• Nenhum resultado encontrado

Iniciando projetos

No documento Enraizados: os híbridos glocais (páginas 72-80)

Se não puder voar, corra. Se não puder correr, ande. Se não puder andar, rasteje,

mas continue em frente de qualquer jeito.

— Martin Luther King

O Movimento Enraizados se comunicava com São Paulo, Paraíba e Mato Grosso do Sul. No Rio de Janeiro os locais de maior engajamento eram Nova Iguaçu e Barra do Piraí. Cada vez mais pessoas entravam em contato, enviavam músicas e fotografi as. As perguntas sobre os projetos que o Movimento Enraizados realizava no Rio de Janeiro eram frequentes nas cartas, assim como os pedidos para que eu enviasse minhas músicas e as músicas dos outros integrantes.

Como o grupo de rap 2ª Via não saía das conversas de fi m de semana que aconteciam na casa do Neném, eu decidi gravar meu primeiro rap sozinho. Havia um programa de computador chamado Hip-hop eJay que servia para fazer bases instrumentais de hip-hop. Fiz algumas para gravar uns raps que havia escrito, mas não conhecia um estúdio, e isso era um problema. Trabalhava comigo no supermercado Alto da Posse um senhor evangélico chamado Edson, que era evolvido com música. Ele tinha muitas composições e estava come- çando a gravar um disco. Perguntei se ele conhecia algum

73 Enraizados: como começou?

estúdio onde eu pudesse gravar meus raps, e ele me indi- cou um em Campo Grande, bairro que fi ca a quilômetros de distância de onde eu moro, Nova Iguaçu. Mas aceitei ir nesse estúdio, até porque eu não conhecia outro.

O senhor Edson se encarregou de marcar a hora para mim no estúdio, me disse o preço, eu juntei o dinheiro e fui com minhas letras debaixo do braço. Quando estava chegando, lembrei que uma das músicas era cheia de palavrões e se o dono do estúdio fosse evangélico poderia haver um constrangimento de ambas as partes, mas graças a Deus não foi o que aconteceu. O cara era super gente boa e até gostou das minhas músicas, que eram quilométricas. Tinha uma com quase dez minutos, seguia o padrão dos raps da época. As músicas que gravei naquela ocasião foram: “Dudu”, “Negra difícil” e “Por quê?”.

Gravei as três músicas em duas horas, pois não tinha dinheiro para fi car mais tempo no estúdio, e nem expe- riência para saber se aquilo estava certo ou errado. Eu queria pegar a fi ta K7 gravada com minhas três músicas, colocar no walkman e ir para casa ouvindo-as repetida- mente nas quase duas horas de viagem de volta. Quando cheguei em casa coloquei o som para minha família ouvir. Era tudo muito diferente para eles, ninguém sabia ao certo o que falar. Na música “Dudu” eu cantava em primeira pessoa. Era um bandido que no fi nal da música morria por causa das drogas, do crime na sua comuni- dade e da traição de um amigo. Hoje, quando paro pra refl etir, percebo que essa letra era o refl exo da minha infância. Essa música pode ser ouvida em sua versão original no site da gravadora Trama (http://tramavirtual. uol.com.br/dudu_de_morro_agudo).

Rapidamente eu dei um jeito de copiar algumas fi tas e distribuir entre os amigos, principalmente os que tra- balhavam comigo e não acreditavam que era eu mesmo

74 Enraizados: os híbridos glocais

quem estava cantando. Cada vez mais empolgado com as músicas, decidi enviar algumas fi tas para rappers de outros estados, e estes, por sua vez, me enviavam as suas para que eu e todos do Enraizados ouvíssemos.

Alguns meses depois fui a Barra do Piraí e contei para o Neném que o Movimento Enraizados estava crescendo, e que já existiam algumas pessoas de outros estados fazendo parte dele. Neném não entendia como isso tudo estava acontecendo tão rápido, mas mesmo assim fi cou orgulhoso. Mostrei, então, as músicas que havia gra- vado. Eu sabia que nosso estilo de cantar rap era dife- rente, mas mesmo assim senti que ele se surpreendeu com o que eu havia feito em tão pouco tempo. Naquele momento devolvi a carga de positividade que ele me deu quando o conheci. Toda vez que ele criava algo e me mostrava, parecia que eu tomava uma injeção de ânimo e começava a criar também, até mesmo para além da música. Eu estudava para aperfeiçoar o site, por exem- plo, entre outras atividades.

