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A experiência de mobilizar e entreter

No documento Enraizados: os híbridos glocais (páginas 102-116)

Os loucos abrem caminhos que logo serão seguidos pelos sábios.

— Carlo Dossi

O poder de mobilização do Movimento Enraizados era impressionante, as pessoas queriam estar conosco de alguma forma, e ainda hoje é assim. Nossas aparições em jornais e revistas eram cada vez mais frequentes. Gente de outros estados começava a militar pela orga- nização. O Dimenor sempre dava entrevistas falando do movimento. Muitos coletivos de hip-hop nasciam e desapareciam, e nós continuávamos nossa caminhada. Foi nessa época que o Pevirguladez começou a fazer o evento Ressaca Hip-Hop, em Duque de Caxias, e o legal é que ele está até hoje na pista fazendo seus eventos. Ele é professor, canta rap, e agora está envolvido em um espetáculo de teatro e rap. Sempre esteve ao lado do Movimento Enraizados. Quase tudo relacionado ao hip- hop no Rio de Janeiro tinha alguém do Enraizados envol- vido de alguma maneira.

O Léo da XIII me acompanhava em algumas apresenta- ções pelo Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo que ele pegava experiência como rapper, me auxiliava nos shows. Um dia ele questionou por que eu não fazia um evento de hip-hop

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em Morro Agudo. Eu disse que os eventos de hip-hop não costumavam encher, portanto era inviável a gente des- perdiçar energia numa atividade que não daria certo. No outro dia eu estava em casa fazendo um som e ele chegou:

— Dudu, posso te pedir um favor? — Claro que pode, fala, o que você quer?

— Eu tô querendo fazer uma festa de aniversário e convidar algumas pessoas do hip-hop, gostaria que me ajudasse a organizar isso.

— Tudo bem, vamos fazer. Só precisamos ver o local, o som e a comida.

A cada semana o Léo da XIII chegava com uma novi- dade e a festa de aniversário ia tomando uma proporção gigantesca. Sempre que ele chegava na minha casa o papo era esse:

— Dudu, o salão de festas que eu estava vendo não vai rolar mais, mas eu já falei com o Jack e ele liberou o espaço do bar para fazermos a festa.

— Tu não acha que essa festa tá fi cando grande demais? — Não, acho que vai dar tudo certo. Agora você precisa falar com o Luisinho da Cerâmica pra ver se ele arruma o som.

Luisinho da Cerâmica era um candidato a vereador da época. Ele ajudava a molecada a fazer umas ativida- des no bairro da Cerâmica, mas eu não gostava de pedir absolutamente nada a políticos. Só que a festa do mole- que estaria comprometida se não houvesse o som, então liguei para o tal Luisinho.

— Alô!!! Luisinho? — Sim, quem tá falando? — Aqui é o Dudu de Morro Agudo! — Dudu de onde?

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— Dudu de Morro Agudo, acho que o Jack falou de mim pra você. É a respeito de uma festa de hip-hop que eu tô querendo fazer no bar dele, e ele disse que você pode ajudar com o som.

— Ah! Sim. Lembrei. E quanto é?

— Não sei, é o aluguel de um som que já está lá no bar. É um som que fi ca fi xo por lá e ele disse que você já está acostumado a alugar.

— Tudo bem, diz pro Jack que está tudo certo e depois eu passo lá pra acertar com ele.

Estava tudo certo, o cara não pediu nada em troca, mas eu queria que fi casse claro que eu não colocaria nenhuma faixa e muito menos falaria o nome dele durante o evento.

— Luisinho, tem um problema, meu parceiro. — E qual é o problema?

— Esse evento não tem nada a ver com política, não tem como a gente vincular o seu nome ao nosso.

— Eu não vejo problema nenhum nisso. Boa sorte com o evento de vocês e se possível vou aparecer por lá para ver a apresentação.

— Valeu então, obrigado pela moral.

A festa de aniversário do Léo da XIII tinha se transfor- mado em um evento, e agora teria que haver uma mobi- lização dos Enraizados para fazer o fl yer, divulgar na internet e fazer ligações para convidar a massa do hip- hop carioca a comparecer em Morro Agudo, ou melhor, na Cerâmica. Reunimos os grupos de rap de Morro Agudo, Fator Baixada, Dudu de Morro Agudo, Léo da XIII e Ultimato à Salvação, e decidimos que o nome do evento seria Raiz do Hip-Hop. Por motivos ideológicos, mas também por causa do nome Enraizados.

