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Enlaçado pelo Enraizados

No documento Enraizados: os híbridos glocais (páginas 80-86)

Temos de aprender a viver todos como irmãos ou morreremos todos como loucos.

— Martin Luther King

A cada dia que passava o Portal Enraizados se fi rmava como ponto de encontro virtual dos praticantes do hip- hop no Brasil e um efi caz veículo de comunicação. Nesta época, começo de 2001, grande parte dos artistas, mili- tantes e produtores culturais que praticavam o hip-hop faziam seus projetos – CDs, eventos e palestras – com o dinheiro do próprio bolso, isto é, do trabalho formal. E isso não era um investimento, não havia um retorno fi nanceiro, o dinheiro era perdido em sua totalidade pelo simples prazer de exercitar o hip-hop.

Com a repercussão da coletânea, muitos convites para participar de eventos começaram a aparecer no Rio de Janeiro. Lembro que foi nessa época que conheci a Veri- diana Serpa, da Firma Produções. Ela fazia uns even- tos no Rio de Janeiro, na Lapa, e também tinha um site (http://fi rmaproducoes.com) que divulgava seus traba- lhos. Ela me ligou um dia e disse:

— Alô, posso falar com o Dudu? — É ele quem está falando.

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vamos fazer um evento na Lapa neste fi m de semana e queria saber que se você topa tocar lá.

— É evento de quê? De rap? — É, de rap. Um evento benefi cente.

— Tranquilo, vou ver aqui na agenda e depois te ligo. Qual o seu número?

Eu fi quei apavorado, tinha subido no palco apenas uma vez e estava com o Wilson Neném, em Barra do Piraí. Agora era diferente, eu tinha que fazer um som sozinho, na Lapa. Estava realmente entrando para o cenário. Dias antes do telefonema da Veridiana, eu havia rece- bido um e-mail de dois caras, Max e Zulu, que trabalha- vam no Rio de Janeiro e curtiam hip-hop. Por alguma obra do destino eles encontraram o site do Movimento Enraizados e enviaram um e-mail querendo trocar algu- mas ideias.

Liguei para Veridiana confi rmando minha presença e logo depois pros caras, convidando-os para ir ao meu show. No dia marcado eu estava lá, com o CD de base e dois amigos da minha comunidade. E muito medo de cantar. Eu fi cava me perguntando: O que eu tô fazendo aqui? Meu telefone tocou, era o Max perguntando onde eu estava. Falei que estava dentro da Fundição Progresso, e então ele conse- guiu me encontrar. Estava ele, a noiva e o Zulu. Uma chuva inacreditável caiu, era muita chuva, e o evento começou a esvaziar. Encontrei a Veridiana, que me apresentou seu irmão, Jimmy Luv, que disse gostar do som que eu fazia. Foi o primeiro cara desconhecido a elogiar meu trabalho, o que me deu forças para continuar.

A rede do Enraizados começava a crescer no Rio de Janeiro, já havia Wilson Neném, Max, Zulu, Veridiana, Jimmy Luv, e logo depois foram chegando mais pes- soas. Todo o trabalho de programação e gerência de conteú do do Portal Enraizados era feito na minha casa

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e no meu trabalho, assim como as ligações. Por causa da repercussão do Portal Enraizados, muitas pessoas de fora do estado começavam a se comunicar. No Rio de Janeiro essa prática começou por causa do evento Mil- leniun Rap, que aconteceria no Anhembi, em São Paulo, e estava sendo divulgado no Portal.

Eu queria muito ir ao evento, mas não tinha dinheiro. Todo o meu salário estava comprometido com as dívidas de casa. Não tinha esperança de que algo sobrenatural pudesse acontecer naquela altura do campeonato, mas aconteceu. O Max me ligou:

— E aê, Dudu, você vai no Millenium Rap em São Paulo? — Não mano, não vou. Tô com uns compromissos aê. — Ah mano, eu e o Zulu vamos, nós vamos de carro e se você quiser pode ir junto com a gente.

