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A arte de criar o inimaginável

No documento Enraizados: os híbridos glocais (páginas 146-156)

Ainda não houve homem de gênio extraordinário sem algo de louco.

— Sêneca

Eu e o Dumontt começávamos a trocar ideia todos os dias da semana. O Dumontt representava intelectual- mente todas as atividades que o Movimento Enraizados executava. A cada dia ele me apresentava planos mira- bolantes para serem executados a longo prazo no Enrai- zados. Eram dezenas de ideias que talvez eu só fosse pensar uns trinta anos depois.

Aos poucos ele contava sua história de vida, e a gente começou a se identifi car. Ele cresceu gago, mas tão gago que não conseguia se comunicar. Sua infância foi dentro de casa, lendo centenas de livros e vendo TV. Destacava- se na escola, foi o primeiro da família a ingressar na uni- versidade. Antes de se formar já dava aulas de matemá- tica. Para conseguir uma bolsa na faculdade entrou para o grupo de teatro, e a partir daí sua vida mudou.

Logo depois entrou na Cia. Encena – companhia de tea- tro – e se descobriu ator. Conseguiu controlar aquilo que o perturbava desde pequeno: a gagueira. Iniciou a facul- dade de cinema. A Cia. Encena era um movimento cultu- ral, enquanto Dumontt queria institucionalizar tornando- a uma associação, outros integrantes preferiam montar

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uma produtora, o que motivou um racha. Quando a Asso- ciação Cia. Encena estava com os documentos em dia, era ele quem “carregava o piano”. Depois de grandes decep- ções e uma dívida de seis mil reais, a gente se conheceu. Eu estava diante de um gênio, não tinha dúvidas. Sempre o chamei de meu guru. Difi cilmente ele toma decisões de forma lógica, por mais que tudo indique que aquele não é o caminho, se ele achar que é, a gente vai conferir. Em uma de nossas conversas me contou que quando parti- cipou da reunião no Ciep sua vontade era ajudar aqueles garotos durante um tempo, e depois seguir seu caminho. Mas foi se envolvendo com o passar do tempo, e a cada minuto estava mais comprometido com o Enraizados, até que não conseguiu mais ir embora.

Eu e Dumontt nos reuníamos no bar Continental, sempre após os encontros do Movimento Enraizados na praça de Morro Agudo. Quando tínhamos dinheiro, o que não era comum, bebíamos umas cervejas enquanto pen- sávamos nas estratégias que usaríamos nos próximos meses. Em uma dessas conversas surgiu a ideia de mar- carmos a cidade com nosso logotipo. Resolvemos grafi - tar a cidade e depois fazer blusas do Movimento Enrai- zados para colocar na rua. Além de nos dar visibilidade geraria uma renda extra para a organização. Outra estra- tégia era continuar compartilhando poder com os garo- tos, sempre os enviando para participar das atividades para as quais nós do Enraizados éramos convidados. Ficamos uns três meses fazendo encontros na Praça de Morro Agudo, até que um dia uma senhora passou de carro, viu nossa situação, chamou o Dumontt e ofereceu a varanda da casa dela para nos reunirmos. Acho que ela fi cou com pena da gente ou achou perigoso fi carmos ali, e a partir de então passamos a nos reunir na casa dela. Seu nome é Rosinha, uma senhora muito boa, que nos ajuda bastante, e por isso foi apelidada de Mãe do Enraizados.

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O Dumontt conceituou e organizou o modo como tra- balharíamos, chamou de Rede Enraizados e defi niu como essa rede funcionaria dali pra frente. Foi quando Dumontt participou, em dezembro de 2005, da I Con- ferência Nacional de Cultura, em Brasília. Chegando lá conheceu pessoas de diversas instituições. Nós sabí- amos que trabalhávamos em rede, mas neste dia o Dumontt me ligou e disse:

— Filhote, estou aqui em Brasília com muitas institui- ções que trabalham com hip-hop e juventude. Posso convidar eles pra entrar na Rede Enraizados?

