• Nenhum resultado encontrado

Dinheiro: solução ou mais problemas?

No documento Enraizados: os híbridos glocais (páginas 182-190)

É de uso dizer-se que o dinheiro é a raiz de todos os males. A afi rmação vale também para a falta de dinheiro.

— Samuel Butler

Algumas pessoas do Enraizados tinham trabalhos for- mais, até mesmo para sustentar suas famílias, mas outros não tinham renda, apesar de já pensarem em construir sua própria família.

Eu e Dumontt, há tempos, havíamos conseguido a bolsa Agente Cultura Viva, do governo federal, para os partici- pantes do Enraizados que se encaixavam no perfi l. Nossa ideia era que pudessem ganhar dinheiro com a arte deles. Surgiram então algumas oportunidades de dar aula no Polo Esportivo e Cultural do América Futebol Clube, onde o Elison e o Léo da XIII dariam aulas e seriam remunerados. Nessa época, acho que por causa das bolsas, nos- sas reuniões de sábado beiravam umas 100 pessoas. O Dumontt sempre aparecia com uma dinâmica nova. No início era bem divertido, o pessoal do hip-hop não conhecia dinâmicas de grupo porque era uma prática mais comum no teatro. Tinha uma dinâmica, das palmas, que todo mundo pedia pra fazer, toda semana a gente fazia essa dinâmica.

183 Seguindo em frente

Apesar de a maioria dos participantes praticar um dos quatro elementos do hip-hop, havia muitas pessoas que nem gostavam de hip-hop, mas estavam lá para ganhar os R$150 mensais do governo. E eu não imaginava que essas bolsas trariam tantos problemas. As pessoas que frequentavam o Movimento Enraizados antes da bolsa pararam de frequentar assim que conseguiram o auxi- lio. Outros que não estavam no perfi l continuavam indo mesmo sem bolsa. Alguns que nunca participaram dos encontros começaram a ir por causa da bolsa e nunca mais pararam. Outros ainda receberam a bolsa e nunca pisaram nas reuniões. Sempre que tinha dinheiro envol- vido dava confusão. Um pensava que era mais malandro que o outro e no fi nal todo mundo se enrolava.

Antes das ofi cinas no América começarem, o Dumontt conversou com o Elison e o Léo da XIII, explicou que eles não poderiam fazer feio porque o nome do Enraizados estava em jogo. Mas algumas semanas depois os garo- tos começaram a chegar atrasados, e depois a faltar. Um dia o Dumontt chegou lá sem avisar, e nenhum dos dois tinha ido trabalhar. Quando o Dumontt perguntou, eles tentaram mentir, mas não havia como mentir naquela altura do campeonato, porque o próprio Dumontt deu aula no lugar deles. Depois de um tempo preferimos interromper as ofi cinas no América e todo mundo fi cou sem dinheiro novamente. O que nos deixava sem enten- der a situação era que de uma hora pra outra os garo- tos deixaram de nos ver como aliados que lutavam pela mesma causa e passaram a nos enxergar como empre- gadores. Aí o caldo entornou de vez.

Certa vez o Dumontt foi à prefeitura falar com a Maria Antônia, primeira-dama e coordenadora do programa Bairro Escola, a respeito do nosso problema de espaço. A prefeitura havia prometido alugar um espaço para

184 Enraizados: os híbridos glocais

nós instalarmos o Ponto de Cultura, mas por questões burocráticas dependíamos da liberação do procurador. Mas ninguém achava o tal procurador, e a Maria Antô- nia simplesmente não quis receber o Dumontt. Ele fez um ofício e entregou no gabinete do prefeito. Voltou pra Morro Agudo e lá encontrou o Samuel Azevedo e o Short. Pegaram a fi lmadora e a máquina fotográfi ca do Ponto de Cultura e partiram novamente pra prefeitura. Entra- ram na procuradoria e o Dumontt orientou os Enraiza- dos a fi lmarem todo lugar que ele apontasse. O Dumontt falava: “Filma ali ó, aqui ninguém trabalha, esse aqui tá no Orkut e aquele no MSN!”

