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ÁREA DE PROTEÇÃO DO DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR: ASPECTOS SUBSTANCIAIS E PROCEDIMENTAL

3 AUTONOMIA DOS PAIS

3.7 ÁREA DE PROTEÇÃO DO DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR: ASPECTOS SUBSTANCIAIS E PROCEDIMENTAL

O objeto deste estudo é o direito fundamental à convivência familiar, regulado no art. 226 e seguintes da Constituição. Apesar de tal direito referir-se, inicialmente, a todos os graus de parentesco verificados na família, para os propósitos desta pesquisa, nosso foco, como já dito alhures, serão as relações que se estabelecem entre os genitores e sua prole.

Na Constituição Federal, a família recebe capítulo próprio, no título referente à “Ordem Social”, denominado “Da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso”, e é proclamada como “a base da sociedade”, à qual cabe “especial proteção do Estado”.252

Quanto à sua titularidade, o direito à convivência familiar vem positivado no art. 227 de nossa Carta Magna, como um dos direitos fundamentais da criança, do adolescente e do jovem. Porém, há também nesse direito um aspecto de reciprocidade, pois, além de ser um direito dos descendentes, sua titularidade refere-se também aos pais, com a mesma intensidade e sem distinção de gênero253 ou de outra natureza – tal como orientação sexual.254

Quanto ao seu conteúdo, a definição da área de proteção do direito à convivência familiar é feita pelo nosso legislador constituinte de forma negativa, para deixar de fora dali as relações familiares em que a violência esteja presente, tal como afirma a parte final do § 8º, do art. 226, da Constituição. Portanto, a privacidade familiar não pode mais funcionar como escusa para o cometimento de atos abusivos por seus integrantes, não tendo mais guarida no ordenamento teses que, até não muito tempo atrás, legitimavam de algum modo a violência intrafamiliar – tal como a exclusão de ilicitude nos crimes de homicídio passional, praticados em suposta legítima defesa da honra.255

Quanto, porém, à definição de um conteúdo positivo específico para a convivência familiar, nossa Lei Fundamental não é minudente, o que, portanto, dá maior espaço de conformação desse direito ao legislador ordinário e, a partir daí, aos seus intérpretes.

Num primeiro momento, o ordenamento infraconstitucional dá destaque à convivência familiar na sua dimensão biológica, como preceitua o art. 1.593, do Código Civil; e o art. 25, do Estatuto da Criança e do Adolescente, caput. A jurisprudência e doutrina, por

252 CF, art. 226.

253 Nesse sentido, CF, art. 226, §§ 4º e 5º.

254 Aqui, em virtude da cláusula geral de igualdade constante do art. 5º, caput, da Constituição (“todos são

iguais perante a lei”), tal como reconhecido pelo STF no julgamento da ADI 4.277 e ADPF 132.

255 Cf. CRISTINO, Fernanda da Rosa. Ilegítima defesa da honra. Disponível em: http://www.ambito-

sua vez, de forma salutar, têm evoluído o conceito de convivência familiar para, além da dimensão biológica, destacar cada vez mais o aspecto psíquico como traço marcante da família.256 O afeto, então, tem ganhado relevo na doutrina como o elemento primordial do vínculo familiar257 – embora não o único.258

A partir de então, os tribunais têm reconhecido vínculos parentais, mesmo na ausência de laços consanguíneos, criando institutos não previstos no ordenamento legal, mas reconhecidos como direito pela jurisprudência, tal como a posse do estado de filho, a filiação socioafetiva e a adoção intuitu personae.

Um tema, porém, a que pouco se dedica a doutrina brasileira diz respeito ao aspecto procedimental do direito à convivência familiar. Apesar da grande receptividade que o afeto tem recebido em nossa doutrina e jurisprudência, são necessárias cautelas na sua análise, pois, quando em disputa o direito de uma criança, o vínculo afetivo precisa ser recebido com certo cuidado, sob pena de se preterirem os laços biológicos de genitores a que não foram dadas as oportunidades para a formação de apego. Assim, uma leitura apressada do art. 13, parágrafo único, do ECA – que fala da necessidade de a Justiça acolher as gestantes ou mães que manifestem o desejo de entregar seus filhos em adoção – pode levar o Poder Judiciário a não atentar para o fato (óbvio, porém não raro esquecido) de que o recém-nascido tem uma família paterna que pode estar disposta a receber o petiz ou, pior, simplesmente desconhecer o intento da genitora em abdicar do laço materno.259