Eu sem saber muito bem do que ele estava falando, concordei:

— Pode sim, cara! Claro que pode.

Formava-se naquele momento a Rede Enraizados, com seis instituições. A partir de fevereiro de 2006 nos reu- níamos uma vez por semana, à noite, já que todo mundo trabalhava. A Rosinha não se importava com a nossa presença. A gente chegava e já ia sentando na varanda da casa dela, falando alto, mostrando as rimas e dando os informes. Nosso nome já era bastante comentado em Nova Iguaçu, tanto pelos grupos culturais como pelos políticos.

Ficamos sabendo que Nova Iguaçu sediaria o Fórum Mundial de Educação, no fi m do mês de março. O Dumontt sugeriu que nos inscrevêssemos em uma ativi- dade autogestionada. Ele articulou com a escola muni- cipal Ivonete dos Santos Alvez, e levamos cerca de 50 crianças, mais professores e diretores da escola. Dez Enraizados estavam empenhados, por meio do pro- jeto “A escola é mais hip-hop”, em mostrar ofi cinas, palestras, bate-papo e debates sobre quanto o hip-hop

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pode contribuir para a formação de cidadãos que respei- tam qualquer tipo de diversidade e, acima de tudo, como essa cultura já está integrada à educação.

Preparamos uma palestra em que eu contei a história do hip-hop mundial e nacional, o Dumontt falou sobre o Movimento Enraizados, o Léo da XIII, o Kall e o Átomo sobre o rap – a literatura da periferia –, e o Short falou sobre o grafi te. As crianças estavam quase dormindo e as diretoras começaram a reclamar. Explicamos que a palestra não era para as crianças, e sim para os adultos. A parte das crianças seria a próxima: o hip-hop na prática. Nossa intenção era levar o hip-hop para as escolas. Terí- amos primeiro que convencer os adultos, as diretoras, e depois as crianças. Quando começamos as atividades com as crianças, primeiro trabalhamos com a ofi cina de rap. Usamos uma metodologia simples. Fizemos um grande círculo em que todos podiam se ver. Os partici- pantes falavam frases e a gente ia escrevendo no qua- dro negro. Os rappers tinham a missão de fazer com que as frases rimassem. Construímos uma música coletiva, inclusive com direito a refrão, mas sempre com conexão lógica entre os fatos.

No fi nal, nós, rappers, selecionamos uma base instru- mental e começamos a musicar com a ajuda de todos os presentes. O ponto alto da ofi cina foi o ensaio, que durou mais de meia hora. Todos aprenderam a música em menos de dez minutos, mas gostaram tanto que não queriam parar de cantar:

A escola é mais hip-hop

A escola é mais hip-hop, pode crer Lá é o lugar aonde eu vou para aprender Inclusão social, pode crer

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Vou à escola para aprender, já sei ler e escrever Mas por causa da miséria também vou para comer E quando crescer quero ter uma profi ssão Para poder trabalhar e formar um novo cidadão Ser um escrivão para andar de carrão

Ter inteligência e ser mais um na inclusão E hoje tô no Fórum Mundial da Educação Usando o hip-hop para a transformação A escola é mais hip-hop, pode crer Lá é o lugar aonde eu vou para aprender Inclusão social, pode crer

A escola é o lugar aonde eu vou para aprender

Em seguida os b. boys ensinaram para as crianças alguns passos de break e evoluímos até chegar a uma coreografi a. Os adultos não resistiram e também entra- ram na dança. Pessoas de outras salas quiseram par- ticipar de nossas atividades, mas a sala de aula já não suportava tanta gente.

