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– PósGraduação em Letras Neolatinas

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Academic year: 2018

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

LUCIANA NASCIMENTO DE ALMEIDA

IL LIBRO DI SUSANNA, DE LUCA GOLDONI: A PROPÓSITO DE NARRADOR-PERSONAGEM

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LUCIANA NASCIMENTO DE ALMEIDA

IL LIBRO DI SUSANNA, DE LUCA GOLDONI: A PROPÓSITO DE NARRADOR-PERSONAGEM

Dissertação de Mestrado em Letras Neolatinas – opção Estudos Literários Italianos –, apresentada à Coordenação de Pós-Graduação da Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Lizete dos Santos

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ALMEIDA, Luciana Nascimento de. Il libro di Susanna, de Luca Goldoni: a propósito de narrador-personagem. Rio de Janeiro; Universidade Federal do Rio de Janeiro / Faculdade de Letras, 2007. Dissertação de Mestrado. 119 p.

Rio de Janeiro, de fevereiro de 2007

BANCA EXAMINADORA

Professora Doutora Maria Lizete dos Santos Orientadora

___________________________________________________________________ Professora Doutora Flora De Paoli Faria – UFRJ

___________________________________________________________________ Professora Maria Franca Zuccarello – UERJ

___________________________________________________________________ Professor Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho – UFRJ

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por simplesmente tudo.

A minha orientadora Profa. Dra. Maria Lizete dos Santos, pelo apoio, amizade e imenso companheirismo durante esta jornada.

Aos professores do Departamento de Letras Neolatinas, pelo acolhimento e amizade.

Aos professores do Setor de Letras Italianas, pelo estímulo e convivência enriquecedora.

Aos professores doutores Flora De Paoli Faria, Maria Franca Zuccarello, Luiz Edmundo Bouças Coutinho e Aníbal Bragança, pela generosa leitura desta Dissertação.

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ALMEIDA, Luciana Nascimento de. Il libro di Susanna, de Luca Goldoni: a propósito de narrador-personagem. Rio de Janeiro; Universidade Federal do Rio de Janeiro / Faculdade de Letras, 2007. Dissertação de Mestrado. 119 p.

RESUMO

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ALMEIDA, Luciana Nascimento de. Il libro di Susanna, de Luca Goldoni: a propósito de narrador-personagem. Rio de Janeiro; Universidade Federal do Rio de Janeiro / Faculdade de Letras, 2007. Dissertação de Mestrado. 119 p.

RIASSUNTO

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...chi ha la ventura di nascere personaggio vivo, può ridersi anche della morte. Non muore più! Morrà l’uomo, lo scrittore, strumento della creazione; la creatura non muore più!1

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO

2 A PROPÓSITO DE ROMANCE, NARRADOR, PERSONAGEM

3 Il LIBRO DI SUSANNA: DE UM BORRÃO DE TINTA... À PERSONAGEM 3.1- Sobre Luca, o autor empírico de Susanna;

3.2- “Istruzione per uso” ou Do Contrato Narrativo;

3.3- “Pigliatemi come sono” ou a hora e a vez de Susanna; 3.4- “Vou te contar”: os próximos capítulos;

3.5- “Non conclude” ou Dos capítulos finais.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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INTRODUÇÃO

La realtà del mondo si presenta ai nostri occhi multipla, spinosa, a strati fittamente sovrapposti. Come un carciofo. Ciò che conta per noi nell’opera letteraria è la possibilità di continuare a sfogliarla come un carciofo infinito, scoprendo dimensioni di letture sempre nuove (CALVINO, 2003, p. 216).

Tradicionalmente, não se incluem citações no capítulo reservado à introdução do trabalho. No entanto, não resistimos à tentação de nos apropriarmos de um comentário escrito por Italo Calvino sobre La cognizione del dolore, de Carlo Emilio Gadda – que, segundo o autor de Perchè leggere i classici, merece “il nome di grande scrittore” – para nos aproximarmos de Luca Goldoni e de seu romance Il libro di Susanna, que constitui o corpus de nossa leitura nesta dissertação.

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Dividido em trinta breves capítulos ou “capítulos florais”, se pensarmos na estrutura da alcachofra, Il libro di Susanna nos apresenta fragmentos, lampejos da vida cotidiana na Itália. Os dois primeiros capítulos, que poderão ser comparados ao coração da alcachofra, compõem o núcleo da narrativa, que será coberto pelos capítulos florais, ou capítulos narrativos fechados, todos tratando de questões referentes ao Homem e o meio no qual vive; e constituindo uma harmoniosa e atraente narrativa.

Assim, o romance de Luca Goldoni, que foi escrito visando o público infanto-juvenil, nos possibilitará indagar sobre questões referentes ao homem contemporâneo – seus hábitos de vida, valores, desejos, temores, dentre outras – bem como abordar aspectos da narrativa do Novecentos; especialmente, nos oferecerá a oportunidade de revisitar, de forma breve, a história da ascensão do romance no Ocidente e de refletir sobre a figura do narrador, principalmente do narrador pós-moderno, do autor e da personagem.

Para a realização do estudo proposto, não poderemos prescindir de textos como os de Walter Benjamim – “O narrador”, de Silviano Santiago – “O narrador pós-moderno”, de Andrea Bernardelli – La narrazione, de Antonio Candido – “A personagem do romance”, além de outros de Victor Manuel de Aguiar e Silva, Carlos Reis, Cesare Segre, Umberto Eco.

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2 A PROPÓSITO DE ROMANCE, NARRADOR E PERSONAGEM

O romance é uma resposta dada pelo sujeito à sua situação na sociedade burguesa ou estruturada em termos burgueses. Essa resposta supõe uma operação textual sobre o real, o qual é assumido por uma narrativa que implica um ou vários narradores. A figura do narrador é, quer o duplo do sujeito, quer uma estrutura de ligação dialectizada entre o autor-sujeito e o real.

(Krysinski apud REIS, 2000, p. 356).

Neste capítulo, primeiramente, se apresentarão breves considerações sobre o gênero romance. Em seguida, se focalizará a figura do narrador e a da personagem de ficção. E, sublinhe-se, o mesmo foco iluminará, também, o capítulo 3, possibilitando a aproximação dos conceitos teóricos aqui discutidos ao romance que é nosso objeto de estudo, Il libro di Susanna, do escritor italiano Luca Goldoni.

Sugere-nos o número de editores, autores, títulos e público que o romance é, nos dias atuais, a forma literária dominante, mas isto não sempre foi assim. Escreve Yves Reuter (2004, p. 10):

Durante muito tempo o romance foi considerado um gênero menor, pouco legitimado. Os teóricos clássicos o condenavam por ter sido pouco praticado pelos Antigos (estava ausente dos grandes tratados como por exemplo a Poética de Aristóteles), por não se submeter a regras estritas, por favorecer a imoralidade, dar livre curso à inverossimilhança (no século XVII a idéia de romance está associada a aventuras extraordinárias ou à deformação de fatos reais).

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Afirma Victor Manuel (1974, p. 7) que:

De mera narrativa de entretenimento, sem grandes ambições, o romance desenvolveu-se em estudo da alma humana e das relações sociais, em reflexão filosófica, em reportagem, em testemunho polêmico etc. O romancista, de autor pouco considerado na república das letras, transformou-se num escritor prestigiado em extremo, dispondo de um público vastíssimo e exercendo uma poderosa influência nos seus leitores.

Antes do Século XVII, quando o barroco propiciou a disseminação do romance, este passou por diversas fases: na Idade Média, o termo romance designava uma língua vulgar falada em determinada região e, conseqüentemente, a literatura produzida em tal língua. Os tipos de romance que prevaleciam nessa época eram os de cavalaria e os sentimentais. Escreve Aguiar e Silva (1974, p. 9):

O romance de cavalaria, cujo modelo se constituiu com as obras de Chrétien de Troyes, espelha uma mundividência cortês e idealistamente guerreira, estruturando-se a sua intriga em torno de suas isotopias fundamentais: o amor e a aventura.

