo com mais força no VII Encontro Feminista Latino-Americano e Caribenho realizado no Chile em 1996, o qual refletiu sobre o feminismo autônomo e o feminismo institucionalizado. A discussão se

35 GURGEL, Telma. Feminismo e liberdade. X Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe. Disponível em: <http://www.10feminista.org.br/pt-br>. Acesso em 10/9/2007. As críticas dirigiram-se também e particularmente à United States Agency for International Development (USAID), principal organismo bilateral de financiamento da Coordenação de ONGs Regionais da América Latina para Beijing. A USAID estabeleceu como sua política que os recursos seriam repassados através de “pontos focais”, o que significava uma ONG ou um consórcio por cada sub-região. As feministas reagiram fortemente, não apenas porque essa política implicaria uma hegemonia política e econômica de determinadas ONGs na região, mas também por se tratar da USAID, que apoiou a ditadura militar brasileira e outras ditaduras da América Latina, além de favorecer e financiar práticas de controle populacional como a esterilização em massa de mulheres pobres, principalmente negras e indígenas.

36 RELATÓRIO DO VII ENCONTRO FEMINISTA LATINO-AMERICANO E DO CARIBE. Juan Dólio, República Dominicana, 1999, p. 25.

37 GURGEL, T. Feminismo e liberdade, p. 4.

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