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Enraizados: os híbridos glocais

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Academic year: 2021

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Enraizados:

os híbridos glocais

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Enraizados: os híbridos glocais

Dudu de Morro Agudo

Apoio Programa Petrobras Cultural

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Copyright © 2010 Dudu de Morro Agudo

COLEÇÃO TRAMAS URBANAS (LITERATURA DA PERIFERIA BRASIL) organização

HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA consultoria ECIO SALLES produção editorial CAMILLA SAVOIA projeto gráfi co CUBICULO

ENRAIZADOS: OS HÍBRIDOS GLOCAIS produtor gráfi co SIDNEI BALBINO designer assistente DANIEL FROTA revisão CAMILLA SAVOIA CAROLINA CASARIN ITALA MADUELL revisão tipográfi ca CAMILLA SAVOIA D897e

Dudu, de Morro Agudo,

1979-Enraizados, os híbridos locais / Dudu de Morro Agudo. - Rio de Janeiro : Aeroplano, 2010. il. -(Tramas urbanas)

Apêndice

ISBN 978-85-7820-053-4

1. Dudu, de Morro Agudo, 1979-. 2. Movimento Enraizados (Projeto cultural). 3. Músicos de rap - Brasil - Biografi a. 3. Hip-hop (Cultura popular) - Rio de Janeiro (RJ). 4. Rap (Música) - Rio de Janeiro (RJ). I. Programa Petrobras Cultural. II. Título. II. Série.

10-5555. CDD: 927.845 CDU: 929:78.067.26

27.10.10 29.10.10 022285

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS AEROPLANO EDITORA E CONSULTORIA LTDA AV. ATAULFO DE PAIVA, 658 / SALA 401 LEBLON – RIO DE JANEIRO – RJ CEP: 22.440-030

TEL: 21 2529-6974 TELEFAX: 21 2239-7399

aeroplano@aeroplanoeditora.com.br www.aeroplanoeditora.com.br

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A ideia de falar sobre cultura da periferia quase sem-pre esteve associada ao trabalho de avalizar, qualifi car ou autorizar a produção cultural dos artistas que se encontram na periferia por critérios sociais, econômi-cos e culturais. Faz parte da percepção de que a cul-tura da periferia sempre existiu, mas não tinha oportu-nidade de ter sua voz.

No entanto, nas últimas décadas, uma série de traba-lhos vem mostrar que não se trata apenas de artistas procurando inserção cultural, mas de fenômenos orgâ-nicos, profundamente conectados com experiências sociais específi cas. Não raro, boa parte dessas histórias assume contornos biográfi cos de um sujeito ou de um grupo mobilizados em torno da sua periferia, das suas condições socioeconômicas e da afi rmação cultural de suas comunidades.

Essas mesmas periferias têm gerado soluções originais, criativas, sustentáveis e autônomas, como são exem-plos a Cooperifa, o Tecnobrega, o Viva Favela e outros tantos casos que estão entre os títulos da primeira fase desta coleção.

Viabilizado por meio do patrocínio da Petrobras, a con-tinuidade do projeto Tramas Urbanas trata de procurar não apenas dar voz à periferia, mas investigar nessas experiências novas formas de responder a questões culturais, sociais e políticas emergentes. Afi nal, como diz a curadora do projeto, “mais do que a internet, a periferia é a grande novidade do século XXI”.

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Na virada do século XX para o XXI, a nova cultura da periferia se impõe como um dos movimentos culturais de ponta no país, com feição própria, uma indisfarçá-vel dicção proativa e um claro projeto de transformação social. Esses são apenas alguns dos traços de inovação nas práticas que atualmente se desdobram no pano-rama da cultura popular brasileira, uma das vertentes mais fortes de nossa tradição cultural.

Ainda que a produção cultural das periferias comece hoje a ser reconhecida como uma das tendências cria-tivas mais importantes e, mesmo, politicamente inaugu-ral, sua história ainda está para ser contada.

É nesse sentido que a coleção Tramas Urbanas tem como objetivo maior dar a vez e a voz aos protagonistas desse novo capítulo da memória cultural brasileira. Tramas Urbanas é uma resposta editorial, política e afe-tiva ao direito da periferia de contar sua própria história.

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Agradecimentos

Agradecemos a Heloisa Buarque de Hollanda pela opor-tunidade. Aos Enraizados do Mundo, quiçá do Universo, e ao nosso patrocinador maior: Deus, pelo milagre de transformar cada barrigudinho melequento das peri-ferias em grandes homens e mulheres, grandes líderes das quebradas e grandes articuladores da cultura de raiz. Aos amigos e familiares, não precisamos agrade-cer, já que eles existem para nos apoiar mesmo, amigos e parentes são pra essas coisas. É nóis, vagabundo!

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Sumário

12 Introdução 14 Apresentação

16 Prefácio – por Luiz Carlos Dumontt 20 Cap.01 Antes de tudo

Um líder mirim

Primeiro contato com a arte Trabalho: como conseguir grana?

O rap: como conheci e por que pratiquei Cabeça vazia: ofi cina do diabo

56 Cap.02 Enraizados: como começou?

A criação do Movimento Enraizados Portal Enraizados

Iniciando projetos Enlaçado pelo Enraizados

A imprensa nos descobriu e descobrimos

a imprensa

2003: um ano divisor de águas

A experiência de mobilizar e entreter O fi m do começo…

Ousadia: deixe-me ir, preciso andar… O Neoenraizados

Level two

144 Cap.03 Seguindo em frente

A arte de criar o inimaginável Ousando em novos territórios Cada um com o seu cada um Nossas superproduções

Dinheiro: solução ou mais problemas? Comunicação: passeando entre classes Se não sonhássemos, não sairíamos

do lugar

Algumas luzes no fi m do túnel Entre trancos e barrancos

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226 Cap.04 Estamos só no início

Acionando a Rede Enraizados Um elefante branco nas mãos Núcleo de mulheres do Enraizados: uma questão de gênero

Mil fi tas acontecendo Articulação internacional

O pulo do gato

Nossa odisseia pela Europa Voltando para casa

291 Anexo - Movimento Enraizados por

Movimento Enraizados (Frases no twitter) 301 Posfácio – por DJ Raffa

302 Imagens: índice e créditos 307 Sobre o autor

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Introdução

A principal meta da educação é criar homens que sejam capazes de fazer coisas novas, não simplesmente repetir o que outras gerações já fi zeram. Homens que sejam criadores, inventores, descobridores. A segunda meta da educação é formar mentes que estejam em condições de criticar, verifi car, e não aceitar tudo que a elas se propõe.

— Jean Piaget

Meu nome é Flávio Eduardo, no hip-hop me conhecem como Dudu de Morro Agudo ou simplesmente DMA. Nasci em 1979, em Morro Agudo, um bairro pobre e – para alguns – violento da cidade de Nova Iguaçu, na Bai-xada Fluminense do Rio de Janeiro.

Sou fi lho de Guilherme, um vidraceiro, que hoje é conhe-cido como Dico por causa de uma de minhas músicas – “Dico Sequela” –, e de Lúcia, uma ex-vendedora de rou-pas que trabalha atualmente como merendeira numa escola do município do Rio de Janeiro.

Quando eu nasci, minha mãe queria me colocar o nome de Carlos Eduardo, porque na época passava uma novela e o galã tinha esse nome. Meu pai queria Flávio porque ele queria algum nome que lembrasse o Flamengo, a grande paixão dele. Então ele pensou: Fla, fl a, Flávio, corta o Carlos e deixa o Eduardo, pronto: Flávio Eduardo. Meu pai é o tipo de sujeito que podemos chamar de boê-mio, vive cada dia como se fosse o último de sua vida; por outro lado minha mãe é uma mulher centrada, que tem como maior qualidade a honestidade e dedicou sua vida ao trabalho para me dar uma educação de qualidade. A prova disso é que estudei toda a minha vida em escolas

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particulares até o momento em que entrei para a facul-dade e não pudemos mais pagar pelos estudos.

Eu acho que sou um misto dos dois. Um cara que ama a noite, a vida, mas que tem uma preocupação excessiva com suas responsabilidades. Em toda a minha família, creio que sou a única pessoa que trabalha com arte. A maioria dos meus familiares começou a trabalhar bem cedo, boa parte em trabalhos braçais, e pouquíssimos conseguiram cursar uma universidade. A arte nunca foi bem-vista na minha casa. É comum nas famílias que vivem na periferia as crianças começarem a trabalhar bem cedo, para ajudar em casa ou para ter sua independência fi nan-ceira, e para isso quase sempre param de estudar, repetindo a mesma história de vida de seus pais e avós.