— Tudo bem, se rolar de eu ir te ligo ainda hoje. Mas caso eu vá, tem vaga para mais um amigo no carro? — Claro que tem, pode chamar mais um irmão que tem vaga.

— Então tá tranquilo, vou levantar uma grana aqui porque tô meio quebrado.

— Nem esquenta a cabeça Dudu, tu tá comigo, eu banco a tua parte.

— Então já é, fi rmou bonde!

Liguei para o Neném e perguntei se ele gostaria de curtir um evento em São Paulo, expliquei que iríamos de carro com dois camaradas meus, e tudo era de graça. Mas não falei que conheci os caras pela internet. O Neném concor- dou na hora e então marcamos o encontro na via Dutra, num posto de gasolina próximo de casa. Fomos todos para São Paulo, conversando, cantando e fortalecendo, mesmo que inconscientemente, o Movimento Enraiza- dos. Nos meses que se seguiram mais pessoas se apro- ximaram do Movimento Enraizados. Eu lidava com isso de forma natural, apresentava uns aos outros. Não tinha

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muito a noção do que estava acontecendo, mas gostava de estar com meus novos amigos, de apresentar pessoas quando eu identifi cava que tinham algo em comum. Comecei a me surpreender quando passei a receber liga- ções de outros estados me informando que pessoas do hip-hop estavam chegando ao Rio de Janeiro e se era pos- sível eu dar um suporte, uma atenção para não deixar os caras se envolverem com o crime ou algo parecido. Não conseguia ver perigo na rapaziada do hip-hop, sempre que alguém me procurava pedindo ajuda eu colocava den- tro de casa, mesmo quando eram desconhecidos. Essa é uma característica do hip-hop. Muitas vezes viajei pra São Paulo e o tratamento dos caras comigo foi o mesmo. No fi nal de 2001 o hip-hop começava a ser visto pelo poder público como uma ferramenta socioeducativa. Parcerias entre o governo e organizações não governa- mentais eram frequentes. Foi quando surgiu a parce- ria entre o AfroReggae, o Governo do Estado do Rio de Janeiro e a Unesco para ministrar ofi cinas de hip-hop em escolas estaduais situadas em áreas de risco, no estado do Rio de Janeiro. Recebi a proposta para ministrar uma oficina de rap em uma escola no bairro Bom Pastor, na cidade de Belford Roxo, no Rio de Janeiro. Belford Roxo já foi considerada uma das cida- des mais violentas do mundo.

Como eu não aprendi a cantar rap na escola, achava que seria inviável ter aulas de rap ou de qualquer outro ele- mento do hip-hop, e fui contrário a isso por muito tempo. Mas por fi m aceitei a proposta e fi quei alguns meses na escola. Foi quando conheci o DJ DMC, do grupo Baixada Brothers, o b. boy Luck, do grupo GBCR, e o grafi teiro Chico CH2, da Nação Crew. Assim como eu, todos eram ofi cineiros. Bom Pastor era um bairro muito violento, dominado pelo Comando Vermelho, mas dias antes de

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começarem as ofi cinas o morro foi tomado pelo Terceiro Comando. O local era um verdadeiro barril de pólvora. E eu estava lá, querendo fazer o meu papel de militante do hip-hop, mas minha ofi cina era muito vazia, a molecada queria mesmo era fazer aula de DJ, dançar e grafi tar. Certo dia chegaram dois caras, disseram que gosta- riam de fazer aula de rap e entraram para minha turma. Eles moravam em Brás de Pina, Alfi na e Tokaia. Na ver- dade, o Alfi na já era MC e queria conhecer mais pessoas que cantavam rap. Logo entrou pra família Enraizados. Outros Enraizados ministravam ofi cinas em escolas de São Gonçalo. Lembro que o b. boy Bolinho dava ofi cina de break. Anos depois estava participando de progra- mas de TV e viajando para países da Europa com uma companhia de dança.

As pessoas iam se conhecendo e se enlaçando como peças de um grande quebra-cabeças, que com o passar do tempo dava forma a uma linda paisagem chamada Movimento Enraizados.

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A imprensa nos

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