O romance sentimental, cujos modelos imediatos são a Elegia di Madonna Fiammetta de Boccaccio e a História de duobus amantibus de Eneas Silvio Piccolomini, pode apresentar um cunho mais marcadamente erótico ou mais acentuadamente sentimental, conforme a sua intriga decorra num ambiente burguês ou num ambiente aristocrático.

Boccaccio também exerceu grande influência sobre o romance pastoril, forma que predominou durante o Renascimento (Ib, p. 11-2):

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Porém, apesar de toda essa produção, atravessando séculos e expondo uma narrativa capaz de representar diversos estilos, como já foi dito, o romance não possuía reconhecimento como gênero literário e, a partir do momento em que começou a se desenvolver e ganhar prestígio, foi duramente combatido por aqueles que defendiam o modelo clássico. Para esses, o romance não passava de uma bela narrativa, porém vazia em significado, em contraste com as formas narrativas clássicas, servindo tão-somente como entretenimento e tendo mesmo a capacidade de “desvirtuar” seu grupo de leitores que, na maior parte, era constituído por mulheres (Mulheres e estudantes compunham o público leitor emergente). Apenas a partir do Século XVIII, com o advento da burguesia, o romance começou a consolidar-se de fato e a conhecer um profundo e real desenvolvimento.

A crise do romance tradicional teve seu início mais ou menos na segunda metade do Século XVII, nos anos que se seguem a 1660, quando mesmo os autores evitavam classificar como romance suas obras. O nascimento do romance moderno aconteceu com o desaparecimento do romance barroco. Escreve Aguiar e Silva (1974, p. 11-12):

Como afirma um estudioso destes problemas, o romance barroco representa uma espécie de grau zero do romance, e é precisamente com a dissolução desse “ópio romanesco” que aparece o romance moderno, o romance que não quer ser simplesmente uma “história”, mas que aspira a ser “observação, confissão, análise”, que se revela como “pretensão de pintar o homem ou uma época da história, de descobrir o mecanismo das sociedades, e finalmente de pôr os problemas dos fins últimos”.

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moderno. Assim, verificamos que o romance moderno se constituiu sobre a extinção da narrativa imaginária do barroco e sobre a desagregação da estética clássica.

A partir do Século VXIII, quando foi finalmente valorizado como gênero literário, o romance obteve um grande crescimento. Nessa época surgiram os romances negros ou de terror, bastante apreciados pelo público de então, além dos folhetins no início do Século XX, “caracterizando-se, em geral, pelas suas aventuras numerosas e descabeladas, pelo tom melodramático e de cenas emocionantes” (AGUIAR E SILVA, 1974, p.19).

O século XIX marca o auge do romance como gênero. Com o advento do romantismo, sua narrativa firmou-se como forma literária, capaz de exprimir o homem e o mundo em seus diversos aspectos. O romance tem a capacidade de comportar diversos gêneros e registros literários, e, portanto é capaz de representar a vida cotidiana.

Entre o final do Século XIX e o começo do XX teve início a transformação do romance moderno, em relação aos modelos clássicos vigentes no Século XIX. O homem e o meio em que vive passaram a ocupar o foco principal do romance:

Aparecem os romances de análise psicológica de Marcel Proust e Virginia Woolf; James Joyce cria os seus grandes romances de dimensões míticas, construídos em torno das recorrências dos arquétipos, Kafka dá a conhecer os seus romances simbólicos e alegóricos... Sucedem-se o romance neo-realista, o romance existencialista, o nouveau roman. O romance não cessa, enfim, de revestir novas formas e de exprimir novos conteúdos, numa singular manifestação da perene inquietude estética e espiritual do homem (Ib, p. 21).

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Romance” e estabelecida por E. M. Foster, que atribui a esse gênero três classificações, a partir dos elementos mais importantes que o podem constituir:

a) Romance de ação ou de acontecimento. Aquele que se caracteriza por uma intriga concentrada e fortemente desenhada, com princípio, meio e fim bem estruturados.

b) Romance de personagem. Caracteriza-se pela existência de uma única personagem central, que o autor desenha e estuda demoradamente, e à qual obedece todo o desenvolvimento do romance.

c) Romance de espaço. Caracteriza-se pela primazia que concede à pintura do meio histórico e dos ambientes sociais nos quais decorre a intriga.

Naturalmente, cada um dos tipos acima apresentados pode predominar em um romance, embora dificilmente seja plena ou unicamente aplicado.

No verbete romance encontrado no Dicionário de narratologia (REIS, 2000, p.356), lê-se:

Particularmente talhado para modelizar em registro ficcional os conflitos, as tensões e o devir do Homem inscrito na História e na Sociedade, o romance tem revelado uma extraordinária capacidade de rejuvenescimento técnico e de renovação temática; afirmando-se como fenômeno multiforme, num tempo em que as constrições das Poéticas não têm já a razão de existência, o romance constitui um gênero de difícil definição.

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uma modificação análoga à da pintura moderna, modificação que parece essencial à estrutura do modernismo. À eliminação do espaço, ou da ilusão do espaço, parece corresponder no romance a da sucessão temporal. A cronologia, a continuidade temporal foram abaladas, ‘os relógios foram destruídos’. O romance moderno nasceu no momento em que Proust, Joyce, Gide, Faulkner começam a desfazer a ordem cronológica, fundindo passado, presente e futuro.

Afirma, também, Rosenfeld que muitos dos romances mais famosos do Século XX procuram “assinalar não só tematicamente e sim na própria estrutura” essa chamada por Virgínia Woolf “discrepância entre o tempo no relógio e o tempo na mente” (Woolf apud Rosenfeld, 1973, p. 82).

Mas, não é nosso objetivo acompanhar os estudos já realizados sobre a história do romance, e sim tratar, mesmo que maneira breve, de aspectos importantes da sua técnica, como, por exemplo, a questão da autoria e da enunciação, “que naturalmente conduz à das relações autor/narrador”, conforme nos orienta Carlos Reis (2000, p. 358):

O romance é enunciado por um narrador, entidade ficcional instituída pelo autor empírico; mas ao instituir o narrador, o autor avança opções que se traduzem em estratégias narrativas definidas: a situação narrativa perfilhada, os critérios de representação estabelecidos, é, entre outros, parâmetros que interferem na configuração do universo diegético que o romance integra.

Portanto, na seqüência, trataremos da figura do narrador e do narrador-personagem, que estão no centro desta pesquisa. Dirijamos, então, para tais figuras o nosso foco de leitura.

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Em uma narrativa, a figura do narrador é a mais importante e pode ser representada de distintas maneiras. Muitas vezes temos um narrador onisciente, que sabe tudo, vê tudo, conhece cada personagem e os pensamentos mais íntimos de cada um deles.

O narrador pode materializar-se através de uma personagem do romance quer seja a protagonista ou uma personagem secundária; nesse caso, quase sempre narrando a história a partir de seu ponto de vista. Dentro ou fora do mundo da ficção, o narrador é aquele que traz o leitor ao mundo da narrativa.

Walter Benjamim (1993) em seu fundamental estudo sobre a figura do narrador, analisa suas características desde a oralidade, que é a origem da arte de narrar, até os nossos dias, quando, em sua percepção, a narrativa genuína desaparece, assistindo-se à instauração do universo dominado pela informação.

Benjamim classifica a narrativa em três tipos possíveis: a narrativa clássica oriunda da tradição oral; o romance, fruto da tradição escrita; e, finalmente, a informação, instaurada a partir da ascensão da burguesia e o tipo dominante nos tempos modernos.

A narrativa épica que, na opinião de Benjamim, é a verdadeira narrativa, é representada pelo narrador anônimo, ou seja, por aquele que sabe dar conselhos, que pode falar exemplarmente, uma vez que a coisa narrada passa pela sua vida. Considera a arte do narrador clássico como um trabalho manual.

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para narrar. Assim, o narrador arcaico pleno é aquele formado pela interpenetração das duas vertentes: o conhecimento de mundo possuído pelo primeiro e a sabedoria do segundo.