As escolas públicas de nível fundamental e de nível médio na Baixada Fluminense não têm um ensino muito bom. Na prática eu já sabia, mas resolvi fazer uma pes-quisa e fi quei ainda mais surpreso com o resultado. Des-cobri que das 50 melhores escolas do país 42 são parti-culares e apenas oito são públicas. Analisando a mesma tabela percebi que no estado do Rio de Janeiro estão 18 das 50 melhores escolas de nível médio do país, e des-sas 18, 14 são particulares e apenas quatro são públicas, e das quatro, três são federais e somente uma estadual. Descobri ainda nessa pesquisa que das 18 melhores escolas do nosso estado apenas uma está na Baixada Fluminense, em Nova Iguaçu, e é particular. Quer dizer, as pessoas de baixa renda jamais vão conseguir estudar em uma escola dessas.

Baseado nisso é fácil entender por que minha mãe fez de tudo para que eu estudasse em escola particular, mas nem por isso tive o melhor ensino. Poucos são os que conseguem quebrar esse ciclo social, mas graças a Deus eu sou um desses.

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Apresentação

Não existe uma fórmula para o sucesso. Mas, para o fracasso, há uma infalível: tentar agradar a todo mundo.

— Herbert Bayard Swope

Resolvi escrever este livro para contar de forma cronoló-gica a história do Movimento Enraizados. A ideia é focar nas principais atividades, baseado naquilo que vivi e vivo dentro da organização.

Apesar de eu tê-lo criado em 1999, o Movimento Enrai-zados é na verdade o refl exo das centenas de pessoas que por ali passam e vivem os mais variados e intensos momentos, dando forma, vida e movimento à organiza-ção. Por isso, pela grande quantidade de histórias boas e interessantes, nem todos puderam entrar nesse livro. O Movimento Enraizados é uma organização complexa que me permitiria abordar diversos eixos, mas decidi enfatizar a Rede Enraizados e seus processos de comu-nicação capazes de agregar pessoas e organizações de todo o mundo para discutir e pensar soluções coletivas para problemas locais, que também podem se tornar soluções globais.

Segundo o professor Leonel Azevedo de Aguiar1, em um

trecho do artigo “Apropriação das tecnologias de infor-mação e estratégias da ecologia do virtual”, publicado na revista “Rastros”: “Enraizados na rede rizomática:

1 Professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUC-Rio. Doutor e Mestre em Comuni-cação pela UFRJ. Jornalista formado pela UFF.

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simultaneamente, local e global – ação política local e produção cultural global. Movimento hip-hop, aporte glocal para o ciberativismo político.”

Por muito tempo a história da organização se confundiu com a minha, por isso os primeiros textos falam um pouco da minha vida até o momento da criação do movimento. Creio que desta forma será mais fácil o entendimento de como tudo começou.

A ideia do livro é sintetizar algumas situações e também relatar os acontecimentos de forma objetiva para que o leitor tire suas próprias conclusões e talvez consiga per-ceber neste material, após uma leve refl exão, o ponto chave em que uma intervenção cultural pode mudar o destino da juventude brasileira.

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Prefácio

Se houvesse uma única palavra para designar o que sig-nifi ca o Movimento Enraizados em sua máxima ampli-tude, seria difícil escolher termo mais exato que a pala-vra milagre.

Uma ação despretensiosa que se desenvolve em um formato de rede-mãe com várias outras redes interliga-das, provenientes de ideias tidas anteriormente como improváveis, descabidas e até mesmo impossíveis de acontecerem em um primeiro momento, isoladamente ou em cadeia, dada a sua origem e o histórico de seus criadores, sem conhecimento prévio de outras formas de mobilizações parecidas, nem conhecimentos acadê-micos, nem tutores, nem padrinhos ricos, nem herança alguma de quaisquer outros agentes de fora ou de den-tro do Movimento.

É complicado falar de si próprio, sem deixar transpare-cer aquilo que nos impulsiona de forma defi nitiva para um horizonte desconhecido, desafi ador, porém insti-gador e mola mestra de tudo o que fazemos, a nossa autoestima, nossa força maior; nosso caráter guerreiro, pronto para nos lançar do penhasco e construir as asas no meio do caminho antes que “esborrachemos” de cara no chão; essa força que provém do quase nada e domina toda a nossa alma, mente e corpo e nos possibilita tentar algo novo e inusitado e quase suicida é o que chamamos carinhosamente de militância cultural – interferir local-mente com ações culturais em rede para discutirmos

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políticas públicas e mudar uma realidade histórica de exclusão sociocultural e econômica em nossas “quebra-das” (bairros).

Nas próximas páginas o leitor se deparará com a quebra vigorosa de um paradigma presente em todas as comuni-dades brasileiras e talvez do mundo, o ciclo de repetição a que estamos fadados a viver viciosamente em nossas vidas: se sou de família abastada, também serei abas-tado, mas se sou de família pobre, continua rei pobre e deixarei a minha pobreza de herança para a minha prole. Essa noção está bem consolidada nas famílias de dou-tores, médicos, militares, empresários e, acima de tudo, nas milhares de famílias de operários; sendo que no caso dos operários ou proletários, como queiram cha-mar, há quase que uma infl exibilidade, é quase impossível para um fi lho de um proletário ser um médico, um doutor ou um ofi cial militar, porque o processo de exclusão social seguido de uma forte pressão psicológica nos impulsiona a pensar que as coisas são assim mesmo, que não há nada de mais em repetir a profi ssão do meu pai e não tentar uma medicina ou qualquer outra profi ssão que me faça ascender socialmente é uma praga que comba-temos com treinamento psicológico na nossa escola de militância, o Cefam – Centro de Estudo e Formação de Ativismo e Militância, onde nós, por nós mesmos, inter-pretamos as várias mensagens diretas, indiretas e até mesmo subliminares dos vários meios de comunicações que nos rotulam, nos cegam e nos condicionam a pensar que todo esse “esquema social” é a vontade de Deus. Nessas páginas não há a verdade acima de tudo, muito menos todos os fatos que aconteceram na história do Movimento Enraizados, mas apenas um ponto de vista de um dos seus idealizadores e um dos maiores líderes que eu tenho o prazer de conhecer e chamar de meu amigo: DMA, Dudu de Morro Agudo, Flávio Eduardo. Não importa

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como o conheça, é mais um sobrevivente e um guerreiro dedicado, sempre voluntário para as tarefas mais difí-ceis, líder da F.E. – Forças Especiais desse grande exér-cito que se espalha desde os becos mais escuros e som-brios das favelas até o asfalto, chegando até mesmo às praias da Zona Sul. A clareza de ideias, a multicultura-lidade e principalmente a vivacidade de uma juventude pronta para a guerra social que se desenrola a todo o ins-tante em nossas vidas arrebanha cada vez mais volun-tários, fazendo-nos crescer em número e qualidade em uma taxa de não menos que 500% ao ano, começando com 3 cartas escritas inicialmente para militantes da cultura hip-hop, para a quebra da barreira dos 600.000 acessos únicos mensais em nosso site na Internet. Ganhamos prêmios, status e moral, mas o nosso maior orgulho é ganhar mais um irmão para essa grande famí-lia que chamamos de Enraizados. Alguns nos chamam de loucos fantásticos, bairristas lunáticos ou provin-cianos; nós preferimos nos autodesignar simplesmente de Enraizados; mas a defi nição de fora do movimento que mais nos deixa felizes é a do professor Leonel Aze-vedo, um homem fantástico que nos chama carinhosa-mente de híbridos glocais.

Obrigado a todos que nos ajudam das formas possíveis e imagináveis a divulgar, difundir e até mesmo explicar para os outros e para nós mesmos aquilo que fazemos com tanto amor e afi nco, simplesmente por ser a nossa razão de viver.

Amamos nossa arte, nossa cultura e todos os que nos cercam. Boa leitura.

Luiz Carlos Dumontt

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Cap.01

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Um líder mirim

A diferença entre um chefe e um líder: um chefe diz, Vá!

um líder diz, Vamos!

— E. M. Kelly

Meus pais sempre trabalharam fora, então eu fi cava sozi-nho desde muito novo, tendo que cuidar dos afazeres de casa, tomar banho, ir para a escola, fazer as lições e fi car no sapatinho até meus pais chegarem, sendo frequente-mente vigiado pelos vizinhos a pedido de minha mãe. Lembro de poucas coisas da minha infância, apenas algu-mas fi caram marcadas na memória, como, por exemplo, o dia em que aprendi a andar de bicicleta. Meu pai tirou as rodinhas auxiliares e me levou pra rua, comecei a peda-lar e quando eu estava me sentindo seguro ele peda-largou o selim. A partir daí começava a me equilibrar sozinho pelas ruas de Morro Agudo. Lembro também do dia em que meu pai me levou para um campo de futebol. Isso me marcou muito porque meu pai era do tipo provedor, apesar de não me levar muito para passear como os pais costumam fazer com os fi lhos, porque a principal preocupação dele era não deixar as coisas faltarem em casa, uma atitude muito comum entre os pais da periferia.

