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2.6 A PROCLAMAÇÃO DA CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA: O INTERESSE SUPERIOR DA CRIANÇA COMO PRINCÍPIO GARANTISTA

2.7.2 O apego ao subjetivismo como forma de decidir questões relativas à criança

Além da citada problemática de efetividade a que nos referimos – denominada por Emílio García Méndez como crise de implementação, de natureza estrutural (e estruturante) –, um segundo desafio para a universalização das normas de proteção aos direitos das crianças é aquilo que professor argentino define como crise de interpretação, esta de natureza político- cultural.125 Para Méndez, a Doutrina Proteção Integral desenvolve uma teoria da justiça que, por estar calcada sobre a lógica dos direitos, afasta-se da lógica das decisões calcadas não só sobre a má, mas também – e com especial ênfase – sobre a boa vontade.126

Quando os elementos que compõem o melhor interesse decorrem mais das necessidades do tutelado do que de seus direitos, estar-se-á a um passo de decisões voluntariosas, que, pela falta de sistematização, não se poderão combater com argumentos dotados de suficiente cientificidade. A partir de estudo produzido no Reino Unido cujo objeto eram políticas desenvolvidas pelo prisma das necessidades da criança, constatou-se, por exemplo, que os profissionais que trabalham nos organismos de promoção dos direitos infantojuvenis tendem a reinterpretar as demandas de bem-estar dos mais novos a partir de sua própria agenda institucional.127

garantista bem pode ser desenvolvida para uma proteção do cidadão contra o arbítrio de qualquer tipo opressor, público ou particular.

123 Cf. ALSTON; TOBIN, op. cit., p. 8.

124 SANTOS, Lulu. Assim caminha a humanidade. Rio de Janeiro: BMG, 1994. (Álbum: Assim caminha a

humanidade).

125 MÉNDEZ, Emílio García. Adolescentes e responsabilidade penal: um debate latino americano. Justiça 21,

Porto Alegre, RS. Disponível em: <http://www.justica21.org.br/arquivos/bib_206.pdf>. Acesso em: 3 abr. 2016.

126 Cotejando a lógica da moral com a jurídica, Mendez conclui: “No amor não há limites, na justiça sim. Por

isso nada contra o amor quando o mesmo se apresenta como complemento da justiça”. MÉNDEZ, ibid.

O raciocínio da benemerência não se trata de uma singela relíquia de tempos remotos, mas é um fator ainda bem presente nos dias atuais, que subsiste – e resiste – à sistemática dos direitos da criança. As representações sociais da infância que se emergiram ao longo da nossa história (desde os menores, enquanto objetos de controle social, até as crianças e os adolescentes como sujeitos de direitos) não se sucedem e suplantam no espaço público, mas ali coexistem para travar uma disputa simbólica no imaginário coletivo e individual.128

Esse é o motivo por que João Batista da Costa Saraiva vê o interesse superior com certa desconfiança, pois tal conceito pode não representar nada mais do que uma simples visão corporativa “do Poder Judiciário, do Ministério Público, de parcela de representantes de organismos não governamentais” – e da Defensoria Pública, nós também a inserimos neste rol129 – e, dessarte, ser um retrocesso em termos dos direitos já reconhecidos.130 Da mesma forma, causa estranhamento ao autor o fato de o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ter editado, após dezessete anos de vigência do ECA, a súmula 342, pela qual “No procedimento para aplicação de medida sócio-educativa, é nula a desistência de outras provas em face da confissão do adolescente”.131 De fato, assiste razão ao autor no seu estranhamento para com a aprovação tardia de tese do tipo, que, para o público adulto, já fora há muito consolidada. Um dos desdobramentos do princípio da legalidade no direito da criança e do adolescente é que, em matéria penal, os de menor idade não podem receber tratamento mais gravoso do que

128 Ângela Pinheiro identifica as seguintes representações sociais da infância ao longo da história do Brasil: a)

criança e adolescente como objetos de proteção social, vigente no século XVIII; b) criança e adolescente como objetos de controle e disciplinamento social, nascida durante o final do século XIX e início do século XX; c) criança e adolescente como objetos de repressão social, que se emerge com o início do processo célere e desordenado de urbanização no Brasil, durante as décadas de 1930 e 1940 ; d) criança e adolescente como sujeitos de direitos, que emerge na década de 1970 e culmina na década de 1980. Ainda, colhe-se na obra da professora cearense: “Percorrendo a história da vida social brasileira, identifico quatro representações sociais mais recorrentes da criança e do adolescente. Cada uma dessas representações emerge em um cenário sócio-histórico específico. À medida que tais representações sociais vão emergindo e se consolidando, verifica-se uma simultânea coexistência entre elas, marcadas pela disputa simbólica”. PINHEIRO, Ângela. Criança e adolescente no Brasil: por que o abismo entra a lei e a realidade. Fortaleza: Editora da UFC, 2006, p. 50.