Fiz a arte-fi nal e divulguei na internet, no Portal Enrai- zados. Passei a arte pros amigos do Alto da Posse e eles copiaram centenas de cartazes. O Átomo, o Léo da XIII, o Kall e eu colamos os cartazes no bairro inteiro. Do meu

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emprego fi z as ligações convidando todos a comparece- rem. Fui trocar uma ideia com o Jack pra saber se real- mente estava tudo certo. Ele disse que emprestaria o espaço do bar, mas tinha certeza que não daria certo, porque um monte de preto junto só podia dar em confu- são, assim como o funk sempre deu.

Mostrei para ele o quanto eu fi quei chateado com seu comentário racista e preconceituoso, mas falei que até o fi m da noite a gente conversaria novamente, e talvez ele mudasse de opinião. Eu e o Kall chegamos meia hora antes do evento começar. Para minha surpresa chega- ram conosco dez carros de polícia e bombeiros, dizendo que haviam recebido uma denúncia anônima delatando venda de drogas durante o evento.

Percebi que nosso trabalho estava indo pelo ralo. Não sabia com que cara olharia para meus amigos que viriam de diferentes partes do Rio de Janeiro para curtir um rap e teriam que voltar para casa. O Jack veio saber o que estava acontecendo. Assim que soube da denúncia ligou para um comandante da polícia e outro “peixe grande” dos bombeiros, explicou que era um evento de hip-hop dos garotos do bairro e que ele se responsabilizava por tudo. Passaram-se cinco minutos e os carros da polícia e dos bombeiros dispersaram.

As pessoas começavam a chegar ao evento. Era gente de Duque de Caxias, São João de Meriti, Japeri, Bangu, Campo Grande, São Gonçalo, Barra do Piraí, Maricá, Niterói, Madureira, Petrópolis, Jacarepaguá e muitos outros lugares. Alguns não se gostavam, mas estavam ali, juntos, e alguns até voltaram a se falar naquela oca- sião. Isso é uma característica do Movimento Enraiza- dos, unir até os que não se gostam.

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Pessoas que nunca estiveram em Morro Agudo conse- guiram chegar na Cerâmica, que era bem mais difícil de encontrar. Apesar de o bar do Jack ser no centro do bairro, o acesso era difícil. A galera da Revista Ocas me ligou per- guntando como faziam para chegar no evento. O Cacau se comprometeu em fazer a fi lmagem. Por coincidência naquele dia ele estava na gravação do fi lme “Um ano e um dia”, que ele dirigia, e levou toda a equipe, inclusive os equipamentos, para ajudar no DVD “Raiz do hip-hop”. Apesar de não lotar como os bailes funk, nosso evento fi cou mais cheio do que os eventos de hip-hop que acon- teciam no Rio de Janeiro, e foi um sucesso absoluto. O Jack fi cou visivelmente emocionado, gritando a cada movimento do b. boy Bolinho, de São Gonçalo, e a cada rima do MC Papo Reto, o apresentador da noite. Sem- pre que eu apresentava uma nova pessoa que chegava, o Jack pagava uma cerveja. Quando o evento terminou ele me chamou e propôs fazermos outro, mas ele daria uma estrutura melhor. Eu disse que tudo bem, que a gente poderia conversar mais pra frente, mas alguns meses depois ele morreu.

Depois do sucesso de Raiz do Hip-Hop, o mito de que evento de hip-hop no Rio de Janeiro não enchia acabou, e começa- ram a pipocar eventos do Movimento Enraizados em várias partes do Rio de Janeiro, sempre com as mesmas caracte- rísticas. Saindo do padrão dos acontecimentos de hip-hop tradicionais começamos a fazer eventos que uniam o hip- hop e o futebol, chamados de Boladão, numa alusão à fi sio- nomia carrancuda que os rappers fazem questão de mos- trar, que na gíria carioca é “bolado”.

A gente ia às comunidades e jogava uma partida de fute- bol com os moradores. Sempre acontecia um bate-papo em que as pessoas se integravam e fi cavam sabendo o que os outros faziam. O Boladão virou moda no Rio de

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Janeiro e em pouco tempo as pessoas nos procuravam comunicando que gostariam de fazer uma edição do Boladão em sua comunidade. Os moradores se articu- lavam para conseguir um campo de várzea e uma chur- rasqueira, nós do Enraizados convocávamos militantes, amigos e informávamos o local. No dia todo mundo levava um pouco de dinheiro e o evento acontecia o dia inteiro.