Quando criança, eu era sempre o primeiro lugar na escola, até que cheguei na sexta série e comecei a desandar. Em 1990, com apenas 11 anos de idade, gazeteei aula por

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23 Antes de tudo

quase um ano, foi inevitável a reprovação. Minha mãe, que sempre acompanhava minhas presenças na escola através dos carimbos na caderneta escolar, não descon-fi ava das minhas travessuras porque eu mandei fazer um carimbo de presença idêntico ao da escola.

Os diretores do Colégio Luiz Silva, o melhor colégio do bairro na época, enviavam bilhetes para minha casa, querendo saber por que eu não estava comparecendo às aulas, mas eu sempre interceptava os bilhetes e falsifi -cava a assinatura da minha mãe, até que um dia envia-ram um telegenvia-rama. Foi quando minha mãe descobriu toda a verdade e eu levei a última grande surra da minha vida. A televisão me ensinava a falsifi car documentos. Lem-bro de uma entrevista que vi com um velho estelionatá-rio que dizia: “No Brasil a burocracia dá brecha para a falsifi cação, todo papel que tem um carimbo vira origi-nal.” Eu viajei na ideia do coroa e fi quei pensando onde eu poderia aplicar esse “ensinamento”, até o dia em que fi z na escola. Como deu certo na primeira vez, continuei fazendo até dar errado, e me lasquei.

Eu apanhava com frequência, minha mãe não admitia que eu vacilasse, e nesse dia ela me bateu tanto que os vizinhos vieram me socorrer, mas não adiantou, minha mãe colocou todo mundo pra correr e me desceu a por-rada. Lembro de um diálogo entre minha mãe e uma vizi-nha que tentava interceder por mim:

— Lúcia, solta ele, você vai machucar o menino! — O fi lho é meu e eu vou educar do meu jeito. Eu paguei um ano de escola pra quê? Pra ele gazetear aula? Ele tá pensando que eu ganho dinheiro onde?

Nesse momento eu pensei: “Tô fodido, agora ela vai me matar.”

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24 Enraizados: os híbridos glocais

Com 11 anos, liderei muitos garotos rumo à reprovação. Depois disso tomei gosto pelos estudos novamente. Em 1992 comecei a estudar informática – minha grande paixão – num curso de Morro Agudo. Ainda não existia o famoso Windows, então eu fazia curso de Digitação, MS-DOS, Word Star e Lótus 123. Meus pais não queriam pagar o curso alegando que eu não terminava nada do que começava, mas eles acabaram cedendo porque se tratava de conhecimento para o meu futuro.

Nas aulas de digitação eu treinava digitando um funk famoso da época, cantado por MC Mascote e MC Neném, cujo nome era “Rap da Daniela Perez”.

Daniela Perez era atriz, fi lha da autora de telenovelas Glória Perez, e foi assassinada pelo colega de trabalho Guilherme de Pádua no dia 22 de dezembro de 1992. Foi um crime que abalou o Brasil inteiro. Os dois MCs, então, fi zeram essa música em homenagem à atriz e fi caram famosos por causa desse rap, a única música que falava da morte de Daniela autorizada por Glória Perez, que fi cou emocionada com a homenagem.

Foi nesse ano que conheci um dos meus melhores ami-gos, o Luciano Gomes – que hoje é policial militar. Ele é como um irmão, mas nossa amizade começou na base da porrada. Ele liderava uma galera no colégio e eu lide-rava outra, até que um dia, por causa de uma garota, a gente se enfrentou.

Ele diz que me bateu, mas eu tenho certeza que ganhei a briga. E a fama de vencedor fi cou mesmo pra mim por-que ele faltou as aulas por dois dias após a briga e me deu tempo de contar minha vantagem para todo o colégio. Tem-pos depois a gente começou a se falar e juntamos nossas duas galeras. Ficamos então com mais moral na escola do que os caras da oitava série, que eram nossos inimigos.

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25 Antes de tudo

Eu fazia curso de informática, mas não tinha computa-dor para treinar. Usava o de um amigo — Marcelo Granja — que tinha um TK85, um computador que ligava na televisão, funcionava com Basic e gravava os progra-mas num gravador cassete. É engraçado lembrar dessas parafernálias porque parece que sou muito velho, mas tenho apenas 30 anos. Depois ele ganhou um CP500, um computador muito esquisito, pois o teclado e o moni-tor eram colados, uma peça única. Os pais do Marcelo tinham uma condição fi nanceira legal, provavelmente os de mais grana na rua onde eu morava, então os brinque-dos eletrônicos caros chegavam primeiro na casa dele. Nesta época eu já arrumava revistas e livros de Basic e fazia pequenos programas de computador, mas não conseguia gravar na fi ta cassete. Todos os dias eu perdia tudo o que digitava e refazia novamente no dia seguinte, o que serviu pra eu aprender lógica de programação antes mesmo de estudar a matéria na escola e tomar gosto por ela.

Tempos depois um outro amigo ganhou um 386 dos pais. É um grande amigo e se chama Marcio, mas é conhe-cido no bairro como Marcio Periquito, porque ele tem um nariz igual ao do Luciano Huck. A gente troca muita ideia até hoje, ele também é apaixonado por informática e nunca foi apegado a bens materiais, o que permitia que eu estudasse e treinasse no computador dele.

A desigualdade social é presente até em Morro Agudo, onde algumas pessoas têm carros importados, casa bonita, condições de colocar o fi lho em boas escolas e cursos, enquanto o outro extremo não tem nem mesmo o que comer e deixa seus fi lhos jogados nas ruas. O que separa essas famílias, geografi camente, é, às vezes, apenas um muro. Eu estava no meio dessas duas reali-dades, conhecendo e transitando de um lado ao outro e colocando essa galera para conversar.

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27 Antes de tudo

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29 Antes de tudo

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Primeiro contato

com a arte

Não tocamos para agradar os críticos. Tocamos o que queremos, quando queremos e o quanto quisermos.

E temos motivos para tocar.

— Bob Marley

Em 1993 o funk carioca fi cou muito forte e presente na minha vida, e comecei a arriscar algumas composições. Justamente quando ele deixa de aparecer nas páginas culturais dos jornais e passa a frequentar as páginas policiais. Creio que esse foi meu primeiro contato com a produção de arte: fazer letras de música. O processo de criação me fascinou, e depois que vi minha letra de rap pronta tive vontade de mostrar para alguém, mas sentia muita vergonha.

Eu ouvia música desde pequeno, infl uenciado por meu pai, que gostava de Tim Maia, Jorge Ben, Elis Regina, Car-los Alberto, Roberta Miranda. Ele era – e acho que ainda é – apaixonado pela música da Roberta Miranda, mas não sabe cantar nenhuma, só os refrões e alguns pequenos trechos. Fazia questão de “zoar o plantão” fazendo uns sons esquisitos nas partes em que não sabia cantar. Meu pai colocava o som no último volume pros vizinhos ouvirem também. Hoje ainda é assim, e se bobear é ainda pior. No quartinho que ele tem no terraço de casa,

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construído para guardar as ferramentas, e que hoje é o local em que ele faz alguns trabalhos de artesanato, foi montada uma espécie de rádio comunitária. São alto-falantes pendurados no telhado do terraço, ligados a um rádio velho – porém barulhento –, em que ele põe as músicas antigas pra tocar e agora também o rap da minha rapaziada. O maneiro disso tudo é que ele gosta de rap. Ele e minha avó foram as pessoas que sempre me deram força pra eu fazer rap, mesmo sem saberem exatamente o que era.

Com essa idade eu já curtia os bailes funk no clube Vas-quinho de Morro Agudo. Uma época que tinha muita briga, quando quem morava no bairro da Tenda não podia ir pro outro lado da estação de trem porque era o bonde inimigo. Dentro do baile, que supostamente era um local neutro, a porrada era generalizada. Eu era novo, mas estava lá, com os caras mais velhos da minha rua. Era uma maluquice de garotos, a gente ia pro baile pegando carona na porta dos ônibus. Lembro de um camarada chamado Ripe, que apesar de ser novo era o mais alto do grupo. Ele sofreu um acidente quando estava pegando carona na porta do ônibus. O motorista, por pura mal-dade, jogou a lateral do ônibus num caminhão, e um parafuso entrou no braço dele. Era sangue pra todos os lados. Levamos ele em casa, entregamos pra mãe, e depois fomos pro baile.

