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O problema da falta de efetividade das normas de proteção aos direitos da criança

2.6 A PROCLAMAÇÃO DA CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA: O INTERESSE SUPERIOR DA CRIANÇA COMO PRINCÍPIO GARANTISTA

2.7.1 O problema da falta de efetividade das normas de proteção aos direitos da criança

As Nações Unidas, promoveram em Nova York/EUA, em maio de 2002, doze anos e meio após a proclamação da Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), o primeiro encontro mundial de instituições de defesa dos direitos humanos das crianças, do qual participaram representantes de mais de trinta países. Ao final do evento, foi produzido um manifesto a ser lido, no dia seguinte, perante a Assembleia Geral da ONU – quando então se iria realizar uma sessão especial daquele colegiado voltada a discutir a temática da infância. Logo em suas linhas iniciais o documento asseverava:

Nós não podemos tolerar outra década de descaso para com a Convenção sobre os Direitos da Criança. Nós iremos continuar trabalhando arduamente em nossos Estados para garantir que os governos honrem suas obrigações sob a Convenção. Depois de décadas de atividades voltadas a estabelecer parâmetros internacionais e ratificar tratados de direitos humanos, os governos devem agora focar na sua total implementação. Ter direitos no papel significa pouco ou nada quando estes são desconhecidos ou não podem ser exigidos.115 (Grifo nosso)

Entretanto, percebe-se hoje que, passados vinte e seis anos da proclamação da Convenção sobre os Direitos da Criança, muitos dos dramas expressos na moção de 2002 ainda se fazem presentes no mundo atual, com especial força nos países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos. Em seu estudo inerentes ao impacto da CDC sobre os ordenamentos

em:<http://www.crpsp.org.br/portal/comunicacao/diversos/mini_cd/pdfs/Res_113_CONANDA.pdf>. Acesso em: 28 jun. 2016 .

115 No original: “We cannot tolerate another decade of non compliance with the Convention on the Rights of the

Child. We will continue to work hard within our States to make sure that governments honor their obligations under the Convention. After decades of international standard-setting activities and ratifying human rights treaties, governments must now focus on their full implementation. Having rights on paper means little or nothing when they are not known about or cannot be enforced”. UNICEF. First Global Meeting of Independent Human Rights Institutions on Children: Statement to United Nations General

Assembly Special Session on Children. Disponível em: <http://www.unicef.org/specialsession/docs_new/documents/events_hr_institutions.pdf>. Acesso em: 2 abr.

jurídicos dos países signatários da Convenção, Philip Alston e John Tobin constatam uma relação inversamente proporcional entre reconhecimento dos direitos das crianças nas Constituições e a sua efetiva implementação: “Em outras palavras, quão mais bonitas as formulações, mais provavelmente elas eram ignoradas. Por outro lado, em alguns Estados com as políticas mais favoráveis à criança, nem uma única palavra da Constituição é endereçada a elas”116 .(Tradução livre)

Muitas dessas críticas aplicam-se à realidade brasileira. Com uma lei especial de proteção e promoção dos direitos da criança e do adolescente, que vige há praticamente o mesmo tempo que a Convenção – de 20 de novembro de 1989; o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 13 de julho de 1990 –, persiste entre nós o hiato de exclusão social dos tempos menoristas, ao qual se soma o subproduto da violência incontida das três últimas décadas, com impacto contundente sobre a população jovem e negra do país.117

Na leitura de Mary Bellof, o desapego entre a realidade e as leis – bem evidente na América Latina – decorre da ausência de mecanismos de exigibilidade da Convenção e de leis correlatas, notadamente no que toca aos direitos de cunho prestacional. Segundo a autora, apesar de a CDC ter tido o mérito de ser o primeiro diploma a reconhecer os direitos de primeira geração aos mais novos (os direitos civis e políticos), quanto aos direitos de segunda e terceira geração – os quais, em regra, demandam ações e programas gradativos de implementação –, foi feita uma série de concessões no processo de elaboração deste tratado. Tal estratégia visava a garantir uma ampla aceitação para a Convenção (o que, de fato, ocorreu), porém indaga Bellof se, afinal, tal sacrifício dos direitos sociais não teria representado para a infância mais uma vitória de Pirro.118

O descompasso entre leis e realidade gera um quadro de crescente descontentamento

116 No original: “In other words, the more beautiful the formulations, the more likely that they were ignored.

Conversely, in some of the States with the most child-friendly policies, not a single word of the constitution was addressed to children.” ALSTON; TOBIN, op. cit., p. 30.