Em Il libro di Susanna, observa-se a presença desses dois tipos de narradores, representados nos “avós” da personagem nascida de um borrão de tinta. Luca, o narrador do primeiro capítulo, representa o primeiro tipo, pela profissão que exerce, que o impeliu a viajar por vários países. Possui amplo conhecimento do mundo; está voltando de uma guerra no distante Congo, no início do relato. O avô de Susanna, anônimo, já que seu nome não vem mencionado, representa o segundo tipo de narrador: o homem sábio que pode falar exemplarmente, dar conselhos, e a quem Susanna recorre como fonte de informações de um mundo idealizado, pleno de virtudes.

Benjamim cita os contos de fadas como uma genuína forma de narrativa, com seu narrador que sabe dar conselhos, ajudar, exemplificar:

O primeiro narrador verdadeiro é e continua sendo o narrador de contos de fadas. Esse conto sabia dar um bom conselho, quando ele era difícil de obter, e oferecer sua ajuda, em caso de emergência. Era a emergência provocada pelo mito. O conto de fadas nos revela as primeiras medidas tomadas pela humanidade para libertar-se do pesadelo mítico (BENJAMIN, 1993, p. 215).

Il libro di Susanna não faz uso do c’era una volta e não apresenta a estrutura narrativa dos contos de fada. Faz uso, sim, do “Vou te contar” (Aproximamo-nos aqui da telenovela Páginas da Vida, de Manuel Carlos, em apresentação no Brasil desde meados de 2006.) e tem a narrativa construída a partir da observação de fatos do cotidiano do homem contemporâneo.

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principal entre o narrador épico e o narrador do romance; este não é capaz de intercambiar experiências, não pode dar nem receber conselhos; é um narrador que se encaminha ao isolamento, encerrado no livro. Enquanto o narrador anônimo se alimenta da experiência, sejam próprias, sejam de outrem, o romancista cria uma história, e, portanto, não fala de experiências, nem próprias e nem de um outro.

A história em um romance permanece ali, à espera de um leitor. Portanto, narrador e narratário não terão uma experiência de interação imediata como acontece entre o narrador clássico e seu ouvinte. No romance que é foco de nossa leitura, o Autor-Modelo – conceito proposto por Umberto Eco e que será desenvolvido no Capítulo 3 –, ao contrário do que afirma Benjamin, não se aproxima ao isolamento, mas, a partir do olhar sobre o homem que lhe é contemporâneo, estabelece relações com seu leitor.

A informação representa um terceiro tipo de narrativa, e segundo Walter Benjamim, esta poderia ser considerada como um tipo ainda mais nocivo que o romance, uma vez que a informação exige verificação imediata, ou seja, todas as explicações necessárias à compreensão do fato devem ser apresentadas a fim de que a informação se torne plausível. E a concisão é a essência da verdadeira narrativa. Quanto mais concisa, mais verdadeira ela é, pois atravessará gerações sem perder a capacidade de provocar reflexões e interpretações em seus ouvintes. A informação não pode possuir tais características; deve estar acompanhada de todas as explicações, a fim de que o leitor ou ouvinte possa compreender a sua totalidade. É exatamente o oposto da narrativa.

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conferiam credibilidade aos fatos narrados. Em contrapartida, a informação só seria digna de crédito se fosse bem explicada, não havendo a possibilidade de se proporcionar ao leitor a livre interpretação. E essa possibilidade de se fazer uma livre interpretação é a essência da narrativa; a verdadeira narrativa faz que os ouvintes reflitam, interpretem.

Outro fator decisivo para a mudança do reino narrativo foi a própria transformação do mundo. Durante milênios, o mundo se desenvolveu em uma velocidade mais ou menos constante; mudanças lentas o foram transformando, criando, assim, o ambiente propício ao desenvolvimento e manutenção da narrativa clássica que, conforme explica Benjamim, era formada através de um lento processo, camada por camada sendo acrescentada, a narrativa sendo moldada pelas mãos do narrador, através do intercâmbio de experiências. O tempo era um fator decisivo a esse desenvolvimento. A partir do momento em que o mundo passa a se transformar com uma velocidade muito maior, o quadro começa a mudar.

Com o advento da burguesia, a informação se instaura e Benjamim ressalta que até mesmo o romance, que se desenvolveu verdadeiramente a partir desse momento, entrou em crise. A informação é a forma de comunicação dos tempos modernos – não há tempo a perder – e o mundo se transforma a uma velocidade cada vez maior.

Benjamim cita Paul Válery (1993, p. 206): “dir-se-ia que o enfraquecimento nos espíritos da idéia de eternidade coincide com uma aversão cada vez maior ao trabalho prolongado”.

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dos vivos. O homem moderno – caracterizado pela perda do centro, de sua identidade – não possui a base sólida que era a crença do homem medieval, e teme o que não pode controlar; o desconhecido causa horror ao homem moderno; a morte, que é objeto de temor, é afastada ao máximo do mundo dos vivos.

Benjamim procura estabelecer diversos pontos divergentes entre a narrativa e o romance. Cita Mnemosyne, a deusa da reminiscência, que os gregos consideravam a deusa da poesia épica, para explicar que tanto a narrativa quanto o romance advêm dessa mesma fonte, da poesia épica. Mas, apesar disso, ambas possuem musas diferentes: enquanto o romance possui uma memória perpetuadora, dedicada a um elemento, seja este um herói ou a um acontecimento, a narrativa possui uma memória mais breve, não há a dedicação ao exclusivo, mas a diversos fatos, já que a narrativa não está ligada a um único evento determinado em um tempo específico.

Em Il libro di Susanna, romance constituído de breves capítulos fechados, a narrativa também não se prende a um único evento, mas se constrói em forma de um mosaico da sociedade contemporânea. Por isto, sua memória narrativa é breve.

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Benjamim encerra seu ensaio oferecendo uma síntese da figura do narrador verdadeiro que, em seu ponto de vista, encontra-se em fase de extinção (Ib, p. 221):

Assim definido, o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida de não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida. Daí a atmosfera incomparável que circunda o narrador, em Leskov como em Hauff, em Poe como em Stevenson. O narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo.

A esse narrador tradicional contrapõe-se o narrador pós-moderno. Enquanto o narrador tradicional narra fatos sobre os quais a sua experiência é a da vivência, ou seja, narra de dentro da ação, investido de autoridade e autenticidade, o narrador pós-moderno narra aquilo que observa, sua experiência é a do olhar, de contar o que viu, se posicionando do “lado de fora” da ação.

Silviano Santiago procura caracterizar esse narrador que atua no contexto do pós-moderno. Para tanto, o escritor e teórico formula hipóteses de trabalho (SANTIAGO, 1989, p. 39):

Tento uma primeira hipótese de trabalho: o narrador pós-moderno é aquele que quer extrair a si da ação narrada, em atitude semelhante à de um repórter ou de um telespectador. Ele narra a ação enquanto espetáculo a que assiste (literalmente ou não) da platéia, da arquibancada ou de uma poltrona na sala de estar ou na biblioteca; ele não narra enquanto atuante.

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Enquanto o narrador clássico devia estar presente na ação narrada, inserindo nela sua participação pessoal, o narrador pós-moderno tem como prerrogativa o distanciamento da ação narrada, colocando-se na posição de expectador e a partir de sua observação extrair a experiência e construir a narrativa.

E, conforme já foi mencionado, esse fato é a conseqüência direta da própria modernização, pois, à medida que o homem se moderniza, perde as características que o definiam anteriormente; o homem moderno já não tem condições para falar daquilo que vivenciou. A velocidade com que o mundo muda não proporciona ao homem tal ambiente.

Porém, a experiência do narrador pós-moderno também deve ser tomada em consideração; trata-se de uma nova concepção, e é sobre esta “nova sabedoria” que se funda a segunda hipótese de trabalho de Silviano Santiago (1989, p. 40):

Tento uma segunda hipótese de trabalho: o narrador pós-moderno é o que transmite uma “sabedoria” que é a decorrência da observação de uma vivência alheia a ele, visto que a ação que narra não foi tecida na substância viva da sua existência. Nesse sentido, ele é o puro ficcionista, pois tem de dar “autenticidade” a uma ação que, por não ter o respaldo da vivência, estaria desprovida da autenticidade. Esta advém da verossimilhança que é produto da lógica interna do relato. O narrador pós-moderno sabe que o “real” e o “autêntico” são construções da linguagem.