Também lembro de uma vez que fi quei com medo por-que o motorista estava correndo muito e eu pulei do ôni-bus em movimento. Ele estava descendo uma ladeira, a rua era de paralelepípedo, mas tinha muita areia, e quando o ônibus passava subia poeira como naqueles fi lmes antigos de faroeste. Eu ainda não tinha a malícia de pegar carona, então pulei e fi quei parado. Meu corpo foi jogado para a frente e só lembro de descer rolando o morro atrás do ônibus. O mundo ia girando cada vez mais

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32 Enraizados: os híbridos glocais

rápido, eu colocava a mão na frente para não machucar o rosto, e no fi nal deu tudo certo. Não machuquei o rosto, mas em compensação minha mão fi cou em carne viva, minha roupa toda rasgada, joelhos e cotovelos ralados, e mesmo assim fui curtir o baile. Quando cheguei dentro do Vasquinho fui no banheiro lavar as pernas, os braços e corri para o “trenzinho” dar meus gritos de guerra. Nas brigas dos bailes e do bairro eu sempre me desta-cava porque era bom de porrada. Além disso, os garo-tos da minha idade sentiam certo medo de mim porque eu andava com os caras mais velhos, mais infl uentes. Quando algum moleque da minha idade vacilava era por-rada nele. Eu não costumava praticar as mesmas ati-vidades que os garotos da minha idade, não sabia sol-tar pipa, até jogava bola direitinho, mas não gostava, e só jogava bola de gude porque a molecada toda estava jogando. Eu gostava mesmo era de trocar ideia, escre-ver, desenhar e fazer programas de computador. Ao mesmo tempo em que eu deveria ser educado, res-peitar os mais velhos, eu também tinha que ser respei-tado na rua, senão eu virava “comédia”. Nessa época eu pegava um teclado e um gravador do Marcelo Granja, um microfone com outro camarada, fazia bases de funk e gravava minhas músicas em casa. Foram minhas primei-ras gravações de funk. Eu envolvi até o próprio Marcelo nas gravações, a gente fez uns sons zoando uma mina que era ex-namorada dele. Mostramos a fi ta pra ela, que mostrou pra mãe, e então deu uma confusão danada. Eu tenho certeza que elas gostaram do som, porque fi cou maneiro de verdade, mas a gente falava várias besteiras, e a mãe da menina tinha que impor respeito.

No fi nal de 1993 terminei o primeiro grau, e no próximo ano eu daria um passo importante: sairia do colégio onde estudei por toda a minha vida e iria estudar à noite, no

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centro de Nova Iguaçu. Pra mim isso signifi cava a minha independência. Minha mãe queria que eu estudasse no colégio Iguaçuano, que pertencia à mesma família da minha antiga escola. Eu não concordava porque no Igua-çuano estudavam uns playboys de Nova Iguaçu e nessa época eu já sentia o preconceito e a discriminação que esse pessoal tinha por mim.

Nós conversamos e eu convenci minha mãe a me matri-cular num colégio chamado Ceni, pois somente lá tinha o curso que eu queria fazer: tecnologia em processa-mento de dados. Depois que comecei a estudar percebi que o ensino não era muito bom, mas foi a partir dali que dei um rumo na minha vida e comecei a me tornar o cara que sou hoje.

Já no primeiro ano conheci o Netinho, que hoje também é policial militar. Ele sempre morou perto da minha casa, mas a gente nunca tinha trocado ideia antes do Ceni. Começamos a vir de ônibus juntos pra casa, até que nos falamos a primeira vez e fi camos logo camaradas. A gente tocava o maior terror no colégio. Ele já era bem funkeiro e me levava pra curtir os bailes em outros lugares da cidade. E eu levava ele para gravar umas músicas comigo.

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Trabalho: como

conseguir grana?

Sua profi ssão não é aquilo que traz para casa o seu salário. Sua profi ssão é aquilo que foi colocado

na Terra para você fazer com tal paixão e tal intensidade que se torna chamamento espiritual.

— Vincent Van Gogh

Enquanto estudava, já arrumava um trocado instalando som de carro, pois além de informática eu também gos-tava de eletrônica e usava os dois como um meio alter-nativo de conseguir grana. Para os meus pais era difícil pagar meus estudos. Minha mãe trabalhava muito para pagar minha escola e eu não podia exigir mais dela. Aprendi a consertar som de carro com o Mário, pai de um amigo da rua onde moro. Ele ganha a vida consertando aparelhos eletrônicos, e de tanto eu pedir me ensinou essa atividade que já me rendeu uns bons trocados. Mário dizia que som de carro quando para de funcionar quase sempre é problema da saída do próprio som, então eu tinha que trocar o CI (circuito interno). E isso era “batata”: quase sempre era mesmo esse o problema.

Ganhei uma grana maneira consertando o rádio dos outros, e a fama ia aumentando, e cada vez chegava mais gente. Meu portão vivia cheio de carros. Com apenas 14 anos já sabia dirigir, era um dos poucos garotos da rua que tinha essa habilidade. Até ensinei outros garotos,

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como o César, fi lho do cara que me ensinou a conser-tar aparelhos eletrônicos. Quem emprestava o carro era o Marcelo, um cara um pouco mais velho que eu, que morava no fi nal da rua. Meu pai nunca teve carro e até hoje não sabe dirigir, então tive que aprender olhando os outros na rua e pedindo para dar um rolé no carro deles. Para arrumar um dinheiro a mais eu aprendi também a recondicionar alto-falantes, isso também foi o Mário quem me ensinou. Quando as pessoas chegavam à minha casa para instalar um som já vendia o pacote de servi-ços completo. O tempo foi passando e a grana estava fi cando curta com esse esquema de recondicionamento de alto-falantes, então eu e o Netinho decidimos correr atrás de um trabalho de carteira assinada. Compramos o jornal no domingo e fomos atrás das vagas dos clas-sifi cados. Chegamos até uma agência de empregos em Duque de Caxias, que nos mandou fazer uma entrevista na Comercial Lubi Peças, em Nova Iguaçu.

Estávamos confi antes, nosso primeiro emprego estava por vir. Na manhã do dia marcado chegamos à loja, que era uma autopeças, fazia calor, mas eu sentia frio na barriga. Nunca tinha passado por aquela situação antes. Tinha muita gente querendo aquela vaga de estágio. Fizemos uma entrevista com uma senhora chamada Sandra, uma morena de cabelos longos e encaracola-dos, que estava grávida de uns sete ou oito meses. Ela era responsável pelo setor de recursos humanos. Fez a entrevista comigo e com o Netinho ao mesmo tempo. Eu fi quei desanimado porque ela conversou muito mais com ele, me fez três perguntas e duas dúzias para ele, que fi cou muito mais confi ante. Surpreendentemente, no outro dia, foi o meu telefone que tocou, quer dizer, o da minha vizinha, pois a gente não tinha telefone em casa. Eu estava contratado, era o meu primeiro emprego.

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Na verdade era um estágio em que eu deveria trabalhar na área de informática, mas me jogaram no setor fi nan-ceiro. Fiquei três meses por lá, até que tive uma discus-são com o dono da empresa.

Eu já estava puto da vida porque me tiraram do setor maravilhoso que eu estava trabalhando e me jogaram pra emitir nota fi scal. O rapaz que estava neste setor não dava conta do serviço e era sobrinho de um amigo do meu patrão. No novo setor, além de eu ter que lidar com a pressão dos vendedores, tinha que ir frequentemente trocar cheques por dinheiro na sala do todo-poderoso, que nem sempre estava de bom humor.

Eu chegava em casa todo dia muito cansado porque trabalhava e estudava e no trabalho estava um saco. Então parei pra conversar com o meu “coroa”, que me deu um conselho um tanto quanto perigoso para um cara da minha idade. Ele disse: “Filho, não deixe nin-guém tirar onda com a tua cara, principalmente patrão, se tu sentir que ele tá abusando, tu manda logo ele se foder, porque tu não precisa dessa merda de trabalho, aqui em casa a gente dá um jeito, de fome tu não morre. Eu quero é que tu estude.”

Eu fi quei com aquilo martelando na cabeça. Ninguém vai tirar onda comigo, se o meu patrão meter uma bronca eu meto duas. Até que um dia subi para trocar um cheque e ele estava de mau humor, eu também não estava em um dos meus melhores dias, e o nosso encontro foi fatal. A vontade dele prevalecia porque era dono da empresa e gostava de pisar nas pessoas, então quando ele ten-tou me humilhar a gente se enfrenten-tou, um garoto de 15 anos batendo boca com um homem de quase 50. Pare-cíamos gladiadores divertindo os funcionários que fi cavam ouvindo através da porta.