Em nossa primeira conversa institucional gravamos raps num estúdio em Barra do Piraí, muito mais bonito e equi- pado do que aquele em Campo Grande, onde eu havia gra- vado as primeiras músicas. Gravei com o Juninho um rap chamado “O ponto”. O Neném também utilizou o programa Hip-hop eJay para produzir as bases instrumentais. Esse era o único que a gente conhecia e sabia manusear. Quando voltei para Nova Iguaçu enviei as minhas músicas e as do Neném para a galera dos outros estados. Nessa época não dava para colocar as músicas no site porque nas hospedagens gratuitas não havia espaço sufi ciente. Muita gente gostou das nossas músicas. Eu me empol- guei e divulguei que o Movimento Enraizados planejava fazer uma coletânea nacional de rap, e que os interessa- dos deveriam enviar suas músicas por correio ou e-mail.

75 Enraizados: como começou?

A notícia se alastrou como um rastro de pólvora. Fanzi- nes e rádios comunitárias divulgavam a coletânea, e eu fuzilava e-mails pelo site. Essa foi a primeira vez que o coletivo, pessoas com que eu nunca havia conversado pessoalmente, trabalhava a comunicação alternativa – fanzines, rádios comunitárias e internet – para propa- gar um projeto do Movimento Enraizados. Quase o Bra- sil inteiro sabia da coletânea que faríamos, menos o Rio de Janeiro, por isso decidi procurar alguns grupos de rap da minha cidade.

Lembrei que quando vinha de ônibus do centro de Nova Iguaçu para Morro Agudo, via a movimentação de uma galera que aparentemente era do hip-hop num lugar chamado MAB (Federação das Associações de Bairro de Nova Iguaçu). Um dia, quando saímos do trabalho, por volta das 18h, chamei o Netinho para me acompanhar até o local e verifi car se aquelas pessoas eram mesmo do hip-hop, e se eles queriam participar da coletânea. O Neto já estava totalmente envolvido no processo, parti- cipando lado a lado.

Chegando lá falei com um rapaz que estava em um quarto mexendo na aparelhagem de som. Conversamos através da grade da janela. Ele estava muito tenso porque dias antes roubaram todo o equipamento de sua organização, a M2HBF (Movimento Hip-Hop da Baixada Fluminense). Apresentei-me como Dudu e disse que fazia parte do Movimento Enraizados, uma organização de hip-hop de Morro Agudo. Para minha surpresa ele fi cou nervoso e disse que não existia organização de hip-hop em Morro Agudo, a única organização de hip-hop que existia na cidade de Nova Iguaçu era a dele, a M2HBF.

Mesmo o achando estúpido e mal-educado, tive que con- cordar com o fato. O Movimento Enraizados era uma orga- nização mais virtual do que presencial, e até então eu não

76 Enraizados: os híbridos glocais

conhecia qualquer integrante do hip-hop em Nova Iguaçu. Aquele era o meu primeiro contato, e não estava sendo muito bom. Todos os integrantes do Enraizados eram de fora do estado do Rio de Janeiro, em Nova Iguaçu a minha rapaziada nem sabia o que era hip-hop.

O rapaz se apresentou como B. Boy Gero, nos mostrou as instalações do MAB e disse que fazia eventos ali den- tro, mas não tinha dinheiro nem para comprar papel higi- ênico. Sugeri fazer alguns eventos de hip-hop e cobrar o valor simbólico de R$1,00 de entrada, somente para comprar os produtos de limpeza, que eram uma neces- sidade. Na época eu procurava eventos de hip-hop como um louco, e se eu pudesse curtir um na cidade certa- mente pagaria R$1,00. Outras pessoas também, só era necessário encontrá-las.

Ele discordou fi rmemente de mim e disse que não cobra- ria evento ali de maneira alguma. Realmente o hip-hop tinha dessas coisas, e acho que ainda tem. Você investe do seu bolso, não tem retorno e acha normal. Eu mesmo fi z isso várias vezes, a diferença é que não reclamava. Durante a conversa o B. Boy Gero me apresentou outro camarada que também era MC, a quem tempos depois eu seria apresentado novamente, o SDL, que hoje atende pelo pseudônimo Átomo. Ele era integrante do grupo Ultimato à Salvação, hoje apenas U-SAL, junto com sua esposa, Lisa Castro.

Eu e B. Boy Gero não chegamos a um acordo. Já na pri- meira conversa pude perceber que a gente não tinha muito em comum. Continuei, assim, minha procura por outros grupos de rap da cidade. Apesar de respeitar o trabalho e a história dele dentro do hip-hop na Baixada Fluminense, essa foi a primeira e a última vez que a gente conversou por mais de dez minutos.