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É o tipo de narrador que encontramos em Il libro di Susanna: como narradora-personagem Susanna permeia sua narrativa de muitas informações que não vivenciou; suas fontes de informação são o avô, o pai, outros membros de sua família e o telejornal, o “tg”, que cita algumas vezes. Ela narra sempre o que viu ou ouviu, não o que viveu. Narra fatos verificáveis na história natural junto aos de sua experiência pessoal, que é, aliás, repleta de elementos que seriam considerados fantasiosos, se não se tratasse ela de uma personagem de ficção.

O narrador pós-moderno focaliza seu olhar no outro, nas informações que obtém a partir de sua observação. Como Benjamim já afirmava em seu ensaio, a informação, que ganhou espaço a partir da ascensão da burguesia, é a forma de comunicação da modernidade. Daí, a aproximação com a linguagem jornalística:

De maneira simplificada, pode-se dizer que o narrador olha para o outro para levá-lo a falar (entrevista), já que ali não está para falar das ações de sua experiência. Mas nenhuma escrita é inocente. Como correlato à afirmação anterior, acrescentamos que, ao dar fala ao outro, acaba também por dar fala a si, só que de maneira indireta. A fala própria do narrador que se quer repórter é a fala por interposta pessoa... Por que este não narra as coisas como sendo suas, ou seja, a partir de sua própria experiência? (SANTIAGO, 1989, p. 43).

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Estar “do lado de fora” da ação é útil ao narrador também para propiciar sua aproximação com o leitor, que assim poderá se identificar com o narrador, como se os dois, de certo modo, estivessem em um nível de igualdade, aumentando, desse modo, o nível de cumplicidade entre o leitor e a narrativa: “o narrador identifica-se com um segundo observador – o leitor. Ambos se encontram privados da exposição da própria experiência na ficção e são observadores atentos da experiência alheia” (SANTIAGO, 1989, p. 44).

Santiago cita a passagem de “O narrador”, na qual Benjamim compara e equipara a narrativa clássica e o homem em seu leito de morte. Em ambos os casos pode-se observar a plenitude da exemplaridade, e esses se contrapõem à narrativa pós-moderna e o “grito lancinante da vida” como exemplaridade do que é incompleto, mostrando uma nova possibilidade de exemplaridade. São exemplaridades conflitantes e opostas:

O olhar no raciocínio de Benjamin caminha para o leito de morte, o luto, o sofrimento, a lágrima, e assim por diante, com todas as características do ascetismo socrático. O olhar pós-moderno olha nos olhos do sol. Volta-se para a luz, o prazer, a alegria, o riso, e assim por diante, com todas as variantes do edonismo dionisíaco. O espetáculo da vida hoje se contrapõe ao espetáculo da morte ontem. Olha-se um corpo em vida, energia e potencial de uma experiência impossível de ser fechada na sua totalidade mortal, porque ela se abre em mil possibilidades (Ib, 1989, p. 50).

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Silviano Santiago faz ainda uma síntese dos três estágios evolutivos do narrador: o clássico, o romântico e o pós-moderno, de acordo com a classificação de Walter Benjamim:

Dessa forma, Benjamin pode caracterizar três estágios evolutivos por que passa a história do narrador. Primeiro estágio: o narrador clássico, cuja função é dar ao seu ouvinte a oportunidade de um intercâmbio de experiência (único valorizado no ensaio); segundo: o narrador do romance, cuja função passou a ser a de não mais poder falar de maneira exemplar ao seu leitor; terceiro: o narrador que é jornalista, ou seja, aquele que só transmite pelo narrar a informação, visto que escreve não para narrar a ação da própria experiência, mas o que aconteceu com X ou Y em tal lugar (Ib, p. 39).

Para concluir este capítulo, reafirmamos que o narrador, assim como a personagem, é indispensável no processo de formação do romance, pois a ele cabe o discurso que encontraremos no desenvolvimento da trama. Sua presença é, muitas vezes, confundida com a do autor da obra, mas deve-se observar que autor empírico e narrador são figuras totalmente diferentes. O narrador é uma personagem criada pelo autor, trata-se de uma personagem de ficção. A figura do narrador pode ser usada pelo autor para que este amplie as suas possibilidades dentro do texto literário, conforme afirma Andrea Bernardelli (2006, p.38):

La figura del narratore permette infatti all’autore di moltiplicare le possibilità si esprimere giudizi sulle vicende narrate e, allo stesso tempo, di manipolare la prospettiva secondo cui gli eventi vengono poposti al lettore.

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deste narrador assumir diversas formas: pode ser a personagem central do romance, uma personagem secundária, ou apenas um observador que conhece e analisa as personagens. Podemos observar ainda, em certos romances, um narrador que não intervém como personagem da história, ou está em relação de convivência com os outros personagens, apesar de se fazer presente no plano do discurso; trata-se de um “eu” que emite comentários, que formula juízos, entre outras coisas.

Autor e leitor empíricos (ou reais) não interagem diretamente (Esta discussão será retomada no capítulo 3, a partir de pressupostos teóricos formulados por Umberto Eco.). O autor cria sua obra, mas não pode controlar seu público, quem será, onde viverá, que conhecimentos de mundo terá e como aplicará tudo isto na leitura da obra. A fim de se fazer o mais claro possível, o autor empírico cria uma personagem – o autor implícito – que será uma espécie de reflexo do autor empírico. Bernardelli afirma que: “Queste tracce della mano dell’autore che rimangono impresse all’interno del testo vengono definite attraverso l’immagine di un autore implícito” (Ib, p. 37).

A criação do autor implícito acarreta a criação de uma outra personagem, o leitor implícito, que é o leitor ideal, ou idealizado pelo autor empírico, cuja função é interpretar a obra de acordo com as expectativas do autor empírico. Porém, não há garantias de que isto de fato venha a acontecer, uma vez que, como já foi mencionado, o autor desconhece quem será o seu leitor.

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Quando assume a função de testemunha dos fatos narrados e, portanto, se torna detentor de uma quantidade privilegiada de informações, o narrador acaba por ser confundido com o autor real. É importante que se faça diferença entre os dois. O autor empírico pertence ao mundo real; é o criador da obra. O narrador, ainda que seja onisciente ou, no caso do narrador que encontramos em Il libro di Susanna, de Luca Goldoni, tenha vivido os fatos narrados, possua o mesmo nome do autor, a mesma profissão e até a mesma idade, não passa de uma personagem, está inserido tão-somente no mundo ficcional; Luca narrador é uma personagem criada por Luca autor empírico. São dois seres distintos, não podemos confundi-los.

Sobre a confusão entre a figura do narrador e do autor real ou empírico, Bernardelli afirma que: “Tale narratore viene spesso confuso con la figura dell’autore reale o empirico, in particolare quando si propone come un testimone diretto o veritiero degli eventi” (Ib, 38).

Outra personagem presente no romance é o narratário, que segundo Victor Manuel (1974, p. 28): “constitui o receptor do texto narrativo, aquela criatura ficcional a quem se dirige o emissor/narrador”.

Bernardelli (2006, p. 40) faz a seguinte observação sobre o narratário: “Il nattatario si identifica formalmente con il tipo di interlocutore presupposto dall’atteggiamento assunto dalla figura del narratore”.

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evidenciado quem é a protagonista do romance. Porém, encontramos muitos romances onde definir o herói irá depender de outros fatores, como os códigos culturais, éticos e ideológicos de uma determinada época. Caso a personagem se enquadre nesses códigos, estamos diante do herói; caso seja um transgressor das normas, então se trata do anti-herói.

Embora, em muitos casos, a trama gire em torno de um protagonista, conforme observamos em Il libro di Susanna, nem sempre isto ocorre. Podemos ter no papel principal um grupo, várias pessoas, como acontece em romances como Gli indifferenti de Alberto Moravia, I malavoglia de Giovanni Verga. Daí a importância de se conhecer quem protagoniza a narrativa, pois é a partir do protagonista que a trama se desenvolverá.