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O fi m do começo...

Quem anda com sábios, sábio será.

— Salomão

Depois de me esquivar de muitas viagens, resolvi viajar para alguns estados. Eu estava muito envolvido com o MHHOB (Movimento Hip-hop Organizado Brasileiro), mi- nha experiência com programação web me permitiu ocupar o cargo de gerente de comunicação do movi- mento, por isso falava diversas vezes por dia com o Preto Ghóez. E o Movimento Enraizados começava a ter um rumo mais sério.

Em junho de 2004 aconteceu em Porto Alegre o 1º Encon- tro Nacional do MHHOB, em que lideranças de vários estados estiveram presentes: Lamartine Silva, Nando e Ghóez (MA), Edjales Fama (RO), Gil BV (Piauí), Fabiana Menini, Saroba e Amarelo (RS), Mano Brown (SP) e outros. A maneira como o MHHOB trabalhava e se articulava para conseguir fazer suas reuniões com as lideranças nacio- nais me surpreendia. Para o Enraizados fazer as brinca- deiras na Baixada Fluminense era um grande sacrifício. Mas fomos aprendendo o caminho das pedras a cada minuto, e sempre buscávamos aprender mais.

O escritor Alessandro Buzo, que tinha uma ligação forte com o Movimento Enraizados, nos convidou para o lança- mento do seu livro “Suburbano convicto”, em São Paulo.

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Por muito tempo ele foi um dos maiores colaboradores do Portal Enraizados, e até hoje mantém uma coluna quin- zenal. Por escrever e participar tanto, recebia os méritos de estar com o nome sempre em evidência no Portal. Em setembro de 2004, o jornalista André Caramante escre- veu uma matéria com o Alessandro para a revista do jor- nal “Agora”. Ele apareceu com a blusa do Enraizados, o que fez crescer o nosso nome no estado de São Paulo. Com isso percebi que ele não estava brincando na organi- zação, ali era fechamento pra qualquer parada.

Eu tinha a missão de atualizar diariamente o Portal Enraizados, que sempre foi a porta da organização para o mundo. Além de colocar as notícias, ainda deveria estar por dentro das novidades em linguagem de pro- gramação para dar sempre um upgrade no site. Baixei muitas apostilas de informática, como a de ASP (Active Serve Pages), uma linguagem de programação proprie- tária, e pedi ajuda ao analista de sistemas da empresa em que trabalhava, o Jorge, que sempre foi um cara muito gente boa, uma das pessoas mais prestativas que já conheci na vida.

O Jorge me passou mais algumas apostilas, mas disse que não sabia muito de programação web, o negócio dele era Cobol. Como ele ajudava a todos o tempo inteiro, eu passava muito tempo no CPD (Centro de Processamento de Dados) trocando ideia com ele e com o meu camarada Luciano Lyrio, que sempre permitiam que eu fi casse nos computadores da empresa programando e testando novas versões do Portal Enraizados.

Eu estudava de tudo para colocar o Portal Enraizados entre os portais de hip-hop mais bonitos e acessados do Brasil. Programação, design, marketing e técnicas de redação. Outros integrantes do Enraizados faziam música o tempo inteiro, alguns eram desenhistas e cola- boravam com seu trabalho, a gente ia vivendo como dava.

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O Lamartine me ligava com frequência, a gente conver- sava e ele me passava responsabilidades. Dizia que o Movimento Enraizados era o nome do MHHOB no Rio de Janeiro, e eu deveria assumir isso. Eu pensava a respeito e achava que não poderia ser tão ruim, e a cada conversa com o Lamartine fi cava cada vez mais envolvido.

Além das atribuições que eu já tinha – pai, marido, MC, programador e produtor – era necessário ainda apren- der a fazer projeto, pois descobri que não sabia. Execu- tava minhas ideias com maestria, mas não conseguia enquadrá-las em editais, por exemplo.