77 Enraizados: como começou?

Recebi cartas de muitas pessoas que queriam partici- par do CD. Naquela época era muito difícil gravar, mas mesmo assim chegaram músicas de oito grupos de rap, de seis estados diferentes (PB, SP, MS, TO, RJ e SC). No começo de 2001 instalei um gravador de CD no computa- dor para gravar a coletânea. Comprei os CDs virgens, fi z a arte-fi nal das capas e comecei o processo de gravação dos CDs. Eu não tinha conhecimento de mixagem e mas- terização. Do jeito que as músicas chegavam à minha mão elas entravam no CD.

A coletânea tinha três objetivos:

1) Divulgar os grupos de rap. Numa coletânea de oito gru- pos de rap, se um divulgasse o CD na sua cidade, divulgaria a música dos outros sete grupos em lugares a que eles, teoricamente, não teriam acesso. Era um trabalho para ser executado coletivamente, pois quanto mais empenho houvesse mais retorno de divulgação nós teríamos. 2) Gerar renda. O projeto do CD era livre, desde que man- tivesse sua forma original, isto é, as músicas na ordem e a capa. Cada grupo, ou qualquer pessoa, poderia vender o CD para gerar renda e, voltando ao objetivo número um, divulgar ainda mais os grupos. Quanto mais gente envolvida no processo de venda, mais longe as músicas chegariam.

3) Propagar as ideias do Movimento Enraizados. Como a ideia inicial do Movimento Enraizados era fazer as pes- soas interagirem, esse projeto cairia como uma luva. Dezenas ou centenas de pessoas de várias cidades do Brasil, trabalhando coletivamente por um objetivo, sem gastar grana. Pelo contrário, ganhando grana.

Eu gravava dez CDs por dia e enviava para um dos grupos participantes. Esse, por sua vez, deveria vender os CDs, fazer mais cópias no seu estado e divulgar os outros gru- pos. Era esse o combinado. O valor dos CDs fi cou muito

78 Enraizados: os híbridos glocais

alto para eu bancar sozinho. Para cortar custos parei de fazer as capas na gráfi ca. A ideia era fazer fotocópias em preto e branco, mas chegou num ponto que até a cópia saía caro. Para piorar ainda mais a situação o meu gravador de CD queimou com um mês de uso.

Apesar de não haver mais como levar o projeto adiante, a coletânea dava o que falar pelo Brasil afora, as pessoas comentavam que essa era a primeira coletânea nacio- nal de rap. Para o projeto não parar, pedi ajuda aos meus amigos de trabalho, do supermercado Alto da Posse, para produzir mais CDs a um custo mínimo.

Na verdade eu só comprava os CDs e tirava cópia das capas na empresa. A gente fazia uma verdadeira opera- ção. Havia apenas uma máquina copiadora no escritório para todos os funcionários usarem. A galera se organi- zava e cada um tirava dez cópias, para eu não ter pro- blemas depois. Eram uns cinco caras envolvidos no pro- cesso para a coletânea continuar sendo reproduzida. Na empresa também havia um gravador de CD, que fi cava no servidor. O programador da empresa, responsável pelo servidor, é até hoje meu camarada, Luciano Lyrio. Ele gravava todos os meus CDs na hora do expediente, o que muitas vezes causava lentidão nos terminais. Os funcionários pediam que fosse reiniciado o servidor pelo menos umas 30 vezes por dia, mas ele só reiniciava quando acabava de fazer as cópias. Às vezes os funcio- nários tinham que esperar vinte minutos até acabar de gravar um único CD, só depois eles podiam trabalhar. Creio que o maior presente que eu ganhei com esse pro- jeto foi presenciar a coletânea sendo negociada durante o Fórum Social Mundial de 2005, em Porto Alegre. Essa coletânea verdadeiramente cumpriu seu papel. Nos anos seguintes lançamos mais duas coletâneas que fi zeram

79 Enraizados: como começou?

muito sucesso. A “Dudu de Morro Agudo apresenta: A Banca”, também nacional, e a “Raiz do hip-hop”, ape- nas com grupos de Morro Agudo. As coletâneas foram se transformando em marca registrada do Movimento Enrai- zados, e por meio delas o nome da organização começou a ser citado com frequência nas periferias do Brasil.

80

Enlaçado pelo

No documento Enraizados: os híbridos glocais (páginas 72-80)