117 Nesse sentido, num estudo cujo critério foi o número de mortes decorrentes do emprego de arma de fogo, a

pesquisa Mapa da Violência 2015 coloca o Brasil como o 11º país mais violento do mundo por esse prisma. Aqui, as armas de fogo vitimizaram, em 2012, quase quarenta mil pessoas, numa proporção de 21,9 mortes a cada 100.000 habitantes (na Argentina, a título de comparação, o número é 5,6 mortes por arma de fogo a cada 100.000 habitantes). A população jovem e negra revela-se como a maior parte das vítimas: foram mortos um total de 10.632 brancos e 28.946 negros (número 142% maior para a população negra), índice que tem vertiginoso crescimento a partir dos 16 anos: enquanto a média nacional – já altíssima – é de 21,9 mortes por arma de fogo a cada 100.000 habitantes, a partir dos 16, tal número sobe para 37,1 mortes; aos 17 vai para 55,6; aos 18 chega aos 57,6; e, aos 19, atinge seu cume: 62,9 mortes a cada 100.000 habitantes. Nesse sentido, cf. WAISELFISZ, Júlio Jacobo. Mortes matadas por armas de fogo: mapa da violência

2015. p. 73; 80; 97. Disponível em: <http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/mapaViolencia2015.pdf>. Acesso em: 2 abr. 2016.

na população que dá força àquilo que se tem denominado de substancialismo jurídico: o argumento de que é melhor se ter leis despretensiosas, mas efetivas, do que diplomas ousados, porém inexequíveis – mas que, para Emílio García Méndez, termina sendo uma forma de dominação política pela resignação cidadã e manutenção do status quo.119

Com a figura do menor ainda presente no imaginário social – e, aliás, não só no imaginário, mas também enquanto categoria socialmente construída e bem representada nos sinais, nas ruas e cracolândias do país –, os apelos pela revogação das normas de garantias dos direitos infantojuvenis ganham cada vez mais força na sociedade, acompanhados de propostas legislativas de maior rigor sancionatório, tal como a redução da maioridade penal.120 Como

resposta, a fisiológica classe política sul-americana tem respondido favoravelmente a mudanças numa legislação que, em muitos aspectos, jamais foi implementada. Não se procede, porém, a um balanço para se perquirir até que ponto a realidade não permanece a mesma – ou, em alguns casos, até piorou (como na questão da violência urbana) – mais em virtude da falta de vontade de Constituição de nossa classe dirigente, nos termos de Konrad Hesse121, do que propriamente de uma inidoneidade da legislação para tratar de temas sociais tão sensíveis como saúde, educação, assistência social e segurança pública.

Em vez de se buscar equilíbrio entre sanção justa e digna, iguala-se no discurso popular a defesa de direitos humanos com a defesa de bandidos e qualquer argumento em prol de medidas proporcionais é logo tachado, pejorativamente, de “Garantismo” – como se o Garantismo fosse em sua origem algo dissociado do interesse da população.122 Para Alston e

119 Nesse sentido, MENDEZ, op. cit., p. 27.

120 Segundo o Datafolha, em pesquisa no país realizada em junho de 2015, 87% da população se mostra

favorável à redução da idade penal. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/06/reducao- da-maioridade-penal-e-aprovada-por-87-diz-datafolha.html>. Acesso em: 3 abr. 2016.

121 “Mas, a força normativa da Constituição não reside, tão-somente, na adaptação inteligente a uma dada

realidade. A Constituição jurídica logra converter-se, ela mesma, em força ativa, que se assenta na natureza singular do presente (individuelle Beschaffenheit der Gegenwart). Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem. Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes na consciência geral — particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional —, não só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung)”. HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1991. p. 19.

122 Como informa Claus Roxin, o Garantismo está algo vinculado em suas origens com a defesa da liberdade

pessoal contra os arbítrios do Estado. ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. Porém, na mesma medida em que o Garantismo limita a ação do Estado, ele também a impõe quando para proteger o indivíduo em seus direitos fundamentais, sobretudo, em virtude de ameaças provenientes de outros particulares, desenvolvendo a doutrina o conceito de dever estatal de tutela. Nesse sentido, cf. DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 114-122. Nos dias atuais, portanto, a leitura

Tobin, neste cenário pode-se esperar uma diminuição no nível de consciência em torno dos direitos humanos por parte dos governos, uma crescente hesitação dos grupos de defesa de direitos humanos em insistir no seu respeito em face de novas ameaças, reais ou imaginárias, e uma crescente tolerância da opinião pública para com medidas que relativizem o gozo de direitos fundamentais em nome da segurança e objetivos coletivos correlatos.123

Trata-se, pois, de um grande desafio para um ramo do direito que, numa perspectiva histórica, ainda dá seus primeiros passos – e, mesmo assim, parafraseando os versos de Lulu Santos, “com passos de formiga e sem vontade” de Constituição.124

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