Quanto às características que compõem uma personagem, essas também sofreram grande mudança. A personagem, que possuía traços bem definidos no romance clássico, é destituída de sua identidade no romance moderno. A partir de então surgem personagens descentradas, desprovidas de coerência ética e psicológica, instáveis, e indeterminadas. A personagem perde a sua identidade, o que a mantinha firme e em segurança. Até mesmo o seu nome pode passar a ser representado por letras apenas; um exemplo é a personagem Enne 2 um partigiano italiano que luta na Resistência em Milão, em 1944, que é protagonista de Uomini e no, de Elio Vittorini.

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serão utilizados pelo autor, que “através de suas feições peculiares, das suas paixões, qualidades e defeitos, dos seus ideais, tormentos e conflitos, o escritor ilumina o humano e revela a vida” (AGUIAR E SILVA, 1974, p. 39). É a personagem que figura no romance moderno.

Nas conclusões deste capítulo, faz-se importante dar destaque a uma afirmação de Yves Reuter (2004, p.12):

Significativamente, os debates sobre a literatura tendem a se confundir com os debates sobre o romance, e as reflexões dos romancistas (Calvino, Kundera, Nabokov, Robbe-Griller, Sollers...) têm enorme destaque... A oposição não é mais feita entre gêneros nobres e romance, mas entre romances legitimados e romances menores (policiais, sentimentais, de espionagem...)

Tal afirmação de Reuter nos lembra a necessidade de se assinalar que nosso objeto de estudo, o romance Il libro di Susanna, não é legitimado pela crítica, não se encontra inserido no cânone literário italiano, apesar de ter tido ótima recepção pelo leitor, registrando um elevado número de exemplares vendidos.

E por que nos decidimos pela leitura de um livro não canonizado, particularmente dedicado ao público juvenil, não inserido no rol dos gêneros nobres? Simplesmente, porque desejamos nos aproximar dos textos que os italianos escolheram ler, por prazer, mesmo que sejam, ainda, classificados como best-sellers. E, também, porque é nossa intenção demonstrar que um texto literário não se destina a esta ou aquela idade, mas pode ser lido “per i bambini, per i grandi, per chi ha bisogno di fiabe” (ECO, 2004, última capa).

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Così decifrando il diario della melanconica (o felice?) collezionista di sabbia, sono arrivato a interrogarmi su cosa c’è scritto in quella sabbia di parole scritte che ho messo in fila nella mia vita, quella sabbia che adesso mi appare tanto lontana dalle spiagge e dai deserti del vivere. Forse fissando la sabbia come sabbia, le parole come parole, potremo avvicinarci a capire come e in che misura il mondo triturato ed eroso possa ancora trovarvi fondamento e modello.

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3 IL LIBRO DI SUSANNA: DE UM BORRÃO DE TINTA... À PERSONAGEM

3.1- Sobre Luca, o autor empírico de Susanna

Luca Goldoni nasceu em Parma, Itália, no ano de 1928. Experiente jornalista, começou sua carreira na imprensa marrom, depois foi correspondente de guerra e, por fim, colunista social. Atualmente é colaborador de um dos mais tradicionais jornais italianos, Il Corriere della Sera, em cuja revista assina uma coluna dedicada a animais. Assina, ainda, uma coluna na revista semanal TV Sorrisi e canzoni (que, além da programação da TV italiana, traz matérias sobre música, cinema e espetáculos) e escreve um artigo para Airone, revista mensal sobre lazer e turismo.

Luca Goldoni é, também, um escritor de sucesso, tendo publicado até o momento 13 títulos, dos quais destacamos: Casanova. Romantica spia (1997), Vita da bestie (1998), Maria Luigia donna in carriera (2001), Italia al guinzaglio. Storie di animali (2000), Il sopravvissuto (2002) que ganhou o prêmio Fenice Europa, Garibaldi. L’ amante dei Due Mondi (2003), Appena ieri. Come non siamo cambiati (2005) e o recente Millezampe. Gli animali si raccontano (2006).

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O autor escreve de forma bastante clara, possivelmente por influência de sua profissão, fazendo uso de um léxico contemporâneo, de maneira a levar ao leitor a total compreensão de seu discurso, que é bastante direto.

Seu estilo é, segundo a crítica especializada, bastante forte. Ele é classificado como um escritor sarcástico, cáustico e impiedoso, sem que seu texto seja agressivo. Luca Goldoni, que procura sempre fazer uma leitura do mundo, se coloca na posição de observador e assim adquire o material para confeccionar suas obras.

Dedica grande parte de seus escritos aos animais, o que podemos observar através dos títulos de alguns de seus livros, como Una bestia per amico ou Italia al Guinzaglio. Storie di animali ou Millezampe. Gli animali si raccontano. Neles Luca aborda o comportamento dos animais e, ainda, como eles podem adquirir os hábitos dos humanos e vice-versa, tecendo entre homem e animal uma grande rede. Publicado no sítio www.liberonweb.com/asp/libro.asp?ISBN=8817000183, o resumo apresentado sobre o livro Una bestia per amico oferece a dimensão do que estamos afirmando:

Da qualche anno, Luca Goldoni si è dedicato all'esplorazione dell'universo degli animali. Non solo perché spesso la loro compagnia è più interessante e dà più soddisfazioni di quella degli uomini. Non solo perché gli uomini spesso si comportano da bestie, e quindi tanto vale studiare gli originali invece delle copie malriuscite, ma perché la vita degli animali è strettamente intrecciata alla nostra e raccontare le storie delle bestie (di città e di campagna, addomesticate o selvatiche) significa imparare più cose su di noi, sui nostri sentimenti, sui nostri pregiudizi, di quelle che riusciremmo a ricavare da un'indagine sociologica.

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obras, que possuem a característica de mostrar a realidade, e o apresentando como um grande observador do modo de vida dos italianos.

Tece comentários sobre um dos mais famosos livros do autor, É gradito l'abito scuro. Afirma: “in queste pagine che hanno trent'anni e più “La realtà è davanti all'occhio di Goldoni, che vede e descrive, riflette e commenta, ma non fa la morale a nessuno”.

Devido a sua vasta experiência como jornalista, correspondente especial pelo mundo, Goldoni é respeitado por tratar de temas que remetem à vida dos italianos em seus mais diversos aspectos: “Semmai proietta sullo schermo bianco della pagina le nostre insulsaggini, le nostre stupidità... e le banalità di un vivere schizofrenico che in pratica rovina e avvilisce la vita” (Idem). É exaltada a capacidade que o escritor tem de colocar o leitor em contato com os fatos, sejam eles quais forem, trazendo a uma reflexão. Escreve Marchetti: “Goldoni rappresenta lo scrittore che è capace di metterci a diretto contato con i fatti, anche i più nascosti e i più quotidiani... Ci fa ragionare, ci fa capire”.

Os livros de Goldoni representam, talvez, uma literatura de costume que, aparentemente, não teme revelar a vida, nem colocar em confronto o escritor e o leitor:

La testimonianza di questa letteratura di costume così affilata e coinvolgente s'annida in tutti i libri di Goldoni, libri che nascono da un giornalismo senza paraocchi, da un'osservazione smagata del prossimo e da una totale assenza di cautele nei confronti di chi scrive e di chi legge.

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Novecento, em outras situações seu estilo é considerado inadequado e ofensivo, como aconteceu com seu artigo publicado na revista TV Sorrisi e Canzoni, no qual Goldoni censurou praticantes de snowboard devido a dois acidentes ocorridos em um curto intervalo de tempo: um fatal e outro envolvendo um snowboarder ultrafamoso. Após essa publicação com uma crítica veementemente ao comportamento dos desportistas, a redação da revista recebeu inúmeras cartas de protesto por parte de amantes e praticantes do esporte, reprovando o artigo de Luca. Recebendo elogios e críticas em igual proporção, Luca Goldoni segue com sua carreira jornalística e literária, produzindo a cada ano novos títulos.

No ano de 1999, publicou pela editora Rizzoli o romance que é nosso objeto de estudo neste trabalho, Il libro di Susanna, obra destinada ao público infanto-juvenil, dividida em trinta capítulos, cuja protagonista é uma adolescente de treze anos, Susanna, uma menina pintada pela personagem Luca em um de seus quadros, e que é apresentada como sendo sua neta.