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Rolaram uns “puta que o pariu” pra cá, uns “fi lho da puta” pra lá, e quando eu já estava cansado de xingar, fui embora. Era quinta-feira de manhã quando aconteceu o bate-boca, e voltei ao trabalho somente no sábado, só pra pegar minhas coisas, mas o patrão já estava calmo e queria que eu continuasse na empresa. Ele ainda elo-giou meu gênio forte, mas eu não quis fi car. Sabia que ali tinha acabado meu respeito por ele e não via como cres-cer profi ssionalmente naquele lugar.

Apesar das alternativas que eu tive para ganhar dinheiro, e de ter conseguido emprego logo na primeira tentativa, essa não é a realidade da juventude das periferias do Rio de Janeiro, e quem sabe de todo o Brasil. Paula Martins Salles comenta em sua monografi a “Caminhos de Visi-bilidade para a Juventude da Periferia da Metrópole do Rio de Janeiro”:

Os jovens das camadas populares têm oportunidades bastante limitadas de usufruir dessas características juvenis, não só porque precisam começar a trabalhar e construir família mais cedo, mas porque não têm como usufruir um período longo de despreocupação. [p. 9] Tempos depois, quando o Movimento Enraizados produ-ziu o documentário “E o meu direito ao emprego”, perce-bemos que existem diversas juventudes no Brasil, e com-parando a juventude pobre, que vive nas periferias das grande metrópoles, com a de classe média, concluímos que os jovens da periferia não têm as mesmas oportuni-dades de trabalho porque não tiveram a mesma qualidade no ensino. Ainda de acordo com Paula Martins Salles:

A juventude é uma construção social historicamente determinada, daí que não se pode pensá-la sem espe-cifi car de qual juventude se está falando. As condições sociais, culturais, políticas e econômicas em que se encontram esses jovens são determinantes para se

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entender e defi nir as experiências juvenis. A situação de desigualdade da sociedade brasileira torna esse recorte ainda mais fundamental. (...)

É importante ressaltar que a concepção moderna de juventude (adotada pelo senso comum até os dias de hoje) foi calcada principalmente na experiência dos jovens das classes médias. A esses, foi aberta a pos-sibilidade de se alongar na fase de transição ao mundo do trabalho, visando um maior investimento na sua for-mação profi ssional. Isso signifi cou uma ampliação con-siderável no número de estudantes na sociedade (Corti, 2004). Esse alongamento permitiu a esses jovens um adiamento de todas as marcas de entrada na vida adulta: trabalho, matrimônio e fi lhos. Como essa experiência de postergamento da vida adulta não foi e não é igual para todos os jovens torna-se necessário, ao se falar de juventude, defi nir de que juventude se está falando. [Paula Martins Salles, pags 5 e 9]

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O rap: como conheci

e por que pratiquei

Ser você mesmo em um mundo que está constantemente tentando fazer de você outra coisa

é a maior realização. — Ralph Waldo Emerson

Assim que acabamos o primeiro grau, o Luciano Gomes foi morar em Cascadura, subúrbio do Rio de Janeiro. Nós já éramos muito amigos nessa época, todo fi m de semana eu ia pra casa dele, e num desses fi ns de semana ele me mostrou uma fi ta cassete com uma música que eu achei bem mais maneira do que o funk carioca, uma fi ta com o rap do Racionais MCs. Creio que esse foi meu primeiro contato com o rap, e gostei na hora.

Para mim era tudo muito novo, as músicas duravam mui-tos minumui-tos, eram interessantes e inteligentes, e havia também histórias que falavam daquilo que eu vivia. Nessa época eu começava a refl etir a respeito da minha vida, a respeito da sociedade, começava a analisar o mundo por outro ângulo, e percebi que toda a angústia que eu já sentia era retratada naquelas músicas. A partir daí, eu e o Luciano começamos a escrever algu-mas letras de rap do hip-hop. Digo assim porque no Rio de Janeiro tínhamos que falar desta forma – rap do hip-hop – senão as pessoas achavam que era funk, e o funk já estava totalmente demonizado pela sociedade carioca.

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Nesse mesmo ano as músicas do Gabriel, o Pensador começaram a tocar nas rádios do Rio de Janeiro. Eu gos-tava da maneira que ele escrevia e comprei o primeiro vinil dele, em que havia as músicas “Tô feliz (matei o pre-sidente)” e “Indecência militar”, que eu gostava muito. Gabriel, o Pensador colaborou para a disseminação do rap e do hip-hop. Muita gente pode até não admitir, mas tem uma galera boa no rap do Rio de Janeiro que come-çou ouvindo o rap do Gabriel, que é um puta letrista. Com minha saída da Lubi Peças fi quei “quebrado”, tinha que arrumar outro emprego. Eu lembrei que meu primo Acácio, que tem o apelido de Junior Baiano, trabalhava num lava-jato, e fui ver se ele arrumava um trabalho pra mim. Ele disse que um camarada dele tinha um lava-jato no Carmari, um bairro que apesar de ser na cidade de Nova Iguaçu era muito distante de onde eu morava, e que eu poderia arrumar um trabalho por lá. Me passou o endereço e eu fui pedir emprego. Eu já sabia dirigir e isso facilitou na hora da contratação. Chegando ao lava-jato fi quei surpreso porque três caras que moravam na minha rua já trabalhavam lá, falei com o dono e comecei no mesmo dia.

O salário era R$15,00 por semana. Não tinha folga, não tinha dinheiro de passagem, não tinha dinheiro pra com-prar almoço, e o salário mínimo na época era R$64,79. Mas eu estava feliz de estar trabalhando lá, era o meu dinheiro, conseguido, literalmente, com o meu suor. Com o passar do tempo eu comecei a rezar pra chover, pois quando chovia a gente não trabalhava. Todos os funcionários do lava-jato se reuniam, pegávamos uns baldes pra batucar e começávamos a cantar samba, eu sempre infi ltrava umas rimas no meio. Mas no outro dia, se fi zesse sol, tinha trabalho em triplo.

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Eu passava muito tempo na rua, e não a achava perigosa. Frequentemente via corpos nas esquinas, muitas vezes de conhecidos e até mesmo de amigos.

Era costume os pais levarem as crianças para verem os mortos. Minha mãe nunca me levou, ela morria de medo. Quando as pessoas não morriam assassinadas, eram atropeladas na Dutra e a molecada ia ver, esperando o rabecão chegar pra recolher o corpo.

A morte estava banalizada na minha área, a vida não tinha valor, e creio que hoje, por conta de muitos fato-res, é ainda pior. Amigos de infância se mataram. Todo mundo sabe quem são os assassinos, mas ninguém fala nada. A polícia não investiga e fi ca tudo por isso mesmo. Eu fi cava pensando: “Por que a polícia não investiga as mortes que acontecem nas periferias?”

Teve um momento, na minha rua, em que todos anda-vam armados, inclusive eu. Um dia minha mãe tomou um susto. Ela achou que eu estava meio estranho, entrava e saía muitas vezes do quarto. Ela esperou eu sair e abriu a porta do meu guarda-roupas, foi mexer nos meus livros e caiu um revólver calibre 38 no seu pé.

Nunca vi minha coroa chorar tanto. A arma era do meu tio, disse que ele tinha dado pra eu guardar. Ela acredi-tou na minha versão, porém fi cou com um ódio mortal do meu tio.

Como eu tinha o costume de andar com os caras mais velhos, às vezes ouvia o que não devia. Sabia das pes-soas que iriam morrer, dos assaltos que os caras iriam fazer, mas eu estava ali no meio e eles não se importa-vam em falar desses asssuntos perto de mim, fi caimporta-vam tranquilos porque sabiam que eu era confi ável. Acho que na época eu tinha ainda 15 anos. E de uma maneira ou

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de outra eles eram minha referência, eu achava maneiro o que eles faziam, apesar de não fazer igual. E isso é o que acontece com os moleques da minha área até hoje, eles acham que vão ter mais respeito dos outros se eles andarem armados, se roubarem ou praticarem outro delito qualquer. Minha sorte era que a palavra da minha mãe era sobreposta a qualquer outra, então valiam sem-pre os valores que ela me passava.

Hoje em dia os valores estão perdidos, e se ninguém intervir para mudar essa realidade, muito garoto ainda vai morrer, porque em Morro Agudo não tem tráfi co de drogas igual ao centro do Rio de Janeiro, onde os bandi-dos passeiam de fuzil na rua. Em Morro Agudo é grupo de extermíno, se as pessoas fumam maconha, cheiram, brigam em baile e roubam, não tem perdão, é morte. Um dia estava saindo de casa, acho que ia pra escola, e dezenas de carros de polícia estavam parados na minha rua, procurando uma galera da área que dias antes tinha roubado um carro-forte. O pessoal do bairro fazia piada dizendo que se alguém chegasse na 56ªdelegacia, Morro Agudo, e dissesse que morava na minha rua, a Turíbio da Silva, fi cava preso. Os policiais diziam que toda a bandi-dagem do bairro morava nessa rua. E tem gente que não entende de onde vinham as inspirações para o rap que eu escrevia. Toda essa história contraditória que eu vivia e testemunhava se transformava em arte através do rap. Ao mesmo tempo que eu estava tão próximo, me afas-tava cada vez mais.

