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3 AUTONOMIA DOS PAIS

3.1 O FEMINISMO E SUA INFLUÊNCIA PARA O MOVIMENTO PELOS DIREITOS DA CRIANÇA

Como analisado, no item 2.1, por um longo período na história do direito, o espaço privado foi deixado à margem das reflexões políticas relativas às teorizações sobre a justiça. Os debates conduzidos pelos teóricos do Iluminismo eram um reflexo da lógica de gênero masculina e, nesse sentido, reproduziam as preocupações decorrentes da estrutura patriarcal de poder.

O discurso da igualdade só se fazia, então, necessário para rediscutir as relações de poder onde tal discussão convinha: na esfera pública, lócus em que era necessário colocar freios no absolutismo do monarca e minar os privilégios da aristocracia em seu entorno. Não havia, entretanto, o interesse de fossem rediscutidas as bases das relações domésticas, pois, cabendo ao chefe de família a definição do que era melhor para o seu clã, tal estado de coisas não trazia inquietudes para os teóricos da época.

Ao longo do século XIX, a Revolução Industrial, se por um lado solidificou os ideias iluministas da burguesia em ascensão, por outro, com a exclusão social da nova classe proletária, colocou em evidência a necessidade de repensarmos os laços de poder para além da relação pública Estado versus cidadão. Agora, o opressor do homem não era mais um ente governamental abstrato, mas sim o próprio particular que, pela busca desenfreada do lucro, poderia oprimir os seus iguais. Nesse cenário, ganharam corpo as reinvidicações da classe economicamente desfavorecida, o proletariado, e questões como a insalubridade do meio ambiente do trabalho e jornada laboral passaram a ocupar o cerne da discussão sindical. Nesse novo cenário urbano, o interior da fábrica revelava condições laborais degradantes, as quais afetavam com maior impacto as mulheres e as crianças.

Dentre os movimentos sociais que se destacaram no final do século XIX, o feminismo redefiniu o papel da mulher na sociedade, não mais restrito às quatro paredes do lar. Com a sua força de trabalho empregada na indústria – onde não importava o gênero das mãos fabris –, a figura da mulher desapegava-se do quadrante doméstico para, ao longo do século XIX e início do século XX, lançar-se no espaço público.

Iniciava-se então o debate que, por um lado, propugnava para a mulher a superação de sua condição doméstica para ter não só direitos de proteção na sua atividade laboral, mas também, desfrutar de outros bens fundamentais tais como a igualdade de salários com seus parceiros, a propriedade e os de natureza política. Só mediante o alcance de tais liberdades poderia o ser feminino ter condições de interferir na estrutura de poder e formatar as

estruturas de um sistema que lhe era opressor.

O próprio conceito de igualdade foi então questionado, na medida em que se percebia que os elementos constitutivos do que constituiria o padrão de isonomia não fora estabelecido com a participação da mulher, mas sim segundo uma lógica de gênero própria do mundo masculino.159 Era uma causa, portanto, com apelos não somente conjunturais, mas que, sobretudo, visava a rediscutir a superestrutura da sociedade, reflexo do poder dominante.

A causa da infância foi fortemente beneficiada com o movimento em prol dos direitos femininos, a começar pelo fato de que muito do debate acerca do reconhecimento de direitos para a criança foi liderado por mulheres, tal como a inglesa Englantyne Jebb, que, à frente da União Internacional de Proteção à Infância (Save the Children Internacional Union), desempenhou papel fundamental na elaboração da 1ª Declaração Internacional dos Direitos da Criança – a Carta de Genebra, de 1924.160

Na jurisprudência, com o desenvolvimento da Tender Years Doutrine (discutida no item 2.2), o interesse da esposa destacava-se dos de seu marido e, junto com a mulher, também se desenlaçavam os interesses da prole dos de seu pai. Estabelecia-se, portanto, um ponto de inflexão para o até então inquestionável poder patriarcal sobre os assuntos do lar, inclusive, no que dizia respeito ao destino de seus rebentos.

No campo legislativo, muitas das primeiras normas de proteção da infância foram gestadas no mesmo contexto das de proteção à mulher, sobretudo na regulação do meio ambiente do trabalho, tratando de questões como idade mínima, condições materiais e jornada laboral apropriada.161

Mas, sobretudo, o grande impacto do feminismo foi o de permitir às teorias da justiça da época o ingresso no espaço familiar, até então apartado da discussão política. A ciência do direito, outrora monotematizada pelo olhar masculino, passou a ser discutida sobre outras bases, nas quais o papel da mulher na sociedade era revisto tanto dentro como fora do lar.162

159 Nesse sentido, cf. Will. Filosofia política contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

160 Tom Cockburn informa ainda que, apesar de o grupo da Liga das Nações que trabalhou a redação da 1ª

Declaração Internacional dos Direitos da Criança – a Carta de Genebra, de 1924 – ser composto tão somente por homens, os seus assessores eram franca e majoritariamente do sexo feminino. Em 1932, no Comitê de Bem-Estar da Criança da Liga das Nações, apesar de os seus 12 integrantes governamentais serem todos do sexo masculino, dos seus 13 assessores, 10 eram mulheres. COCKBURN, Tom. Rethinking children´s citizenship. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2013. p. 164.

161 COCKBURN, op.cit., p. 164.

162 Como informa Will Kymlicka, o movimento feminista logo descobriu que, para garantir a participação

igualitária da mulher no mercado de trabalho ou na política, não era suficiente uma simples regra de não discriminação: necessário seria também se definir questões mais frugais, tal como: “quem vai cuidar das crianças?”. Do contrário, pouco adiantaria a vedação de atitudes discriminatórias se não se ofereciam às mulheres as mesmas oportunidades para concorrer em igualdade de condições com os homens nos espaços

Portanto, a redistribuição de poderes entre homens e mulheres tanto na esfera pública como na privada foi um fundamental precedente que o movimento feminista legou para a causa da infância, na medida em que demandava a alteração do status quo relativo aos papeis desempenhados por cada um dos membros do lar. A discussão pública adentrava os claustros domésticos e isso, como veremos, redefiniria também o lugar da criança na família e na sociedade.

3.2 A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUA

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