129 Em virtude de disputas por espaços de poder, a Defensoria Pública e o Ministério Público brasileiro têm,

cada vez mais, em nome de uma concepção própria do “melhor interesse da criança”, travado debates institucionais – tais como o da tese do “curador especial” (cf. REsp nº 1.481.533, DJe 21.08.2015; REsp nº 751.530, DJe 02.09.2015 e REsp nº 309.803, DJe 25.08.2015) – que, ao final, mais fragilizam do que contribuem para a construção de pauta nacional em torno da efetividade dos direitos fundamentais da criança e do adolescente. E isso num tempo em que graves e recorrentes investidas têm sido feita contra os avanços obtidos com a Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente no início dos anos 90.

130 SARAIVA, João Batista da Costa. O superior interesse: o menor, a criança, a lei e os tribunais. Revista de

Direito da Infância e Juventude, ano 1, n. 2. jul./dez. 2013. São Paulo: Revista dos Tribunais/Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e Juventude, p. 67.

aquele dispensado aos adultos.132

Outro exemplo eloquente de como a mentalidade do favor ainda se sobrepõe ao direito na área da infância é visto na necessidade de, passados dezenove anos de vigência do ECA, o legislador ter modificado essa lei para acrescentar-lhe o parágrafo único ao art. 153 – que fala das hipóteses de atuação de ofício (atípica) do juiz de direito – , nestes termos: “O disposto neste artigo não se aplica para o fim de afastamento da criança ou do adolescente de sua família de origem e em outros procedimentos necessariamente contenciosos”.133 A finalidade da lei com tal dispositivo foi a de acabar com alguns costumes arbitrários, ainda verificados na vigência do ECA, tal como o afastamento de crianças e adolescentes de seus pais dentro de procedimentos de suposta jurisdição voluntária, o que, apesar de ser uma prática comum do Menorismo, permanecia, paradoxalmente, em vigor não na ordem jurídica, mas no ordenamento mental dos operadores do direito.134

Não se trata, portanto, como afirma Méndez, de trocar um “mau subjetivismo” por um “bom subjetivismo”, pois a mera “transformação das pessoas” não é suficiente num Estado Democrático de Direito.135 Trata-se, isso sim, de uma mudança política sob o paradigma dos direitos, capaz de avaliar o melhor interesse da criança pelo prisma garantista.

O paradoxo, contudo, que se vivencia nesse segundo desafio é que a mudança institucional precisa ser assimilada pelo sujeito cognoscente do fenômeno jurídico, sob pena de ineficácia do sistema.

Portanto, nesse aspecto, o direito no Brasil ainda espera pelo amadurecimento institucional da discussão jurídica na área da criança, de uma forma muito próxima ao que se

132 Esse princípio veio a ser positivado no art. 35, I, da Lei do Sinase. BRASIL. Lei 12.594, de 18 de janeiro

de 2012. Institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato infracional; e altera as Leis nos 8.069, de

13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente); 7.560, de 19 de dezembro de 1986, 7.998, de 11 de janeiro de 1990, 5.537, de 21 de novembro de 1968, 8.315, de 23 de dezembro de 1991, 8.706, de 14 de setembro de 1993, os Decretos-Leis nos 4.048, de 22 de janeiro de 1942, 8.621, de 10 de janeiro de 1946,

e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943.

Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12594.htm>. Acesso em: 29 jun. 2016.

133 Parágrafo único do art. 153 do ECA, acrescentado pela Lei 12.010, de 13 de agosto de 2009.

134 Sobre os procedimentos de pretensa jurisdição voluntária, assim escreve Murillo Digiácomo: “Os

famigerados ‘procedimentos de verificação de situação de risco’, ‘pedidos de providência’ ou similares, que não mais podem ser utilizados quando em jogo se encontram direitos indisponíveis e/ou quando, ainda que por presunção, há conflito de interesses. O afastamento da criança ou do adolescente de sua família é medida extrema e excepcional, que somente terá lugar quando plenamente justificada pelas circunstâncias, sendo obrigatória a indicação, na ação judicial a ser proposta (e na decisão que a determina) dos fundamentos jurídicos respectivos, dando aos pais ou responsável condições para o exercício do contraditório e da ampla defesa”. DIGIÁCOMO, Murillo José. Breves considerações sobre a nova Lei

Nacional de Adoção. Disponível em: <http://www.crianca.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=334>. Acesso em: 4 abr. 2016.

verificou na Alemanha na década de 1970 com a chegada de Konrad Hesse ao Tribunal Constitucional Federal desse país.136 Na ocasião, foi-se, pouco a pouco, abandonando métodos subjetivistas de elaboração da decisão – calcado, então, na teoria axiológica137 –, o qual se tornou prescindível à medida que progredia uma elaboração dogmática de conteúdos normativos próprios de cada direito.