Com a missão cumprida, fomos comemorar. Quando abria a primeira cerveja em casa, o telefone do Dumontt tocou. Era o Paulô, um grande camarada nosso, que tra- balhava na articulação política da prefeitura de Nova Iguaçu, dizendo que por causa da repercussão da nossa atividade no Fórum o prefeito Lindberg Farias gostaria que fôssemos até o Sesc, onde acontecia uma palestra sobre segurança pública, e falássemos da nossa experi- ência com o projeto.

O Paulô pediu que um carro da prefeitura fosse nos buscar. Fui para o Sesc como estava vestido: uma ber- muda de basquete, a blusa Black Panters do Movimento Enraizados, calçando Havaianas. Alías, todos os Enrai- zados estavam com a blusa Black Panters. Causáva- mos espanto por onde passávamos. Vi ali a oportuni- dade de falar algumas verdades em público. Participar

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dessa palestra custava uma grana, e quem era professor pagava um pouco menos. Como eu não era professor e não tinha dinheiro, teria fatalmente que fi car de fora da discussão, mas minha oportunidade chegara e eu não poderia deixá-la passar entre meus dedos.

Esperamos o anúncio dos organizadores, que não sabiam a hora certa de nos deixar falar. Em uma mistura de pressa e nervosismo nos anunciaram antes da hora prevista. Então entramos, nove Enraizados uniformiza- dos, prontos para falar uma verdade que nem todos que- riam ouvir. Lembro que na plateia havia muitos profes- sores e que a maioria morava na cidade de Nova Iguaçu. Conviviam diariamente com problemáticas ligadas a todo o tipo de violência, dentro e fora da escola.

A primeira coisa que fi zemos quando pegamos o micro- fone foi desconstruir o que os palestrantes diziam. Eles não moravam em Nova Iguaçu, não caminharam pelas ruas violentas da cidade. Nenhum deles poderia falar com legitimidade como é viver em Nova Iguaçu. Passa- mos o discurso para as pessoas que estavam na pla- teia, aquele evento não deveria ser uma palestra em que cinco pessoas falam e 150 ouvem. Aquilo deveria ser uma troca, em que todos falavam e ouviam, todos aprendiam juntos e desse modo buscariam soluções efetivas para os problemas, uns com a experiência de vida e outros com o saber da academia.

Logo depois mostramos que as crianças entendiam o que é desigualdade social e recitamos a letra da música “A escola é mais hip-hop”. Todos fi caram perplexos quando dissemos que grande parte das frases foi feita por crian- ças entre 5 e 10 anos. Cantamos a música juntos, diver- sas vezes. A mesa foi esvaziando e ninguém mais quis falar. Depois disso foi só festa, todos os presentes que- riam saber mais sobre o Movimento Enraizados, de onde

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éramos e como poderíamos fazer uma parceria com as escolas. O prefeito Lindberg Farias veio nos agradecer e nos apresentou alguns políticos ligados à educação. Ficamos em evidência na cidade e fomos convidados a apresentar a música “A escola é mais hip-hop”, junto com os alunos do colégio Ivonete dos Santos Alves, durante a posse dos diretores das escolas municipais de Nova Iguaçu, que aconteceria no colégio Monteiro Lobato, no centro de Nova Iguaçu. O Dumontt ligou pra escola Ivonete dos Santos Alves e falou com as direto- ras, que permitiram a apresentação dos alunos no dia 30 de março. Um dia antes o Léo da XIII foi até a escola ensaiar com a criançada, todos estavam com a música na ponta da língua.

No dia da posse havia mais de 1.000 pessoas no colégio Monteiro Lobato, mas a quantidade de gente não aba- lou as crianças. Todos estavam eufóricos e cantavam a música o tempo inteiro. O Léo da XIII e o Faminto, res- ponsáveis pelas crianças naquele dia, envelheceram três anos em uma hora. A apresentação foi uma festa. A acústica do lugar era horrível e acho que ninguém enten- deu nada, mas era impossível passar despercebida a felicidade estampada no rosto de cada criança.

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Ousando em novos

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