Nesse mesmo ano, 1994, eu saí do lava-jato porque estava pleiteando fazer um estágio na Petrobras Dis-tribuidora. O meu tio Humberto trabalha lá e estava me ajudando a conseguir uma vaga. Nessa época ouvia muito rap, GOG, Thaide, DJ Hum e não posso esquecer do Consciência X Atual. Tudo era na base da fi ta cassete.

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Lembro que fui numa excursão pra Lambari, em Minas Gerais, e um moleque, achando que eu morava por lá, me emprestou uma fi ta do CXA (Consciência X Atual). Eu trouxe pro Rio e mostrei pro Luciano, que na época já era o meu irmão, e a partir de então começamos a ouvir somente CXA.

Desde 1992 já existia a organização ATCON no Rio de Janeiro, e Gabriel, o Pensador, Def Yuri, TR, Big Richard, entre outros, já estavam no cenário, pensando e discu-tindo o rap carioca. Mas eu e meu irmão estávamos ini-ciando no processo sem ter noção da importância que tinha o movimento hip-hop pra essa galera. Hoje tenho orgulho de dizer que todos esses que citei, com exceção do Gabriel e do DJ Hum, são meus amigos, e que isso é uma honra pra mim.

O meu irmão conhecia e gostava de rap bem mais do que eu, e ele sempre tinha as novidades. Mas é importante deixar claro que a gente não tinha noção do que real-mente era o hip-hop, nem mesmo sabíamos que exis-tiam os famosos quatro elementos: rap, break, DJ e gra-fi te. A gente gostava mesmo de rap, de ouvir e escrever algumas coisas, sempre protestos, seguindo a linha dos grupos que já conhecíamos.

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Cabeça vazia:

ofi cina do diabo

O Estado proíbe ao indivíduo a prática de atos infratores, não porque deseje aboli-los, mas sim porque quer monopolizá-los. — Sigmund Freud

O estágio na Petrobras não “virava”, ou seja, não acon-tecia, e por isso eu tinha que arrumar outra parada pra fazer. Foi então que o Serginho me chamou para traba-lhar com ele numa obra, eu seria ajudante de pedreiro. Nunca tinha preparado uma massa em toda a minha vida, mas como eu estava precisando de grana, enca-rei na boa. O Serginho é mais um dos meus amigos que entrou para a Polícia Militar.

Em julho de 1995 comecei a estagiar na Petrobras. Eu pegava o trem em Morro Agudo, descia em São Cristóvão e de lá ia andando. Levava cerca de uma hora até chegar no prédio da BR, como o pessoal chamava. Recebia um salário legal, ainda tinha vale-transporte, ticket refeição e quase sempre vinha um dinheiro a mais no pagamento. Foi nessa época que comprei meu primeiro computa-dor. Era um 486DX4-100, top de linha, os famosos Pen-tium nem existiam. Fui aclamado por meus amigos que já tinham computador, agora eu estava no bonde dos caras que tinham computador, e não rolava inveja, eles sabiam que eu merecia ter minha própria máquina, que era um sonho e não um capricho, tanto que fi quei usando

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o mesmo computador até 2002. Foi nesse computador que produzi muitos beats pra mim, para o Léo da XIII, para o Ultimato à Salvação, e muitos anos depois nele fi z também o Portal Enraizados e outros trabalhos.

Nesse ano o Netinho trabalhava no centro do Rio de Janeiro, nós vínhamos juntos de trem, da Central para Morro Agudo, nos divertindo na viagem. Ele vinha na porta, eu na parte de dentro, tinha uma preocupação porque dois amigos da minha rua já caíram do trem, os caras iam em cima porque o trem vivia lotado.

No ano seguinte saí da Petrobras e fi quei novamente desempregado. Estava com 17 anos e provavelmente não arrumaria emprego por causa do quartel, então fi quei só estudando e fazendo trabalhos de informática em casa.

O tempo livre para esses jovens está relacionado ao desemprego e à falta de oportunidades, portanto suas consequências são bastante diferentes do tempo livre dos jovens mais abastados.

[Paula Martins Salles, pag 9]

Eu fi z tanta merda esse ano que quase fui preso duas vezes. A primeira foi porque os moleques da minha rua andavam armados e um dia bateram de frente com o carro da polícia. Eles saíram correndo, a polícia atrás deles, e no desespero e sem ter onde se esconder, entra-ram numa casa. A polícia fi cou com medo de entrar e os moleques mandarem bala, então a tia de um deles saiu chorando no portão e disse que a arma era minha. Os policiais foram bater na minha casa, meus pais estavam trabalhando, eu estava em casa, mas não abri a porta porque sabia que eles não poderiam invadir.

A rua estava cheia de gente. Eles foram embora, mas as fofoqueiras esperaram no ponto de ônibus a minha mãe chegar do trabalho e disseram que a polícia estava me

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procurando porque eu havia roubado o Ciep. Nem pre-ciso dizer que minha mãe quase morreu do coração. Dessa vez eu nem tive culpa. Mas na semana seguinte falsifi quei umas carteiras de um clube aqui da cidade, o Dallas, porque lá tinha uma piscina enorme e a galera da minha rua queria curtir, mas não tínhamos grana pra entrar. A saída era falsifi car as carteiras.

Um dos sujeitos que andavam comigo conseguiu uma car-teirinha do clube e me deu pra eu reproduzir. Fiz 12 idên-ticas, mas não deu tempo de fazer os carimbos. Eu disse pra todo mundo não alterar a carteira, mas um dos garo-tos passou uma canetinha em torno da foto para simular o carimbo. Quando nós chegamos no Dallas quem estava na porta olhando as carteirinhas era o dono do clube e o segurança particular dele, que era policial. Quase todas as carteirinhas passaram, mas na última o cara percebeu que era falsifi cada, justamente porque a tinta da caneti-nha manchou. Então sujou pra todo mundo.

Eles enquadraram a gente na parede, seguraram nossas carteiras de identidade e chamaram a polícia. O dono do clube perguntou quem tinha feito e respondi dizendo que tinha sido eu. Ele me chamou de estelionatário, disse que minha mãe ia me visitar na cadeia. Lembrei do que havia acontecido na semana anterior e tentei argumentar, mas o cara nem deixava eu abrir a boca. Colocava a pistola 9mm na minha cabeça, perguntava se eu era maluco, se eu sabia quantos anos de cadeia eu iria pegar por isso. Eu, tranquilo, disse: “Nenhum, nós somos todos menores de idade.” Então ele gritou que ia matar todo mundo pra gente deixar de bancar o malandro. Com muita argumen-tação o cara liberou a gente, com a condição de levarmos a pessoa que deu a primeira carteirinha, pois ela seria expulsa do clube. Deixamos nossas identidades com ele como prova de que voltaríamos com o tal sujeito que

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tinha a original. Assim que saímos do clube chegaram três carros de polícia. A gente estava de bicicleta e corremos muito, meu coração estava a mil por hora. No fi nal tudo deu certo, ninguém foi preso e ninguém morreu.

No ano seguinte comecei na Unig, uma universidade parti-cular de Nova Iguaçu. Fiquei por lá uns dois anos, cursava Tecnologia em processamento de dados, mas não conse-guia pagar. Minha mãe estava desempregada, eu também não arrumava mais grana, então tava tudo na conta do meu pai, que não conseguiu segurar. Ele até disse pra eu fi car que ele daria um jeito, mas eu não quis, porque pas-sava por constrangimentos em sala de aula. Quem estava devendo a mensalidade não podia ter acesso à nota e era cobrado dentro de sala, na frente de todos, e isso me envergonhava muito, até que abandonei o curso.

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A criação do

Movimento Enraizados

Dou um destino para minha mente

e o inconsciente trabalha em cima do caminho que devo seguir!

— Israel Ziller

Era tímido, não gostava de conversar com muita gente, nem de ser o centro das atenções, e se eu pudesse até preferiria passar despercebido, mas sempre gostei de fi car por dentro das coisas, saber de tudo o que acon-tece, como acontece e por que acontece.

