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Cabeça vazia: ofi cina do diabo

No documento Enraizados: os híbridos glocais (páginas 48-58)

O Estado proíbe ao indivíduo a prática de atos infratores, não porque deseje aboli-los, mas sim porque quer monopolizá-los. — Sigmund Freud

O estágio na Petrobras não “virava”, ou seja, não acon- tecia, e por isso eu tinha que arrumar outra parada pra fazer. Foi então que o Serginho me chamou para traba- lhar com ele numa obra, eu seria ajudante de pedreiro. Nunca tinha preparado uma massa em toda a minha vida, mas como eu estava precisando de grana, enca- rei na boa. O Serginho é mais um dos meus amigos que entrou para a Polícia Militar.

Em julho de 1995 comecei a estagiar na Petrobras. Eu pegava o trem em Morro Agudo, descia em São Cristóvão e de lá ia andando. Levava cerca de uma hora até chegar no prédio da BR, como o pessoal chamava. Recebia um salário legal, ainda tinha vale-transporte, ticket refeição e quase sempre vinha um dinheiro a mais no pagamento. Foi nessa época que comprei meu primeiro computa- dor. Era um 486DX4-100, top de linha, os famosos Pen- tium nem existiam. Fui aclamado por meus amigos que já tinham computador, agora eu estava no bonde dos caras que tinham computador, e não rolava inveja, eles sabiam que eu merecia ter minha própria máquina, que era um sonho e não um capricho, tanto que fi quei usando

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o mesmo computador até 2002. Foi nesse computador que produzi muitos beats pra mim, para o Léo da XIII, para o Ultimato à Salvação, e muitos anos depois nele fi z também o Portal Enraizados e outros trabalhos.

Nesse ano o Netinho trabalhava no centro do Rio de Janeiro, nós vínhamos juntos de trem, da Central para Morro Agudo, nos divertindo na viagem. Ele vinha na porta, eu na parte de dentro, tinha uma preocupação porque dois amigos da minha rua já caíram do trem, os caras iam em cima porque o trem vivia lotado.

No ano seguinte saí da Petrobras e fi quei novamente desempregado. Estava com 17 anos e provavelmente não arrumaria emprego por causa do quartel, então fi quei só estudando e fazendo trabalhos de informática em casa.

O tempo livre para esses jovens está relacionado ao desemprego e à falta de oportunidades, portanto suas consequências são bastante diferentes do tempo livre dos jovens mais abastados.

[Paula Martins Salles, pag 9]

Eu fi z tanta merda esse ano que quase fui preso duas vezes. A primeira foi porque os moleques da minha rua andavam armados e um dia bateram de frente com o carro da polícia. Eles saíram correndo, a polícia atrás deles, e no desespero e sem ter onde se esconder, entra- ram numa casa. A polícia fi cou com medo de entrar e os moleques mandarem bala, então a tia de um deles saiu chorando no portão e disse que a arma era minha. Os policiais foram bater na minha casa, meus pais estavam trabalhando, eu estava em casa, mas não abri a porta porque sabia que eles não poderiam invadir.

A rua estava cheia de gente. Eles foram embora, mas as fofoqueiras esperaram no ponto de ônibus a minha mãe chegar do trabalho e disseram que a polícia estava me

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procurando porque eu havia roubado o Ciep. Nem pre- ciso dizer que minha mãe quase morreu do coração. Dessa vez eu nem tive culpa. Mas na semana seguinte falsifi quei umas carteiras de um clube aqui da cidade, o Dallas, porque lá tinha uma piscina enorme e a galera da minha rua queria curtir, mas não tínhamos grana pra entrar. A saída era falsifi car as carteiras.

Um dos sujeitos que andavam comigo conseguiu uma car- teirinha do clube e me deu pra eu reproduzir. Fiz 12 idên- ticas, mas não deu tempo de fazer os carimbos. Eu disse pra todo mundo não alterar a carteira, mas um dos garo- tos passou uma canetinha em torno da foto para simular o carimbo. Quando nós chegamos no Dallas quem estava na porta olhando as carteirinhas era o dono do clube e o segurança particular dele, que era policial. Quase todas as carteirinhas passaram, mas na última o cara percebeu que era falsifi cada, justamente porque a tinta da caneti- nha manchou. Então sujou pra todo mundo.

Eles enquadraram a gente na parede, seguraram nossas carteiras de identidade e chamaram a polícia. O dono do clube perguntou quem tinha feito e respondi dizendo que tinha sido eu. Ele me chamou de estelionatário, disse que minha mãe ia me visitar na cadeia. Lembrei do que havia acontecido na semana anterior e tentei argumentar, mas o cara nem deixava eu abrir a boca. Colocava a pistola 9mm na minha cabeça, perguntava se eu era maluco, se eu sabia quantos anos de cadeia eu iria pegar por isso. Eu, tranquilo, disse: “Nenhum, nós somos todos menores de idade.” Então ele gritou que ia matar todo mundo pra gente deixar de bancar o malandro. Com muita argumen- tação o cara liberou a gente, com a condição de levarmos a pessoa que deu a primeira carteirinha, pois ela seria expulsa do clube. Deixamos nossas identidades com ele como prova de que voltaríamos com o tal sujeito que

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tinha a original. Assim que saímos do clube chegaram três carros de polícia. A gente estava de bicicleta e corremos muito, meu coração estava a mil por hora. No fi nal tudo deu certo, ninguém foi preso e ninguém morreu.

No ano seguinte comecei na Unig, uma universidade parti- cular de Nova Iguaçu. Fiquei por lá uns dois anos, cursava Tecnologia em processamento de dados, mas não conse- guia pagar. Minha mãe estava desempregada, eu também não arrumava mais grana, então tava tudo na conta do meu pai, que não conseguiu segurar. Ele até disse pra eu fi car que ele daria um jeito, mas eu não quis, porque pas- sava por constrangimentos em sala de aula. Quem estava devendo a mensalidade não podia ter acesso à nota e era cobrado dentro de sala, na frente de todos, e isso me envergonhava muito, até que abandonei o curso.

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Cap.02

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A criação do

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