Segundo o Dumontt foi uma correria danada na prefei- tura, e resolveram atendê-lo, pelo menos para dar uma desculpa. O Dumontt fez outro ofício e entregou no gabi- nete do prefeito para explicar por que fez tudo aquilo. O prefeito pediu uma reunião com a Maria Antônia e com o procurador-geral. Acabou que eles não alugaram o espaço e a gente continuou sem ter onde colocar os equi- pamentos, que continuavam na minha casa, alguns ainda dentro das caixas. Todo o recurso necessário para as ati- vidades do Enraizados saíam do meu bolso ou do bolso do Dumontt, sendo que meu salário era a metade do dele e eu tinha dois fi lhos para criar. Eu sabia que a gente pre- cisava de um lugar como sede, mas essa parceria com a prefeitura não aconteceu, e o processo com o governo do estado para ocupar a quadra do Ciep 117 não andava. Apesar de alguns atritos com a prefeitura a gente tinha uma boa relação com o pessoal da articulação política, o Toninho, o Cláudio Jorge e o Paulô, que sempre que podiam nos ajudavam. O Dumontt me chamou para con- versar e falou que precisávamos alugar pelo menos uma sala para receber as pessoas, fazer nossos projetos, ter um endereço de verdade. Eu concordava, mas tinha

185 Seguindo em frente

muito medo de não conseguir grana para honrar nossos compromissos, afi nal todo aluguel tem contrato de no mínimo um ano.

Ele já tinha visto uma sala no centro de Morro Agudo. O aluguel era R$160 e a gente ainda teria que pagar uma taxa de R$20 da água, isso sem contar com a conta de luz. No mínimo, teríamos um custo de R$200 por mês. O Dumontt me chamava de conservador, eu dizia que trabalhava com a realidade. No fi m ele me convenceu a alugar o local, mas eu ainda morria de medo de ter que tirar dinheiro da minha família pra pagar aluguel do Enraizados.

Era difícil aceitar uma organização em que quase 100 pessoas participam mas quando o laço apertava somente meia dúzia aparecia pra ajudar. Eu e Dumontt conversávamos muito sobre esse assunto. A gente preci- sava prezar pela qualidade, e não pela quantidade. Base- ado neste princípio o Dumontt propôs criarmos o Cefam (Centro de Estudo e Formação de Ativismo e Militância), um grupo de estudos que se reuniria semanalmente. Estava entrando o mês de novembro e os convites para participarmos de eventos não paravam de chegar. Pro- postas de parcerias eram aos montes. Fizemos ofi cina de grafi te na Casa das Meninas (instituição benefi cente Brasil-Itália, situada na Cerâmica, bairro vizinho a Morro Agudo); participamos da organização do Bingo Dançante, produzido pelo Roger Craum; estivemos no Cortejo Cul- tural dos Pontos de Cultura, na Cinelândia; participamos da Semana da Consciência Negra de Nova Iguaçu; do Dia da Bíblia, na Alerj, além de outras atividades.

Recebi uma homenagem do América Futebol Clube, como personalidade negra jovem. Nem preciso falar que fi quei todo bobo. Primeira homenagem da minha vida. E quem entregou o troféu foi o senhor Edevair, pai do

186 Enraizados: os híbridos glocais

Romário. Algumas semanas antes a Claudia Perluxo e o Edu, diretores da ONG Casa de Anyê, nos convidaram para participar do seminário “Música pra que serve?”, em que faríamos a fi lmagem e a edição de um vídeo ins- titucional. Nossa participação no seminário aumentava a cada dia. Estivemos presentes na fi lmagem, na mesa de palestra, na produção, na curadoria e ainda editamos e produzimos um DVD triplo, com todo o seminário. Tudo feito em Software Livre.

Paralelo ao seminário, a gente produzia a sexta edição do Encontrão, em que pela primeira vez fecharíamos cinco ruas no centro de Morro Agudo e misturaríamos os grupos de pagode locais com o nosso hip-hop. Por causa da visibilidade do Portal Enraizados e do crescimento estrondoso da Rede Enraizados, muitas pessoas liga- vam querendo participar dos nossos eventos, mas infe- lizmente não tínhamos estrutura para alojar todos. Cada um que viesse deveria arcar as despesas, como foi o caso dos Realistas NPN, que vieram com um ôni- bus com 40 pessoas de Belo Horizonte (MG) no dia do 6º Encontrão, 25 de novembro de 2006. Eles chegaram pela manhã e fomos todos para o Ciep 117, onde aconteceria o seminário, que na verdade foi uma espécie de bate-papo em que as pessoas trocaram ideias e falaram de suas experiências de vida. Nesse dia conhecemos o Ice Band, que contou a história mais chocante. Se envolveu com o crime, tomou vários tiros e, segundo ele, foi resgatado pelo hip-hop.