Assim, para a superação desse segundo desafio, necessário é vencer o cenário atual de estagnação da elaboração dogmática dos direitos da criança, sob pena de vir-se a questionar, tal como o fizeram nos Estados Unidos Noblet e Reardon, a serventia de um conceito tão arbitrário de melhor interesse.138

Visando a diminuir as arbitrariedades do subjetivismo exarcebado ainda vigente, o Comitê da ONU de monitoramento da Convenção sobre os Direitos da Criança expediu a General Comment 14 (GCom 14)139, o qual busca aclarar a estrutura, função e natureza do melhor interesse da criança, previsto art. 3º da CDC. Na nota técnica, o Comitê estabelece que o melhor interesse é, além de um direito substantivo, também, uma regra de procedimento, a qual, para ser acessada e determinada, requer garantias procedimentais que importem na demonstração do direito que foi levado em conta na decisão do caso concreto.140 Sobre tais procedimentos, diz ainda a GCom 14, no seu item 94, que o acesso e determinação do melhor interesse implicam a necessidade de a norma de decisão ser exarada num ambiente seguro e amigável, em que o magistrado não decida isoladamente, mas com o apoio de uma equipe técnica multidisciplinar.141

136 GUTIÉRREZ, Ignacio Gutiérrez. Dignidade de la persona y derechos fundamentales. Madrid/Barcelona:

Marcial Pons, 2005. p. 27.

137 Segundo explica Leonardo Martins, a problemática da teoria axiológica reside no fato de, em última

instância, a liberdade não existir mais apenas enquanto simples livre-arbítrio do sujeito, mas, antes, só pode ser tida como digna de proteção a liberdade valorada por um terceiro que lhe reconhece valor no respectivo exercício. Só a liberdade identificada como tal e assim confirmada pelo Estado (o referido “terceiro”) passa a ser garantida na ordem jurídica de valores. MARTINS, Leonardo. Liberdade e Estado Constitucional: leitura jurídico-dogmática de uma complexa relação a partir da teoria liberal dos direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012. p. 14. Tal compreensão da liberdade se mostra deveras temerária para a dignidade humana, aqui entendida enquanto liberdade própria do sujeito, não instrumentalizada por outrem, conforme veremos no capítulo 3.

138 “O termo ‘melhor interesse’ deve ser abandonado, a menos que façamos um melhor trabalho em torná-lo

significativo”. No original: “The best interests term itself should be abandoned unless we do a better job of making it meaningful”. REARDON, Kathleen Kelley; NOBLET, Christopher T. op. cit, p. 47.

139 Sobre as

General Comments do Comitê/CDC, cf. a nota de rodapé 101, p. 40.

140 Nesse sentido, o item 6, “c”, da GCom 14. Disponível em: <http://www.refworld.org/pdfid/51a84b5e4.pdf>.

Acesso em: 2 mar. 2016.

141 No sentido de aplicar tal compreensão (do melhor interesse como regra de procedimento) a um caso prático,

paradigmática foi a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Fornerón e Hija v. Argentina. Ali, a Corte reviu a decisão da justiça argentina, onde o pai fora afastado peremptoriamente de sua filha, sem que as normas procedimentais da fixação do direito de guarda e o correlato direito de visitação fossem estabelecidas pelos magistrados. A Corte Interamericana conferiu ao melhor interesse esta

Tudo isso a fim de retirar a judicatura do solipsismo típico do regime menorista, em que, na expressão de Álvaro Ricardo de Souza Cruz – referindo-se à crítica de Habermas à filosofia da consciência de Husserl – a linguagem do “eu” sempre se impõe: ou de forma direta ou disfarçada num “nós transcendental”, mas que, ao fim e ao cabo, nada mais é do que um mero disfarce de linguagem monológica.142

Portanto, vê-se que esse segundo desafio, de índole hermenêutica, permanece bem posto para o Brasil, onde, passados hoje 26 anos de promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, o Poder Judiciário brasileiro continua desrespeitando as normas de proteção estatutária, e não conferindo aos seus magistrados o necessário amparo de equipe técnica e uma formação apropriada para ler as demandas que se lhes apresentam na seara infantojuvenil, o que diminuiria os riscos de uma leitura isolada da lide.143

Como ponto favorável, registre-se que, pelo menos, de vasto arcabouço institucional de que já dispõe, sobretudo, após a publicação da Lei 12.010/09, que, ao positivar, no art. 100, parágrafo único do ECA, os princípios norteadores de aplicação das medidas de proteção aos petizes, trouxe uma série de parâmetros materiais e procedimentais para a construção da norma de decisão no caso concreto, tais como: a condição da criança e do adolescente como sujeitos de direitos; a necessidade de sua oitiva obrigatória e participação; a proporcionalidade; a responsabilidade parental; a prevalência da família e, nesse contexto de direitos, o interesse superior da criança e do adolescente. Resta tirá-los do papel.

2.8 O IMPACTO DO MOVIMENTO DE DIREITOS PARA A CRIANÇA NOS

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