A Fabiana Menini, do Instituto Trocando Ideia, de Porto Alegre, estava muito próxima do Ghóez, acho que foi ele quem nos apresentou. Ele usava muito o telefone dela e por isso eu ligava pra Fabiana com frequência, tentando falar com Ghóez. A gente se falava tantas vezes por dia que eu sabia que fi caríamos amigos. A Fabiana fez algo por nós, e por mim particularmente, que jamais esquecerei. Um dia perguntei se ela podia me ajudar a fazer um pro- jeto, eu nunca tinha visto um pronto e não conseguia aprender pelas apostilas “Faça você mesmo”. Ela me mandou por e-mail um projeto do Trocando Ideia e um material com endereço, e-mail e telefone de centenas de instituições, do mundo inteiro, que apoiavam e patro- cinavam projetos iguais ao nosso. Lembro que ela me disse para não disponibilizar o material para qualquer pessoa, pois aquilo era trabalho de uma vida inteira. Fiquei feliz pela confi ança dela, nós ainda nem nos conhecíamos pessoalmente.

Eu tinha certeza que o MHHOB daria certo. Muitas pes- soas inteligentes estavam comprometidas, era a prá- tica da revolução que os MCs pregavam em seus raps. O Ghóez era o tipo de liderança que a gente não vê nascer todos os dias e ele estava do nosso lado, ou nós do lado

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dele, prontos para mudar a estrutura de tudo. Em uma de nossas conversas o Ghóez me fez entender a importância em estarmos juntos, mas não era eu e ele, e sim todos os pretos, pobres, nordestinos, todas as pessoas que eram discriminadas de uma maneira ou de outra. Ele dizia:

— Dudu, a gente precisa criar e cuidar das nossas pró- prias atividades e empreendimentos, da nossa própria gente e do nosso dinheiro.

— Eu sei disso. (respondia positivamente, mas não fazia ideia de como isso poderia acontecer na prática.) — Então a gente tem que conversar com um por um, com as lideranças.

— É, mas às vezes as lideranças estão muito ocupadas cuidando das suas mulheres e fi lhos, deixam a causa em stand-by. E a gente não pode nem mesmo criticar os caras, porque a gente faz o mesmo quando as coisas apertam em casa.

— Eu sei, mas não é disso que eu estou falando. — E tem mais!

Interrompi o Ghóez e continuei falando de modo eufórico. — Em minha pouca experiência de vida já percebi que onde tem dinheiro tem traição, tem tumulto, tem guerra de egos. Onde tem liderança tem gente querendo derrubar. Nessa época eu era bastante cético, meus pensamen- tos eram sempre radicais, só conseguia expor em reuni- ões internas do Enraizados, quando havia três ou quatro pessoas. Um dia o Ghóez falou sobre nós do hip-hop ter- mos nossas próprias roupas, nossa grana deveria circu- lar entre a gente. Incentivaríamos campanhas para boi- cotar as empresas racistas e preconceituosas, pois eles sobrevivem do nosso dinheiro, nós somos a maioria. Ele continuava:

— Dudu, imagina tu lançar um disco no Rio de Janeiro hoje e daqui a uma semana o disco já estar vendendo

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em quase todo o Brasil, nas comunidades que tiverem o MHHOB presente?

— Seria muito bom, mas é sonho isso, né?

— É possível. A gente pode criar um mercado indepen- dente, próprio. Não fi ca pesado pra ninguém e a gente ainda fomenta a produção e o consumo dos nossos produtos.

— É verdade!

Eu só concordava. Não conseguia entender como isso poderia funcionar, mas sempre concordava esperando o dia da prática, porque na teoria a gente estava bem avançado. Hoje penso que o Ghóez sempre me enxer- gou como uma grande liderança ligada à tecnologia e ao empreendedorismo, mas não ao rap propriamente dito. No dia 9 de setembro, em uma de minhas ligações diá- rias para a Fabiana Menini, veio a triste e dura notícia. Eu disse:

— Alô Fabiana!! Cê sabe do Ghóez? — Você não soube, Dudu?

— Não, o que houve?

Eu esperava que ela dissesse qualquer coisa, menos que o cara tinha morrido. Isso não era nem a última coisa que passava pela minha cabeça. Defi nitivamente isso não poderia acontecer. Ela continuou:

— Dudu, eu tentei falar com o Ghóez e fi quei sabendo que ele sofreu um acidente de carro, mas não sei de muitos detalhes, tenta ligar para os meninos (do Maranhão) e se souber de alguma notícia me liga pra informar.

— Tudo bem, Fabi, vou tentar saber com os caras. Nessa hora o meu telefone celular começou a tocar, uns querendo saber e outros querendo informar. O Preto Ghóez realmente tinha morrido em um acidente de carro.

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Ousadia: deixe-me

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