Assim que recebi minha carta de alforria do Exército, meu amigo Netinho informou que precisavam de uma pessoa no supermercado em que ele trabalhava. Neguei na hora. Não fazia sentido eu sair da Petrobras Distribui-dora e entrar no supermercado Alto da Posse, um super-mercado de que até então nunca tinha ouvido falar. Porém a necessidade falou mais alto, e eu aceitei. Comecei a trabalhar no mercado no dia 25 de novembro de 1997. Lembro que pensei em fi car somente uns três meses, até eu me estabilizar, por isso aceitei qualquer setor, e caí no de contas a pagar. Meu sonho sempre foi a área de informática e eu havia prometido para mim mesmo que só trabalharia se fosse nesta área, jamais aceitaria outra proposta. Na verdade, eu queria adquirir experiên-cia na carteira e depois voltar para a universidade.

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Quando me dei conta já estava há um ano no supermer-cado, não era mais tão ligado aos camaradas do meu bairro e fi cava muito na casa do meu irmão, que nessa época morava na Abolição, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. Foi nesse ano que conheci minha primeira namorada, a Shirley, com quem namorei sete meses, o namoro mais longo da minha vida até eu conhecer a Fer-nanda Rocha, minha atual namorada, com quem estou há mais de dois anos.

Nesta época eu só ouvia rap, já tinha muitas fi tas cas-sete, então eu e meu irmão, o Luciano Gomes, conhe-cemos o Arariboia, um camarada que sabia tudo de rap, pelo menos bem mais do que a gente. Depois de algumas conversas surgiu o Humildes Pensativos, nosso primeiro grupo de rap. Escrevi muitas letras nessa época, inclu-sive a música “Sacolinha”, que gravei no meu primeiro disco solo, “Rolo compressor”, dez anos depois.

O Humildes Pensativos nunca saiu do papel, simples-mente pelo fato de eu não conseguir cantar em público e o meu irmão não conseguir cantar no ritmo. O Arariboia foi preso pouco tempo depois da criação do grupo, o que desandou tudo de vez. Terminei o namoro com a Shirley, me afastei da Abolição e voltei para Morro Agudo. Em 1998, já estava muito envolvido com o rap. Escre-via muitas letras, tinha ido algumas vezes ao show do Racionais MCs (grupo de maior projeção no hip-hop bra-sileiro, chegaram a vender mais de um milhão de cópias do disco “Sobrevivendo no Inferno”), e também conhe-cia a música de alguns grupos de rap que não eram tão populares no meio do hip-hop. Sentia a necessidade de aprender mais sobre essa cultura.

Algum tempo depois passei um mês em Barra do Piraí, cidade do interior do Rio de Janeiro, porque minha namorada estava grávida. Lá os dias pareciam mais

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longos, eu tive tempo de refl etir sobre a minha vida e o que aconteceria dali para frente. A minha responsa-bilidade aumentaria, e muito, com a chegada da minha primeira fi lha, a Bia.

Lembro que meu cunhado também gostava muito de rap. A gente fi cou amigo logo na primeira conversa, ele é um cara gente boa, molecão, leva a vida “na vaselina”. Ele disse que me apresentaria a um outro camarada que também gostava muito de rap, e que inclusive tinha um grupo chamado 2ª Via, o Wilson Neném, um cara negro, magro, que usava dreadlocks e que media mais ou menos 1,75m.

Conheci o Neném, como o chamam em Barra do Piraí, numa manhã ensolarada. Ele nos atendeu com cara de quem tinha acabado de acordar. Nesta época ainda não existia o Dudu de Morro Agudo, eu era o Flávio Eduardo ou o Cabeça, apelido que me colocaram na infância. O Neném tinha uma visão ideológica, fi losofava o tempo inteiro, às vezes muito sonhador, mas eu precisava dessa carga de positividade para ter a ideia de criar o que mais pra frente seria o Movimento Enraizados. Eu já estava de saco cheio de fi car em Barra do Piraí, não tinha o que fazer na cidade. Passava um tempo na casa do Neném conversando sobre rap, ele me mostrando CDs de rap gringo. Lembro que ele me deu um disco do grupo Fugges, e a partir daí eu virei fã da Lauryn Hill. Ele também gostava muito de Thaíde e DJ Hum. Até hoje aprendo muito com ele, nos damos superbem, apesar de nossas personalidades serem bem diferentes.

Alguns dias depois o Neném me apresentou o Juninho, que também tinha dreadlocks. Eles pareciam artistas concei-tuados, falavam bem e conheciam muito de música, os dois já eram integrantes de bandas, o Neném como DJ e o Juninho cantando. Eu me sentia feliz em estar com esses

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novos amigos, então os convidei para o aniversário da minha namorada. Ela, por sua vez, convidou seus amigos e amigas, mas a galera do rap fi cava no lado B (entre eles) da festa, bebendo cerveja e fazendo rimas.

Nesse dia, talvez por causa do álcool, eu improvisei muito bem, e improvisar nunca foi meu forte, minha parada era escrever letras de rap. Mas nesse dia o Neném se conven-ceu de que eu era um bom rimador, e, por causa da minha performance, ele me convidou para integrar o grupo de rap 2ª Via. Quando o convite aconteceu, dentro de um ôni-bus que seguia do bairro de Vila Helena para o centro de Barra do Piraí, eu não acreditei, principalmente porque o Neném me disse que tinha uns contatos na Sony e estava quase tudo certo para gravarmos um disco.

Estava cada vez mais eufórico com o rap e o hip-hop, sons que eu começava a entender o fundamento. Andando pelas ruas do centro de Barra do Piraí passei por uma banca de jornal e comprei uma revista de hip-hop cha-mada “Som na Caixa”. Comprei também canetas, lápis, borracha e um caderno pra escrever letras de rap, por-que a inspiração vinha a toda hora. Quando cheguei em casa comecei a folhear a revista e vi algo interessante: o CD que vinha junto, além dos endereços de militantes do hip-hop. Eu pensei em escrever para todos aqueles endereços, mas não sabia o que dizer.

Talvez dizer que eu era um cara gente boa, morador de Morro Agudo, no Rio de Janeiro, e que não entendia de rap, mas que gostaria de receber alguns materiais para estudar sobre essa cultura. Isso seria o mais correto, mas achei que as pessoas não dariam atenção a um cara tão sem história dentro do hip-hop como eu. Então decidi escrever outra história, contando que fazia parte de uma organização de hip-hop. Eu precisava arrumar rápido um nome para a tal organização que estava aca-bando de criar.

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Pesquisando na internet encontrei uma frase do Tupac: “Quanto mais escura é a pele, mais profundas são as raí-zes.” Achei a frase muito boa, forte. Lembrei também do Juninho, que sempre falava a palavra enraizado. Era uma espécie de gíria que somente ele usava, não sei bem se isso vem do reggae, mas ele falava essa frase com fre-quência. Eu não tinha mais dúvidas. Fazia parte do Movi-mento Enraizados, uma organização com o objetivo de interligar pessoas que praticam hip-hop em todo o Brasil. Lembro que enviei apenas três cartas, uma para o Dime-nor (Rodrigo de Oliveira), de São Paulo, outra para o Cas-siano Pedra, de João Pessoa, na Paraíba, e por último para o Gil BV, de Teresina, no Piauí. Recebi o retorno do Dimenor e do Cassiano Pedra, que me informaram que enviaram meu endereço para alguns militantes de outros estados do Brasil, e que também gostariam de fazer parte do Movimento Enraizados.

Os dois foram os primeiros integrantes da organização que acabava de nascer.

Quando recebi as duas primeiras cartas senti uma feli-cidade impossível de descrever. Foi algo que nunca mais senti na vida. Ser valorizado por um trabalho não tem a ver com ego, mas com autoestima. Passaram-se alguns dias e chegaram dezenas de cartas na minha casa. Eu tentava responder a todas, mas com a falta de tempo era inviável retribuir a enorme quantidade de cartas que chegavam. O custo dos correios estava fi cando alto e minha mãe começava a fi car preocupada porque eu não saía mais de casa. Era o tempo todo dedicado ao Movi-mento Enraizados, lendo e respondendo cartas.

As histórias que os militantes relatavam eram impres-sionantes, as pessoas queriam falar, se mostrar para mundo, mostrar o seu mundo, suas músicas, suas ideias e pinturas, mas não havia um canal para escoar toda

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essa arte, essa gana de comunicação. A propagação de endereços, poesias e desenhos foi devida aos fanzi-nes, que eram febre na época. Existiam diversos títulos, em toda carta que eu recebia via um fanzine, às vezes o mesmo em cartas diferentes.