256 Nesse sentido, dentre outros, cf. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.128.539/RN.

Relator(a) para acórdão: Minha. MARCO BUZZI, Quarta Turma, 18/08/2015, DJe 26.08.2015. Disponível em:

<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=200900489997&dt_publicacao=26/08/20 15>. Acesso em: 1 jul. 2016. / Conforme, também SANCHES, Helen Chrystine Corrêa; VERONESE, Josiane Rose Petry. Dos filhos de criação à filiação socioafetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. CUNHA, Rodrigo Pereira da. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. DIAS, Maria Berenice. Famílias modernas: (inter)secções do afeto e da lei. Disponível em: http://mariaberenice.com.br/uploads/3_- _fam%EDlias_modernas__inter_sec%E7%F5es_do_afeto_e_da_lei.pdf.. Acesso em: 05 maio 2016.

257 Nesse sentido, Maria Berenice Dias assevera que, em respeito ao principio da dignidade da pessoa humana,

a nenhuma espécie de vínculo que tenha por base o afeto pode-se deixar de conferir o status de família. DIAS, Famílias modernas...

258 Além da afetividade em si, a doutrina aponta ainda, como outros elementos para a configuração de laços

familiares extrabiológicos, a ostentabilidade e a estabilidade. LÔBO, Paulo Luiz Netto apud PEREIRA, Rodrigo Pereira da.

259 Em nossa atuação como promotor de justiça do Estado do Rio Grande do Norte, já lidamos com um caso,

dramático, em que a exclusão do pai do processo de adoção ocorreu e o Poder Judiciário, em nosso sentir de forma açodada, recebeu a petição inicial sem tomar as devidas cautelas para aferir se o pai da criança estava efetivamente de acordo ou, pior, se sequer sabia daquela gravidez. O desfecho foi dramático e envolveu, como se pode antever, uma “escolha de Sofia” às avessas. Para decidir o futuro de uma criança, a justiça teve que negar totalmente a pretensão de um dos lados da lide: ou o adotante com vínculos já formados ou o pai biológico revoltado com a perda de sua filha. Deixamos, porém, de analisar o caso aqui de forma minuciosa, visando a resguardar a intimidade das partes envolvidas, sobretudo a da criança.

Como já demonstrado anteriormente260, o interesse superior da criança guarda também um aspecto procedimental e isso tem como corolário, dentre outros aspectos, o fato de que os interesses fundados no sangue devem ser preservados, como potentia, para um futuro afeto. Nesse sentido, a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Fornerón e Hija v. Argentina261 e ainda o caso Smith v. Organization of Foster Families For Equality and Reform, referido no item 3.4, no qual a Suprema Corte dos EUA referendou a lei do estado de Nova York que, dentre outras questões, autorizava cautelas visando a evitar a formação de vínculos afetivos das crianças inseridas em um programa de acolhimento familiar (foster homes) com seus cuidadores, o que poderia impedir um futuro retorno dos mais novos aos seus lares de origem.

Por força então do interesse superior da criança e do adolescente, o direito à convivência familiar deve-se referir, além de aspectos substanciais – laços de sangue ou laços afetivos –, também e com igual importância, a uma dimensão procedimental. A criança, como ser em desenvolvimento, pode ter sua vontade manipulada por um adulto, sobretudo quando tenha com este laços de afinidade. Por isso, o Terceiro do Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança, adotado pela Assembleia Geral da ONU em dezembro de 2011 para tratar dos procedimentos de comunicação de violação da CDC ao seu Comitê de monitoramento262, após ratificar, no seu art. 2º, o melhor interesse da criança, afirma logo em seguida, no seu art. 3.2: “O Comitê incluirá em suas regras de procedimento salvaguardas para prevenir e evitar a manipulação da criança por aqueles que agem em nome dela e pode se recusar a examinar qualquer comunicação que considere não ser no melhor interesse da criança”.

É necessário, portanto, atentar para o fato de que o afeto não pode ser uma escusa para acobertar fraudes – no que incluímos as tentativas de alienação parental e toda ação açodada que casse, no nascedouro, as oportunidades futuras de afeto dos demais parentes da criança – e, nesse sentido, o aspecto procedimental da convivência familiar aponta para a necessidade de cautelas na análise desse direito, mais do que sua recepção efusiva e, muitas vezes, turva pela emoção.