As ilustrações de Il libro di Susanna são reproduções de quadros do autor, Luca Goldoni, que, assim, pôde mostrar seu talento como pintor de telas, que acabarão por fornecer ao leitor imagens pertencentes ao mundo em que a personagem Susanna vive.

A propósito do lançamento do romance Il libro di Susanna, Carlo Donati publicou um texto – “Hobby o vanità?” – que se encontra no endereço

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Ma qui non si tratta di esporre per radi passanti, qui si tratta di mostrarsi ad alcune decine di migliaia di fedeli lettori. Dai quadri infatti è nato un libro, Il libro di Susanna (Rizzoli editore), e con un certo coraggio il famoso scrittore lo ha anche firmato con nome e cognome, cioè Luca Goldoni, perché è di lui che stiamo parlando. Una trentina di storie e quasi altrettante illustrazioni. Locomotive a vapore che sbuffano in mezzo ai prati, fiori giganti che spuntano dalla neve, esotiche giraffe che attraversano i fossi della Bassa, spaventapasseri che suonano il violino, cruciverba grandi come palazzi.

Porém, Carlo Donati deixa claro que, apesar de se tratar de uma obra possivelmente destinada a um público mais jovem que o habitual, é impossível não perceber o estilo de Goldoni nas páginas do livro:

E' stata lei, diventata poi la Susanna del libro, una nipote immaginaria, a indurre Goldoni a scrivere le storie da aggiungere ai quadri. Naturalmente si tratta di storie alla Goldoni. E la mano dello scrittore, anche se si cala nella psicologia di una bambina di tredici anni, è inconfondibile. Il cronista dei nostri difetti è solo un po' più tenero e comprensivo nel coglierci con le mani nel sacco mentre pasticciamo con la New Age o il Terzo Millennio, con i telefonini o le code in autostrada. E' un libro per bambini o per adulti, per i nipoti o per i nonni? Staremo a vedere. Ma chi non è padre o nonno o zio? E chi non è stato figlio o nipote?

Carlos Donati também informa que, até o lançamento de Il libro di Susanna, em 1999, Luca Goldoni já havia vendido aproximadamente 6 milhões de livros.

Enfim, trata-se de um escritor que acumula a cada dia mais títulos à sua extensa produção e, mesmo não estando inscrito entre os autores canonizados na Literatura Italiana, suas obras, apesar de encontrarem ótima recepção entre os leitores, vão além da finalidade comercial.

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3.2- “Istruzioni per uso” ou Do Contrato Narrativo

O primeiro capítulo de Il libro di Susanna – “Istruzioni per uso” – não representa simplesmente a introdução às “storie e sogni di una bambina nata dai pennelli di un nonno”, conforme nos indica o subtítulo do livro. Nesse capítulo encontra-se o “coração da alcachofra”, a essência do romance; uma espécie de fábula que nos permite intuir sobre como se desenvolverá a narrativa.

Devemos esclarecer que o termo Fábula está sendo usado na acepção dos Formalistas Russos, para referenciar o conjunto de acontecimentos comunicados pelo texto narrativo. Corresponde ao material pré-literário que vai ser elaborado (REIS, 2000, p. 157).

Já nas primeiras linhas, o narrador, cujo nome é Luca – ou seja, tem o mesmo nome de batismo de seu autor – situa o leitor no tempo e no espaço. Somos informados de que tudo começa em um aeroporto, em um dia qualquer, onde os passageiros esperam por seus vôos. Luca embarcará no vôo AZ629 Zurique-Milão e, de imediato, uma particularidade das condições de sua espera é ressaltada: “Mezz’ora prima della partenza la luce oltre le vetrate dell’aeroporto si fece color peltro e la neve cominciò a fioccare fitta” (ILS, p.7).

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aflige a aviação nacional que, a partir do maior acidente aéreo da história do nosso país, viu ser deflagrada uma crise sem precedentes entre os controladores de vôo.

Informa o narrador, sobre sua permanência no aeroporto:

Alle 13:40 l’altoparlante ci informó con uno di quei sussurri vellutati che negli aeroporti annunciavano anche le notizie sgradite, che il volo era rinviato di un’ora per cause tecniche (ILS, p. 9).

Questo episodio ebbe il potere di metterci un po’ tranquilli e di farci ascoltare con rassegnazione il nuovo soave sussurro: l’aeroporto era definitivamente bloccato e sarebbero state impartite istruzioni ai passeggeri dei vari voli (ILS, p. 10).

A partir do anúncio de que o aeroporto não estava operando, uma mudança se instala no ambiente. É como se Luca e os outros passageiros do vôo AZ629 tivessem mudado de plano, fossem transferidos para uma outra realidade, paralela, na qual de homens e mulheres com responsabilidades transformaram-se em crianças, assistidas em todas as suas necessidades. Essa mudança de planos causa um efeito absolutamente positivo entre os passageiros, que, de imediato, aceitaram seus novos papéis e passaram a seguir alegremente as novas regras.

Fu allora che la mia irritazione cominciò lentamente a trasformarsi in quell’emozione quasi infantile che altre volte in circostanze analoghe mi aveva preso: quella di entrare in una specie di limbo dove l’organizzazione avrebbe provveduto a farmi mangiare, bere, dormire, spostare, arrivare a casa. Io non avrei dovuto preoccuparmi più di nulla (ILS, p.11).

Diventavo un bambino e qualcuno doveva provvedermi in tutto per ore, forse anche per giorni. Anche i miei compagni di volo si lasciarono prendere da questo stato d’animo quasi giulivo (Id, ib).

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Cabe aqui fazer um parêntese para esclarecer que, neste trabalho, estamos usando a palavra “realidade” no seu sentido denotativo, como aquilo “que realmente existe; fato real; verdade”, conforme se lê no verbete encontrado à página 2.391 do Dicionário Houaiss da língua portuguesa (2001). Este esclarecimento se faz necessário em face da polissemia da palavra em questão e, ainda, porque queremos aproximar o “plano paralelo” ao qual nos referimos no parágrafo anterior ao onírico, à fantasia, à narrativa ficcional. Mas tenhamos presente que em Il libro di Susanna o “plano da realidade” é também um plano ficcional. Assim, o chamado “plano paralelo” corresponde à ficção dentro da ficção.

Mas, voltemos a Il libro di Susanna. Temporariamente, os viajantes deixaram seus nomes e passaram a se identificar pelo número de seus assentos. Trocaram a formalidade habitual pelo tratamento informal entre si, quer dizer, pessoas que não se conheciam, e que só estavam juntas porque deveriam utilizar o mesmo meio de deslocamento, de repente tornam-se íntimas e comportam-se como colegiais: “Ormai con i miei compagni di classe ci si dava del tu, chiamandoci con il numero di posto scritto sulla carta d’imbarco che spuntava dal taschino” (Ib, p. 9). Luca agora se chamava “ventitrè”.

O nível de intimidade entre os passageiros permitiu que um dos “companheiros”, de nacionalidade francesa, perguntasse a Luca o porquê de ele carregar um capacete colonial. A essa pergunta ele respondeu prontamente, dando informações tanto sobre o objeto em si, como sobre sua profissão, o que em parte poderia explicar o motivo de estar ali.

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os destinos daquelas pessoas, que a obedeciam sem hesitar. Essa voz, que se mantinha atrás do cenário, era transmitida pelo alto-falante.

No início, no plano da realidade (da “realidade ficcional”, esclarecemos), era simplesmente o alto-falante, conforme nos informa o narrador: “Alle 13:40 l’altoparlante ci informò con uno di quei sussurri vellutati che negli aeroporti annunciano anche le notizie sgradite, che il volo era rinviato per cause tecniche” (ILS, p. 7). A seguir, “Improvvisamenti gli autoparlanti comunicarono la partenza di un 747 per Johannesburg” (ILS, p. 8). Depois, no “plano paralelo”, essa voz foi recebida de uma forma muito especial: “La nostra invisibile istitutrice ci comunicò con voce dolcissima che noi della III B avremmo dovuto raggiungere il pullman n. 2, dove avremmo trovato i nostri bagagli” (ILS, p. 10).