O Ice Band comentou que as mães das crianças do seu bairro diziam aos fi lhos que se eles não as respeitassem ou enveredassem pelo caminho do crime fi cariam como ele, com um olho de vidro, manco de uma perna e com várias cicatrizes no corpo. Ele dizia que o crime servia pelo menos pra isso: ele servia de exemplo para as crianças

187 Seguindo em frente

não entrarem na vida errada. Neste dia fazia muito calor, acho que uns 45 graus. Os mineiros estavam desespe- rados, nós também, mas não falávamos nada para não assustar ainda mais nossos amigos. Todos procuravam uma sombra para escapar do sol, mas o calor castigava. O dono do bar Continental, bar onde eu e Dumontt pará- vamos com frequência para beber umas cervejas, fi cava em frente ao palco e vendeu bastante cerveja. Ele tam- bém colaborou conosco, liberou todo o estoque de água mineral para nossa equipe e nossos convidados. Conversamos com os grupos que se apresentariam no evento, expondo nossa vontade de gravar os shows e produzir um CD e um DVD para divulgar o trabalho artís- tico e gerar renda, mas para isso precisaríamos da libe- ração das músicas para comércio. Argumentamos que todas as músicas que iríamos cantar ali, naquele evento, estavam disponíveis para download gratuito na internet, mas a maioria do nosso público-alvo, pessoas da peri- feria, não tinha acesso à nossa música justamente por isso. A ideia era a gente disponibilizar as músicas para download nos camelôs. O argumento foi forte, sincero, e todos concordaram.

Quando o CD e o DVD “6º Encontrão ao vivo” fi cou pronto, enviamos para todos os envolvidos no projeto, disponi- bilizamos as músicas na internet e fomos para as ruas negociar com os camelôs. Nossa ideia era dar a matriz para os camelôs, que fariam as cópias, e de cada CD ou DVD que eles vendessem voltaria um real para a organiza- ção. Eles toparam e no começo até que devolviam parte da grana, que não era muita. Mas nem todos os grupos que participaram do projeto fi zeram o mesmo. A inicia- tiva deu parcialmente certo. Os CDs e DVDs se alastraram por bancas de camelô do Rio de Janeiro. Inclusive a Lisa Castro, do Ultimato à Salvação, foi reconhecida na rua por

188 Enraizados: os híbridos glocais

causa do DVD. E essa pessoa comprou o DVD em Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Participaram da coletânea os grupos Re.Fem (Duque de Caxias), Ultimato à Salva- ção (Nova Iguaçu), Léo da XIII (Nova Iguaçu), Família MDG (Itaboraí), Missionários do Rap (Belo Horizonte), Realis- tas NPN (Belo Horizonte), Wiza (Rio das Ostras), Marcio RC (Nova Iguaçu), RDF (Belo Horizonte), Sindicato do Rap (Belo Horizonte), ainda outros.

Quando fechamos contrato e alugamos nosso primeiro espaço, o Dumontt convenceu a proprietária e nós não precisamos de um fi ador. Um escritório de 10m² onde muita gente importante passaria no próximo ano, e a gente nem imaginava. Eu, Dumontt, Léo da XIII, Guará e Short pintamos a sala e fi zemos a mudança. Monta- mos todos os equipamentos do Ponto de Cultura. Nem sei como coloquei aquilo tudo pra funcionar. Meu com- putador e o do Dumontt foram pro escritório também. O Dumontt alugou um apartamento ao lado da sala, ele era o nosso segurança. No mês seguinte eu e Dumontt deci- dimos deixar nossos empregos para nos dedicarmos em tempo integral ao Movimento Enraizados. No dia 20 de dezembro de 2006 eu e Dumontt pedimos demissão dos nossos empregos formais.

190

Comunicação:

No documento Enraizados: os híbridos glocais (páginas 182-190)