Fanzine é uma abreviação de fanatic magazine, mais pro-priamente da aglutinação da última sílaba da palavra magazine (revista) com a sílaba inicial de fanatic. Trata-se de uma publicação despretensiosa. Engloba todo o tipo de temas, com especial incidência em histórias em quadrinhos, fi cção científi ca, poesia, música, femi-nismo, em padrões experimentais. No Brasil o termo fanzine é genérico para toda produção independente. Houve uma distinção entre fanzines (feitos por fãs) e produção independente (produção artística inédita), mas a disseminação do termo fanzine fez com que toda a produção independente no Brasil, antes denominada boletim, fosse denominada fanzine.

Fonte: Wikipedia (http://pt.wikipedia.org/wiki/fanzine) Atualmente vários estudos tentam conceituar o Movi-mento Enraizados, e pode ser que estejam certos por alguns momentos, mas somos um organismo vivo, mutante, assim qualquer defi nição expira rapidamente.

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Portal Enraizados

Muita gente pequena Em muitos lugares pequenos Fazendo coisas pequenas Mudará a face da Terra

— Provérbio Africano

Impulsionado por minha difi culdade fi nanceira, resolvi criar uma maneira que evitasse as cartas, foi assim que surgiu a ideia de fazer a versão 1.0 do Portal Enraizados. Por meio das cartas e dos fanzines percebi que meus novos correspondentes tinham necessidade de se comu-nicar e mostrar sua arte para o mundo. Decidi usar minha experiência com programação para criar uma ferramenta que possibilitasse publicar textos, pinturas e músicas dos novos membros do Movimento Enraizados. A ferra-menta ideal seria um site, mas havia um grave problema: eu era formado em uma linguagem de programação que não dava suporte à internet. Teoricamente eu não con-seguiria fazer um site. Além disso, a internet não era tão popular em meados de 1999, quando surgiu esta ideia, e talvez o site não tivesse a utilidade que eu esperava. Mesmo com todos os contras, fazer o site era a única solução prática que estava ao alcance naquele momento. Eu já tinha um computador e minha avó havia com-prado uma linha telefônica com uma extensão até o meu quarto. A questão da internet estava resolvida, mesmo

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sendo uma internet que quando estava veloz chegava a no máximo 46kbps. Coloquei a mão na massa, baixei apostilas da internet e comecei a estudar HTML para poder construir o site. Aprendi também a editar imagens para produzir algumas coisas gráfi cas, como por exem-plo, o logotipo do Movimento Enraizados.

Aliás, fazer o logotipo foi uma força-tarefa. Começou com uma vaga ideia que eu tive do que seria o símbolo que representaria a organização. Pedi, então, ajuda para um amigo que trabalhava na mesma empresa que eu, no departamento pessoal, o Luiz Antônio, um cama-rada que com o passar do tempo se tornou um verda-deiro irmão. Todos os dias a gente parava num bar pra beber umas cervejas e eu fi cava o tempo inteiro falando de Movimento Enraizados e hip-hop. Ele, que curtia mais rock, de tanto fi car ouvindo minhas histórias aca-bou gostando de rap. O Luiz arrumou o desenho que eu comecei a fazer, mas ainda estava muito ruim, longe de ser um logotipo decente.

Então liguei para o Neném e pedi ajuda. O Neném, além de rapper, grafi teiro, b. boy e DJ, é ainda um dos melho-res desenhistas que eu conheço. Inclusive foi ele quem me ensinou os primeiros passos no Corel Draw e no Pho-toshop. Já desenhou para marcas como a Redley, a Qix e a Oceano, e hoje ele tem sua própria marca de roupas, a Jah Bless. Ele topou fazer o logo, então enviei pelo cor-reio o esboço que eu e o Luiz criamos.

Hoje a gente manda tudo por e-mail e usa algum ser-vidor para baixar depois, mas antigamente era mais difícil. A saída era recorrer aos correios e esperar um tempo até a pessoa receber, fazer o trabalho e enviar de volta. Uma semana depois fi cou pronto o logotipo que fi cou famoso no Brasil inteiro, totalmente diferente do esboço que enviamos.

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70 Enraizados: os híbridos glocais

Assim como surgiram conceitos a respeito do nome Enraizados e da forma de trabalho da organização, não foi diferente com o logotipo. Ele tem alma e concei-tos próprios, não é apenas um desenho, representa as etnias, o modo como trabalhamos nas comunidades: não vejo, não escuto e não falo. Teoricamente.

Em menos de um mês eu já sabia bastante de HTML, e coloquei o primeiro site do Movimento Enraizados no ar, com hospedagem e endereço gratuitos. (www.enraiza-dos.cjb.net). Enviei cartas para todos que se correspon-deram comigo e pedi que passassem o endereço do site para outras pessoas, e que também me enviassem tex-tos por meio de cartas ou e-mail para que eu pudesse publicar no site. Como não havia tanta gente com acesso a internet, as cartas continuaram a chegar aos montes, mas eu tinha a vantagem de não ter obrigação de res-ponder a todas, somente publicar no site.

O Portal Enraizados foi o primeiro projeto do Movimento Enraizados e está no ar até hoje, no endereço www. enraizados.com.br. Ficava feliz quando comparava as estatísticas iniciais do site, em que havia somente 30 acessos por mês, com as dos meses posteriores, e a cada novo acesso eu vibrava e tentava descobrir quem era. Percebia que a organização dava certo, que as pes-soas estavam aderindo e que realmente o Movimento Enraizados se tornava aquilo que eu havia profetizado nas primeiras cartas.

Trabalhar para o desenvolvimento do Movimento Enrai-zados era parte da minha rotina, e a cada dia eu induzia mais pessoas a fazer o mesmo. Meus amigos contribu-íam com a organização sem saber ao certo o que era. Alguns achavam que era um hobby, e que mais cedo ou mais tarde eu desistiria da brincadeira.

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Iniciando projetos

Se não puder voar, corra. Se não puder correr, ande. Se não puder andar, rasteje,

mas continue em frente de qualquer jeito.

— Martin Luther King

O Movimento Enraizados se comunicava com São Paulo, Paraíba e Mato Grosso do Sul. No Rio de Janeiro os locais de maior engajamento eram Nova Iguaçu e Barra do Piraí. Cada vez mais pessoas entravam em contato, enviavam músicas e fotografi as. As perguntas sobre os projetos que o Movimento Enraizados realizava no Rio de Janeiro eram frequentes nas cartas, assim como os pedidos para que eu enviasse minhas músicas e as músicas dos outros integrantes.

Como o grupo de rap 2ª Via não saía das conversas de fi m de semana que aconteciam na casa do Neném, eu decidi gravar meu primeiro rap sozinho. Havia um programa de computador chamado Hip-hop eJay que servia para fazer bases instrumentais de hip-hop. Fiz algumas para gravar uns raps que havia escrito, mas não conhecia um estúdio, e isso era um problema. Trabalhava comigo no supermercado Alto da Posse um senhor evangélico chamado Edson, que era evolvido com música. Ele tinha muitas composições e estava come-çando a gravar um disco. Perguntei se ele conhecia algum

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estúdio onde eu pudesse gravar meus raps, e ele me indi-cou um em Campo Grande, bairro que fi ca a quilômetros de distância de onde eu moro, Nova Iguaçu. Mas aceitei ir nesse estúdio, até porque eu não conhecia outro.

O senhor Edson se encarregou de marcar a hora para mim no estúdio, me disse o preço, eu juntei o dinheiro e fui com minhas letras debaixo do braço. Quando estava chegando, lembrei que uma das músicas era cheia de palavrões e se o dono do estúdio fosse evangélico poderia haver um constrangimento de ambas as partes, mas graças a Deus não foi o que aconteceu. O cara era super gente boa e até gostou das minhas músicas, que eram quilométricas. Tinha uma com quase dez minutos, seguia o padrão dos raps da época. As músicas que gravei naquela ocasião foram: “Dudu”, “Negra difícil” e “Por quê?”.

Gravei as três músicas em duas horas, pois não tinha dinheiro para fi car mais tempo no estúdio, e nem expe-riência para saber se aquilo estava certo ou errado. Eu queria pegar a fi ta K7 gravada com minhas três músicas, colocar no walkman e ir para casa ouvindo-as repetida-mente nas quase duas horas de viagem de volta. Quando cheguei em casa coloquei o som para minha família ouvir. Era tudo muito diferente para eles, ninguém sabia ao certo o que falar. Na música “Dudu” eu cantava em primeira pessoa. Era um bandido que no fi nal da música morria por causa das drogas, do crime na sua comuni-dade e da traição de um amigo. Hoje, quando paro pra refl etir, percebo que essa letra era o refl exo da minha infância. Essa música pode ser ouvida em sua versão original no site da gravadora Trama (http://tramavirtual. uol.com.br/dudu_de_morro_agudo).

Rapidamente eu dei um jeito de copiar algumas fi tas e distribuir entre os amigos, principalmente os que tra-balhavam comigo e não acreditavam que era eu mesmo

Referências

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