A voz passou a exercer sobre Luca e o grupo do vôo AZ 629 uma espécie de controle, definindo seus destinos. Primeiramente, impediu que saíssem do aeroporto, conduziu-os para um “plano paralelo”, de sonho, onde todos passaram a desfrutar do momento presente e, por fim, iria conduzi-los de volta ao “plano da realidade”, fato que foi, inclusive, motivo de lamento entre essa “classe”:

Stavamo brindando alla salute della torre di controllo che tutto sommato aveva fatto bene, non bisogna mai forzare il destino, quando l’interfono ci disse che la III B doveva trovarsi alle 22 sul binario n. 4 dove sul rapido per Milano ci avevano riservato un vagone. Peccato, disse qualcuno (ILS, p. 11).

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narrado. Quando, finalmente, embarcaram no trem que os levaria de volta a Milão, um novo imprevisto os impede de seguir viagem:

Nella piccola stazione di un paese presso il tunnel del Gottardo il treno si fermò... Un ferroviere poco dopo ci informò che era caduta una slavina, quindi passò un’hostess e disse che se volevamo andare al buffet questi erano i buoni (ILS, p. 11).

Assim, forçados novamente a esperar, enquanto aguardavam a solução do problema, os passageiros foram conduzidos a um outro espaço, a um ambiente bastante diferente do anterior, no qual havia um ar de festa. E ali, mais uma vez, esperavam que aquela voz do alto-falante os salvasse:

Al buffet le ore passavano lente, fuori albeggiava e noi continuavamo a bere e a fumare, eravamo un po’ brilli e ogni tanto guardavamo l’altoparlante. Forse avrebbe comunicato che i passeggeri del volo AZ 629 avrebbero dovuto raggiungere la slitta a cavalli n. 5.

O forse non avrebbe comunicato più nulla e non saremmo arrivati mai più (ILS, p. 12).

Transcorre um espaço de tempo entre essa primeira parte do capítulo e a segunda, na qual o tempo passa a ser medido de forma precisa. Até esse ponto do romance, já nos foi possível obter informações relevantes sobre essa personagem chamada Luca, que um dia se depara com uma situação insólita, como a que se narra na primeira parte do capítulo, que lhe proporciona experiências altamente positivas: o seu “retorno à infância”, ou seja, a agradável mutação de um episódio desagradável em uma experiência transformadora revela a esse homem um novo prisma, novas possibilidades de se viver e desfrutar a vida.

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De certa forma, a personagem Luca não abandona totalmente essa supra-realidade em que esteve totalmente inserido anteriormente, mas acaba criando condições de revivê-la, justificando, assim, a idéia de sonho, de “dormiveglia”, como afirma:

Dopo quell’avventura m’è capitato altre volte di vivere situazioni in cui è come se i contorni reali lentamente evaporassero calandomi in una specie di dormiveglia. Quasi un’assenza di gravità in cui accadono cose insolite che però mi appaiono perfettamente normali. Non sono un sensitivo, non partecipo a sedute medianiche. Accetto semplicemente che l’enigma del pensiero si mostri nei suoi aspetti più insondabili (ILS, p. 12).

A um fato em particular ele associa sua nova maneira de perceber o mundo: “Tutto questo avviene più freqüentemente da quando, un anno fa, mi sono messo a dipingere. Non ho mai saputo disegnare, il mio maestro delle elementari diceva a mia madre che io ero una negazione” (ILS, p. 13)

Então Luca, que por causa de sua profissão, principalmente, sempre havia se interessado em conhecer o mundo e o universo em que os homens se encontravam imersos, o que pensavam, porque agiam desta ou daquela maneira, sem que ele tivesse “una briciola di interesse per nient’altro”, toma o sentido contrário e passa a esquadrinhar o mundo na sua forma mais simples, encontrando nisso um grande interesse: “Da quando comprai quella casona in campagna le mie curiosità si capovolsero: mi accorsi che c’erano più cose da scoprire in qualche ettaro di terra che nel resto del mondo”. Abandona, então, o mundo amplo, globalizado, e se dedica à descoberta, para ele, da profundidade do “mundo simples”. Diz:

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Para Luca tornou-se fascinante a observação da natureza e um desafio a tentativa de reproduzi-la nos quadros que começava a pintar:

Mi affascinavano le Mille gradazioni di verde dei boschi, delle colline, dei pascoli, anzi mi tormentavano: sarei mai riuscito a riprodurre quelle nuances? E la diversa sfumatura di grigio nel campo arato e in quello ancora vergine? Cominciai la mia avventura, senza cavalletto, dipingevo su un ripiano orizzontale come i bambini sugli album. Usavo i colori a tempera perchè se mia moglie mi diceva non mi convince la parte destra, la mettevo sotto il rubinetto e ci riprovavo (ILS, p. 14).

Agora esse homem, que havia observado e podido vivenciar tantas coisas em suas viagens, se sente não mais que uma criança, nesse seu “mundo” recém-instaurado; para ele cada dia passa a significar novas descobertas e é nesse mundo que encontra espaço para produzir. Em seu recém-descoberto talento Luca não é mais que uma criança, pintando paisagens que, em sua opinião, eram realmente infantis, nas quais ele podia inserir os elementos que sua criatividade permitia: “All’improvviso mi venne istintivo inserire in quei paesaggi infantili degli elementi estranei, forse degli ectoplasmi”. Ele informa, assim, os elementos que serão encontrados durante toda a narrativa de Il libro di Susanna e que ganharão importância no desenvolvimento da trama. Informa, por exemplo, que insere nos quadros, dentre outros, “Una locomotiva scaturita dall’erba in mezzo a un bucato” e “un vecchio biplano in un campo di periferia, una luna a forma di cuore” (ILS, p. 14).

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Susanna é, talvez, a personificação do novo Luca nascido naquele dia de nevasca, no aeroporto; de certo modo ela é o “Ventitrè”. Através dela, Luca, o narrador do primeiro capítulo, poderá falar, externar suas impressões sobre a sociedade, sofrendo talvez menor censura. Olhar através dos olhos de Susanna é poder redescobrir esse mundo elementar, primordial, que até então se encontrava enevoado, e poder explorar suas novas possibilidades. Usando a voz da menina, ele poderá, enfim, expressar todo os seus medos e dúvidas, como ele mesmo diz ao final do primeiro capítulo: “È il diario in cui la fanciulla vestita di rosso esprime i sogni le incertezze e anche gli incubi di questa fine millennio” (ILS, p. 15).

Intervalo entre o fim do primeiro capítulo e a entrada de Susanna em cena, para a apresentação de algumas considerações teóricas referentes aos conceitos de autor, leitor e narrador.

Observamos que ao final do primeiro capítulo, o autor empírico Luca, através do narrador homônimo, estabelece o “contrato de aceitação” com o leitor empírico. Ou seja, o autor busca a cumplicidade do leitor, e o estimula a concluir a leitura do romance.

As questões que Il libro di Susanna responderá são elaboradas no início do romance, no primeiro capítulo. As respostas a essas questões encontram-se dissolvidas ao longo da narrativa.

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Uma vez estabelecido o “pacto” narrativo teremos um leitor capaz de aceitar o conteúdo narrado, ainda que este fuja de seu conhecimento de mundo ou de seu entendimento. Ou seja, o leitor entra no mundo de finzione do autor e “preenche toda uma série de lacunas”, como nos orienta Umberto Eco (1994, p. 9): “todo texto é uma máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça uma parte de seu trabalho. Que problema seria se um texto tivesse de dizer tudo que o receptor deve compreender – não terminaria nunca”.

Todo autor procura seu leitor-modelo, conforme opina Eco (Ib, p. 14):

O Leitor-Modelo de uma história não é o leitor empírico. O leitor empírico é você, eu, todos nós, quando lemos um texto. Os leitores empíricos podem ler de várias formas, e não existe lei que determine como devem ler, porque em geral utilizam o texto como um receptáculo de suas próprias paixões, as quais podem ser exteriores ao texto ou provocadas pelo próprio texto.