260 Cf. item 2.6.

261 Citado na nota de rodapé 141, p. 50.

262 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção sobre os Direitos da Criança. In: MINISTÉRIO

Público do Estado do Paraná. Convenção sobre os Direitos da Criança. MPPR: CAOPCAE, Área da Criança e do Adolecente. Disponível em:

<http://www.crianca.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=1187>. Acesso em: 1º jul. 2016.

Tais assertivas têm importância, sobretudo, em contextos de fragilidade social na qual os familiares veem-se inseridos, o fenômeno da invisibilidade familiar263 faz-se presente, e a lógica dos direitos logo pode ser transmutada para a da benemerência.

Às famílias socialmente vulneráveis devem, pois, ser oferecidas oportunidades e processos para o fortalecimento dos vínculos de seus membros, tal como indica o art. 3º do ECA, ao falar em segurança de oportunidades e facilidades. O aspecto procedimental do interesse superior muito contribui para isso, em que pese a pouca atenção que lhe dá a doutrina brasileira.

Essas questões serão debatidas no capítulo 5, tendo como mote a polêmica questão da adoção intuitu personae.

3.8 O STATUS NEGATIVUS DO DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR

No que toca ao direito à convivência familiar da criança e do adolescente previsto no rol de direitos fundamentais do art. 227, vê-se que, para os filhos, sua garantia fundamenta-se tanto pela importância da família em seus aspectos subjetivos, como espaço de trocas afetivas, como também territorialmente264, enquanto habitat da socialização e do desenvolvimento humanos. Outrossim, como referido no item 3.8, é necessário também conferir a esse direito uma acepção procedimental a fim de resguardar plenamente a proteção dos pequenos.

Com relação aos pais, porém, em um primeiro contato com a Constituição, a Carta Magna lhes dá uma acepção restritiva para esse direito, dando mais destaque aos seus deveres de assistência, criação e educação dos filhos menores.265 Trata-se, pois, de uma delimitação aos direitos dos pais enfeixados no poder parental.

É necessário, contudo, analisar em que medida o direito à convivência familiar, apesar de encartado no rol de direitos infantojuvenis, deve ser também interpretado, para que tenha máxima eficácia, como um direito de duas faces, que também se refere aos pais. Essa é a compreensão que abraçamos neste estudo e entendemos que ela tem impacto na própria conceituação do poder familiar – visto atualmente como uma potestade inerente aos pais –, bem como na concretização do direito à convivência familiar – concebido como uma titulação referente aos filhos –, para aferir a ambos os institutos uma feição mutual, de reciprocidade paterno-filial.

263 Sobre a invisibilidade familiar, v. nota de rodapé 195, p. 69. 264 Nesse sentido, cf. BRASIL. Conselho Nacional... Plano..., 2006. 265 CF, art. 229.

Em termos prestacionais, o modelo de representação comunitária da família não apresenta maiores questionamentos nas nossas políticas de Estado. Nesse sentido, a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) prevê como diretriz primeira para a gestão do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) a matricialidade sociofamiliar, conceito que aponta para a necessidade de a ação pública de assistência social ter como destinatário a família como um todo, em que o indivíduo é visto como membro de um corpo familiar e, assim, propõe-se a superação de atendimentos fragmentados.266

Porém, no que toca a uma feição liberal – de cunho, portanto, não intervencionista para o Estado –, o modelo de representação comunitária da família traz alguns desafios para a implementação do direito à convivência familiar, sobretudo pelo prisma da criança, que pode ter sua pretensão submersa na de seus pais. Tais desafios precisam ser equacionados a fim de se proceder a uma proteção idônea dos interesses do petiz.

A compreensão de um direito fundamental sob o prisma liberal significa analisá-lo como um direito de resistência do cidadão em face de intervenções estatais em sua esfera de proteção. Daí ser uma análise na qual o direito é visto em seu estado negativo (status negativus). Segundo Leonardo Martins e Dimitri Dimoulis:

Os direitos de resistência correspondem à concepção clássica liberal que procura impor limitações à atividade estatal, para preservar a liberdade pessoal que inclui a atuação econômica e o usufruto da propriedade. Dessa forma, objetiva-se afastar quaisquer possibilidades de intervenções arbitrárias na esfera individual.267

Vislumbrar na convivência familiar uma acepção negativa não significa negar-lhe valor à sua dimensão prestacional.268 Como já bem assentado na teoria constitucional, a evolução histórica dos direitos fundamentais permite, a cada nova dimensão historicamente firmada, contemplarem-se novas perspectivas para os velhos direitos, o que lhes expande a área de proteção, ao passo que importa também em desafios para sua implementação.269

266 Sobre a matricialidade familiar, assim diz o PNAS: “Por reconhecer as fortes pressões que os processos de

exclusão sócio-cultural geram sobre as famílias brasileiras, acentuando suas fragilidades e contradições, faz- se primordial sua centralidade no âmbito das ações da política de assistência social, como espaço privilegiado e insubstituível de proteção e socialização primárias, provedora de cuidados aos seus membros, mas que precisa também ser cuidada e protegida”. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Plano Nacional de Assistência Social. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2004. p. 41.