O texto estabelece, então, uma espécie de jogo com o leitor. “Mas quem determina as regras do jogo e as limitações? Em outras palavras, quem constrói o leitor-modelo?”, indaga Eco (Ib, p. 17), que na sua resposta à indagação – ‘“O autor”, dirão de imediato meus pequenos ouvintes’” – alude às primeiras linhas de um clássico da Literatura Italiana – Le avventure di Pinocchio, de Carlo Collodi.

E, a exemplo do narrador de Pinocchio, que nega a expectativa provocada pelo “C’era una volta”, Eco declara seu desinteresse pelo autor empírico, afirmando: “[...] cabe-nos ver o autor como uma entidade empírica que escreve a história e decide que leitor-modelo lhe compete construir, por motivos que talvez não possam ser revelados e que só seu psicanalista conheça?” (Id, ib).

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E nos ilumina, ao caracterizar o seu Autor-Modelo, proposto “de modo a criar simetria com o leitor-modelo” (Ib, p.20). E afirma que a técnica pode visar a criar um estilo: “Sim, claro, no final pode-se reconhecer o autor-modelo também como um estilo, e o estilo será tão claro e inconfundível que veremos que sem dúvida se trata da mesma voz que inicia o romance” (Ib, p. 21).

Apoiando-nos na proposta de Eco, afirmamos que o Autor-Modelo de Il libro di Susanna é Luca, o narrador do primeiro capítulo, que inicia a história, propõe o contrato narrativo e cede a voz a Susanna, a personagem “nata dai pennelli di un nonno”.

A propósito de personagem, dentre as que podem compor um romance, duas são especiais pelo papel que representam no processo narrativo: o narrador e o narratário.Tanto Luca quanto Susanna, reiteramos, são personagens que assumem a função de narrador na obra: Luca, no primeiro capítulo; Susanna, a partir do segundo.

A respeito do conceito de narrador, ratificando o texto selecionado do livro Seis passeios pelos bosques da ficção, de Umberto Eco, citado anteriormente, transcrevemos a seguinte afirmação de Victor Manuel de Aguiar e Silva (1974, p.26), sobre a necessária distinção entre os conceitos de autor e narrador:

O narrador constitui a instância produtora do discurso narrativo, não devendo ser confundido, na sua natureza e na sua função, com o autor, pois o narrador é uma criatura fictícia como qualquer outra personagem (1974, p. 26).

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Jamais será possível saber, pela simples razão de que a escritura é a destruição de toda voz, toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo aonde foge o nosso sujeito, o branco-e-preto onde vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve.

Ainda neste tema, Carlos Reis afirma (2000, p. 257):

a definição do conceito de narrador deve partir da distinção inequívoca relativamente ao conceito de autor, não raro susceptível de ser confundido com aquele, mas realmente dotado de diferente estatuto ontológico e funcional. Se o autor corresponde a uma entidade real e empírica, o narrador será entendido fundamentalmente como autor textual, entidade fictícia a quem, no cenário da ficção, cabe a tarefa de enunciar o discurso, como protagonista da comunicação narrativa.

E observa que a descrição do conceito de narrador “não deve processar-se de forma rigidamente formalista. Mesmo reconhecendo-se a sua especificidade ontológica, importa não esquecer que o narrador é de facto, uma invenção do autor” (id, ib). Essa afirmação nos remete a Umberto Eco e a seu conceito de Autor-Modelo, que também pode ser lido como “estilo do autor”.

Sobre o conceito de narratário, “correlato do termo e conceito de narrador”, informa Carlos Reis que, na atualidade,

O narratário constitui “uma figura de contornos bem definidos no domínio da narratologia. Tal como na díade autor/narrador, também a definição do narratário exige a distinção inequívoca relativamente ao leitor real da narrativa, e também quanto ao leitor ideal e ao leitor virtual; o narratário é uma entidade fictícia, um ‘ser de papel’ com existência puramente textual” (Ib, p. 267).

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Andrea Bernardelli tece as seguintes considerações sobre a figura do narratário:

Il narratario si identifica formalmente con il tipo di interlocutore presupposto dall’atteggiamento assunto dalla figura del narratore (2006, p. 40).

In molti casi il narratario tende a identificarsi con la figura di ogni potenziale lettore del testo, in particolare nei casi in cui il narratore faccia un largo impiego di quel dispositivo definito di “appello al lettore” (Ib, p. 40-41).

Bernardelli distingue três formas de narrativa: a oral, a escrita, e a que se dá através de imagens: “Si può così provvisoriamente definire la narrazione come ogni forma testuale di racconto-orale, scritta o visiva (che raccoglie pittura, fotografia, cinema e televisione) – attraverso cui qualcuno ci narra una storia” (Ib, p.12).

Em Il libro di Susanna, o autor se serve das três formas de narrativa supracitadas. Naturalmente, Goldoni produz uma narrativa literária, porém com forte presença da oralidade. E isso se deve ao fato de o romance se estruturar em forma de diário, o que dá origem ao que chamamos de formas mistas, ou seja, verifica-se a conservação de características de origem oral na literatura. E a narrativa através de imagens também é utilizada no romance, a partir dos quadros pintados por Luca, o narrador, que tem por função ilustrar o mundo de Susanna.

Embora por si só não sejam capazes de sustentar a narrativa, as ilustrações ao romance funcionam como elementos de apoio, conforme escreve Bernardelli (Ib, p. 11): “Dalle primitive incisioni rupestri fino alle più complesse forme delle arti figurative di età medievale e moderna, le immagini hanno infatti svolto un fondamentale ruolo di supporto alla narrazione”.

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3.3- “Pigliatemi come sono” ou a hora e a vez de Susanna

O surgimento de um novo personagem acarreta inevitavelmente a interrupção da história precedente para que a nova história, aquela que explica o “estou aqui agora” do novo personagem, nos seja contada. Uma segunda história é englobada na primeira [...] (TODOROV, 2003, p. 100).

Apresentando uma espécie de resumo do que até aqui foi tratado, sublinhamos que o primeiro capítulo do romance em estudo constitui a sua gênese. Nele, o narrador, Autor-Modelo, explica como tudo começou – expondo a situação inicial e os fatos que culminaram na criação de Susanna – e propõe ao Leitor-Modelo um contrato narrativo.

No segundo capítulo do romance, “Pigliatemi come sono”, é feita a apresentação da personagem Susanna, que passará a conduzir a narrativa. O narrador do primeiro capítulo, Luca, sai de cena transmitindo a voz narrativa a Susanna.

Outra mudança importante ocorre na própria estrutura da narrativa, que ganha o formato de diário, no qual vêm narradas as aventuras da personagem principal, Susanna.

Nos vinte e nove capítulos seguintes, em que detém a voz narrativa, Susanna conta passagens de sua vida. Os capítulos são fechados, visto que cada um deles possui coerência interna; mas o todo não respeita uma ordem cronológica dos acontecimentos.

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englobante”. Se o primeiro capítulo traz informações precisas e um início, o mesmo não se verifica no decorrer da narrativa; não se encontra o clímax, nem tampouco o final, conforme observaremos mais adiante.

Tratávamos do segundo capítulo, quando fizemos uma breve digressão sobre o formato que ganha a narrativa a partir do segundo capítulo – diário –, no qual, mais uma vez, somos apresentados à menina que “nasceu dos pincéis de um avô”. No entanto, dessa feita é a própria personagem que se apresenta, e de maneira bastante direta:

Mi chiamo Susanna e sono nata qualche giorno fa quando Luca mi ha disegnato nell’angolo di un suo quadro con un vestito rosso e un ombrellino a fiori. Dunque sono venuta al mondo da pochi giorni, però sono già adolescente perchè questa è l’etá della ragazzina uscita dai suoi pennelli (ILS, p.19).

Nesse primeiro contato, Susanna menciona sua condição de personagem, embora sua vida apresente todos os elementos do mundo real, como o conhecemos, que lhe foram dados no momento em que Luca a criou: “Genitori, nonni, qualche zia, che popolano la sua vita fuori dai quadri e che lei tratteggia nelle pagine che seguono” (ILS, p.15). Fica claro que Susanna é uma personagem, sendo, portanto, aceitável que ela tenha nascido adolescente, o que, fora do campo ficcional, é simplesmente inadmissível.

Referências

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