267 DIMOULIS; MARTINS, op. cit., p. 51.

268 Sobre a concepção interacional entre status positivus e negativus dos direitos fundamentais, retornar-se-á a

falar no capítulo 5 deste estudo.

269 Daí porque o professor Willis Santiago Guerra Filho prefere utilizar a expressão dimensão ao invés de

Assim, cada direito fundamental pode apresentar mais de uma faceta, como bem ilustra o desenvolvimento histórico do direito de propriedade, que, originalmente visto como um direito liberal de resistência, passou a ter a si associada uma dimensão social (relativa à segunda geração dos direitos fundamentais) para, enfim, adquirir no final do século XX uma dimensão ambiental (relativa a uma, assim definida, terceira geração dos direitos fundamentais270).

Há, portanto, uma dimensão prestacional do direito à convivência familiar e esta pesquisa não pretende falsear tal assertiva, mas, pelo contrário, tem-na como pressuposto. Esta parte do estudo trata da convivência familiar enquanto liberdade negativa, pois a isso pouca atenção têm dado a doutrina e jurisprudência nacionais – talvez por ser o Brasil um país emergente, em que a perspectiva social dos direitos fundamentais tem sido um dos principais reclamos de nossa população desde a redemocratização nos anos 1980. Os aspectos prestacional e promocional da convivência familiar serão abordados no capítulo 5 desta pesquisa.

A questão é que uma geração de direitos não anula a anterior. Como os direitos fundamentais foram concebidos no nascedouro do Estado moderno primeiramente como direitos de liberdade frente ao governo, a essa acepção sempre é necessário voltar a fim de evitarem-se posturas paternalistas e dar ao homem a autonomia de que necessita para levar uma a contento.

Ademais, a compreensão mutual do poder familiar e do direito à convivência familiar faz com que esses conceitos sejam um poder e um direito de toda a família, e não mais tematizados de acordo com seus titulares, respectivamente pais e filhos, como fazem em regra a jurisprudência e doutrina nacional.

Como consequência, quando analisamos o direito à convivência familiar como um direito de status negativus, a ingerência do Estado sobre a vida privada pode ser resistida em nome dos interesses não só dos pais, como também de seus filhos. Por esse prisma, a leitura da “especial proteção do Estado” de que goza a família (CF, art. 226, caput), sem prejuízo de seus aspectos provisionais, representa, antes de tudo, uma atuação não exagerada – ou seja,

e princípio da proporcionalidade. In: GUERRA FILHO, Willis Santiago (Coord.). Dos direitos humanos aos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do advogado, 1997, p. 11-29.

270 Nesse sentido, o constitucionalista cearense Paulo Bonavides associa a evolução histórica dos direitos

fundamentais ao trilema da Revolução Francesa, “liberdade, igualdade e fraternidade”, como paralelo ao surgimento dos direitos de primeira, segunda e terceira geração, respectivamente. BONAVIDES, op. cit., p. 516.

proporcional – do Estado junto ao lar no interesse de todos os seus membros.271 Sob esse prisma pode-se desenvolver então o conceito de melhor interesse da família.

Por outro lado, deve-se ter cautela na construção de uma compreensão comunal do melhor interesse a fim de evitar que as opiniões da criança não soçobrem em um aspecto difuso do querer familiar, que nada mais pode ser do que a pretensão dos adultos que lha representam e supostamente falam em seu nome.

Assim, sem perder de vista todas as conquistas que o movimento internacional em prol dos direitos da criança representou, doravante passa-se à tarefa de analisar o direito à convivência familiar enquanto um direito de resistência e com feição recíproca entre pais e filhos a fim de verificar em que medida o nosso ordenamento jurídico dá guarida a essa tese.

3.9 O PODER FAMILIAR RECÍPROCO E O CONCEITO DE INTEGRIDADE FAMILIAR

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